Sobre as jornadas de 2013 – Resenha de “As Manifestações de junho de 2013 em Alagoas/’ de Sara Angélica Bezerra Gomes
O lançamento de um livro é sempre um presente histórico que externa inúmeros significados, dentre eles o avanço do conhecimento sobre a realidade conhecida. Imerso neste horizonte de expectativas – a publicação do livro As Manifestações de junho de 2013 em Alagoas, de autoria da sertaneja Sara Angélica Bezerra Gomes traz a lume uma teia de significados sobre a densa, complexa e singular realidade política, social e educacional do país – para além dos grandes centros urbanos, das regiões litorâneas e, ao mesmo tempo, em confronto com um presente histórico transpassado por “diversidades”, “multicentrismos” e pelo fenômeno da disputa de narrativas entre a mídia tradicional e universo das redes sociais.
O livro trata, a partir da realidade de duas cidades de Alagoas – Delmiro Gouveia, no sertão, e Maceió, no litoral –, os desdobramentos das manifestações sociais de junho de 2013, marcado pela ida de multidões às ruas, em várias cidades do país e de forma simultânea, para protestar, inicialmente, contra o aumento das passagens do transporte público e contra a violência estatal deferida aos manifestantes.
A obra é oportuna por duas razões: a primeira, por abordar um fenômeno social emblemático para a Nova República, cujas reminiscências, desdobramentos e narrativas continuam em debate, interpretação e disputa. A segunda razão está associada aos estudos das manifestações de junho também a partir da relação de comunicação estabelecida pelos indivíduos, através das redes sociais, com a sociedade e com o mundo – uma relação que revela nuances de uma sociedade de informações e de massa que ressignifica os sentidos do tempo humano de forma acelerada, fragmentada, multifacetada e complexa.
O livro é inovador tanto pelo trato das fontes quanto pela perspectiva de abordar o tema de forma multicêntrica, descentrada e conectada entre a periferia e o centro, o litoral e o sertão, as grandes cidades e as cidades médias e/ou pequenas. Sob essa perspectiva, a autora analisa, de fora dos grandes centros urbanos, os enigmas das manifestações sociais ocorridas em junho de 2013. Frente a esse contexto, problemático e temático, Gomes discute os desdobramentos, conexões e especificidades das referidas manifestações a partir de Maceió, na região do litoral, e de Delmiro Gouveia, município do Sertão Alagoano do Rio São Francisco, na fronteira com os estados de Sergipe, Bahia e Pernambuco.
A obra, publicada pela editora CRV, em ebook, tem origem em um estudo monográfico sobre as manifestações sociais de junho de 2013 ocorridas em Delmiro Gouveia, Sertão de Alagoas. A esse respeito é preciso registar que o referido trabalho, concluído em 2014, foi a primeira pesquisa acadêmica defendida no Campus do Sertão da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), unidade de ensino criada em 2010, no conjunto dos esforços carreados pela sociedade brasileira para expansão e interiorização do Ensino Superior público federal.
Após a conclusão da licenciatura, na condição de egressa do mencionado processo de expansão e de interiorização do ensino superior, Gomes prossegue seus estudos – de observadora-participante-pesquisadora das jornadas de junho de 2013 – junto ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (PPGH/UFAL), no qual aprofundou a análise das manifestações sociais e das implicações daquelas experiências sobre a realidade política e social brasileira. Nessa nova fase de pesquisa, incluiu de modo comparativo as cidades de Delmiro Gouveia e de Maceió, para compreender como protestos deflagrados a partir de cidades do Sudeste tomaram proporção nacional e evocaram outras bandeiras, agendas e pautas.
A dissertação, defendida em 2016, agora publicado em livro, foi submetida ao I Prêmio de Dissertações do PPGH/UFAL, conquistando o segundo lugar e habilitando-se como um dos trabalhos selecionados para publicação inaugural na Coleção Feliciana – título que homenageia a trajetória de resistência de uma mulher, negra, escravizada e alforriada na Província de Alagoas no século XIX.
O referido Programa, Prêmio e Coletânea, após apreciação de pareceristas externos e de diferentes instituições, selecionaram os melhores trabalhos produzidos, estimulando a realização de pesquisas com novos objetos, problemas e abordagens no campo da historiografia. Nessa perspectiva, a presente obra aprofunda a compreensão acerca da sociedade brasileira ao estudar os desdobramentos das manifestações de junho de 2013, para além do foco do aumento das passagens dos transportes públicos e da violência policial deferida contra os participantes dos protestos.
Entre os anos de 2013 e de 2016, acompanhei o desenvolvimento das pesquisas e os desafios enfrentados pela autora para desbravar esse caminho novo no campo da confluência da história social, da história do tempo presente e da memória social. Apesar de ser a uma pesquisa sobre tema novo, recente e em configuração, o livro manteve o rigor metodológico no que se refere à identificação, seleção, controle e análise das fontes orais, jornalísticas e digitais, assim como o constante diálogo com a bibliografia relacionada.
A obra apresenta uma intensa interlocução com narrativas orais de sujeitos sociais de diferentes partidos, coletivos e grupos de interesses, tanto de Delmiro Gouveia quanto em Maceió, sobre as jornadas de junho de 2013 e, principalmente, acerca dos significados políticos locais, estadual e nacional visibilizados pelas multidões nas referidas manifestações de rua.
Esses protestos estampados em cartazes, gritos e ocupações de rua reivindicavam “mais educação, mais saúde e menos corrupção”, entre outras bandeiras, pautas e agendas agregadas. Sob essa perspectiva, Gomes apresenta uma cartografia social sobre aquele presente histórico e sobre aquelas manifestações que ocorreram em quase todo território nacional, ao mesmo tempo e com diferentes vozes, cores e perspectivas. Em torno dessa análise, a autora examina os jornais impressos, em particular a Gazeta de Alagoas, e os sites de notícia, em especial, os do Sertão Alagoano.
Nesse exercício de interpretação, a autora também destaca o papel das redes sociais e a importância das fontes digitais. O cuidado no estudo dessas fontes é acompanhado por um amplo debate bibliográfico que foi sendo acumulado à medida que as mobilizações ganharam repercussão, projeção e inquietaram políticos, pesquisadores e a sociedade. Dentre as fontes digitais, as postagens do Facebook obtiveram maior repercussão, representatividade e impacto. Na época, a referida rede social estava em ascensão e externava um imenso poder de comunicação, envolvimento e engajamento – meandros observados, analisados e interpretados pela autora.
A obra apresenta três capítulos independentes e articulados entre si, forma de escrita que permite ao(a) leitor(a) tanto a possibilidade de ler capítulo a capítulo quanto ler o livro em si, como uma obra única: com início, meio e fim.
A introdução articulada com o primeiro capítulo, “Uma manifestação multicêntrica”, apresenta um diálogo com o campo de estudos sobre as multidões – tanto dos protestos de rua quanto de movimentos sociais contemporâneos, a exemplo do Movimento Passe Livre (MPL), Anonymous e Black Blocs –, bem como do campo de estudos sobre as manifestações de rua ocorridas no Brasil em junho de 2013.
Perpassando este e os demais capítulos, destaco também o diálogo promovido pela autora com os seguintes estudiosos: Elias Canetti (1995), Maria da Glória Gohn (2014), José Murilo de Carvalho (2015), Verena Alberti (2008), Marieta de Moraes Ferreira (2002), Marc Bloch (2001), Paul Ricceur (2007), George Rúde (1964;1980), Alberto Melucci (2001), dentre outros.
No segundo capítulo, Gomes toma como centro as manifestações de junho ocorridas em Maceió, discutindo as repercussões dos protestos de ruas, a atenção deferida pela grande mídia aos protestos das multidões pela capital de Alagoas, as dúvidas quanto à associação do rótulo antipartidário às manifestações, as denúncias quanto às manipulações dos diferentes usos dos carros de sons nos protestos, a atuação dos mascarados no movimento, as dúvidas quanto à presença dos Anonymous e dos Black Blocs e, em particular, as disputas acerca das bandeiras, agendas e pautas (locais, estadual e nacional) e das múltiplas formas de protestos.
No terceiro e último capítulo, “Manifestações de junho de 2013 em Delmiro Gouveia”, Gomes apresenta uma análise ainda mais descentrada, descentralizada e policêntrica dos protestos. Ela retoma a discussão do uso das cores, das máscaras e da participação dos coletivos anarquistas e de classe nos protestos. A exemplo do segundo capítulo, amplia a discussão do peso das pautas locais e das especificidades que os protestos associados às manifestações de junho promoveram em cada uma das cidades das diferentes regiões do país, inclusive naquelas em que não havia transporte público regular – o caso de Delmiro Gouveia.
Gomes apresenta um estudo importante para conhecer a sociedade brasileira a partir das manifestações de junho de 2013. Acontecimento social e político recente, emblemático e ainda pouco estudado, sobretudo, quanto aos desdobramentos e interrelações nos diferentes estados e cidades do país – em particular, para aqueles fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Brasília.
A tese central do livro, portanto, apresenta uma compreensão acerca de um presente histórico marcado por inquietações, mobilizações e protestos de rua protagonizados por diferentes setores, segmentos e frações da sociedade brasileira.
Em síntese, além dos significados históricos associados ao fenômeno das manifestações de junho de 2013, Gomes enfrenta o desafio de pesquisar um tema recente, inconcluso e que obteve extrema relevância junto ao debate político, partidário e social. Nesse sentido, ele deve ser lido por historiadores, cientistas sociais, jornalistas e, principalmente, por aqueles que desejam compreender a complexidade, diversidade, pluralidade e desafios atuais da democracia brasileira.
Sumário de As manifestações de junho de 2013 em Alagoas
- Apresentação – Michelle Reis de Macedo, Anderson da Silva Almeida, Elias Ferreira Veras e Irinéia Maria Franco dos Santos
- I Prêmio PPGH-UFAL de Dissertações – Coleção Feliciana – Anderson da Silva Almeida e Pedro Lima Vasconcellos
- Prefácio. Um presente histórico com muitos significados – José Vieira da Cruz
- Introdução
- Uma manifestação multicêntrica
- Manifestações de junho de 2013 em Maceió
- Manifestações de unho de 2013 em Delmiro Gouveia, Alagoas
- Considerações finais
- Referências
- Índice remissivo
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Resenhista
José Vieira da Cruz – Doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia, foi professor (2013-2020) e vice-reitor (2016-2020) da Universidade Federal de Alagoas. É professor da Universidade Federal de Sergipe, membro do Profhistória, do PPGH/UFAL e da equipe editorial da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. É autor de Da autonomia à resistência democrática: movimento estudantil, ensino superior e a sociedade em Sergipe, 1950-1981 (Criação, 2021), Aprendizagem história: espaços, suportes e experiências (EDUPE, 2020) e Uma breve História do Brasil (Revista Brasil em Números/IBGE, 2020) – E-mail: josevieira@academico.ufs.br
Referências desta resenha
GOMES, Sara Angélica Bezerra. As Manifestações de Junho de 2013 em Alagoas. Curitiba: CRV, 2021. 146 p. Resenha de: CRUZ, José Vieira da. Sobre as jornadas de 2013. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/1511/
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