Resistência e Cidadania — Resenha de Érica Simone Rodrigues da Paz Souza (PPGEAFIN/Uneb), sobre o livro “Os quilombos como novos nomos da terra: da forma-valor à forma-comunidade, de Luis Eduardo Gomes do Nascimento
Resumo : Em Os Quilombos como Novos Nomos da Terra : da Forma-Valor à Forma-Comunidade”, Luis Eduardo Gomes do Nascimento reflete sobre a “c olonialidade do poder” e a “modernidade periférica” e defende a instituição quilombo como uma espécie de novo nomo da terra.
Palavras-chave : Quilombos, Colonialidade, Modernidade periférica.
“Os Quilombos como Novos Nomos da Terra: da Forma-Valor à Forma-Comunidade” é um livro lançado em 2020 pela editora Dialética, escrito por Luis Eduardo Gomes do Nascimento. Esta obra é o resultado de sua dissertação de Mestrado defendida na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), dois anos antes, e tem como objetivo apresentar a experiência das organizações quilombolas como uma nova forma de organização comunitária no Brasil contemporâneo. Com seu livro, Nascimento busca evitar o apagamento das resistências negras comunitárias, um fenômeno comum em obras que tratam de registros históricos.
Nascimento é professor da Uneb, participou na grande área de Ciências Sociais Aplicadas/Direito/Subárea: Teoria do Direito. Ele possui mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, além de ser pós-graduado e bacharel em Direito. Nascimento publicou artigos que exploram espaços e grupos periféricos, apresentando-se como um intelectual engajado em questões dos direitos humanos e dos movimentos sociais e do chamado “direito dos pobres”.
O livro é garantido em duas partes, além das considerações finais. Na primeira, intitulada “Colonialidade do Poder e Modernidade Periférica”, o autor discute o período modernista e a definição de acomodação, buscando contextualizar a obra por meio do conceito de Modernidade. Para isso, ele emprega categorias do pensamento de WF Hegel, que compreende o incorporada da era moderna como um colapso do espírito com o ser imediato, na busca por tornar o espírito livre. Com isso, a modernidade capitalista, segundo o autor, possui dois problemas sobre sua origem. Nascimento questiona se o fato ocorreu devido às potencialidades da Europa ou diante da descoberta das Américas, que possibilitou as explorações.
Nascimento destaca o pensamento do filósofo Smith, que vê a descoberta das Américas como um dos maiores feitos para a humanidade. Apesar de muitas injustiças terem sido cometidas, especialmente contra os indígenas, essas descobertas promoveram a interação entre os mundos e aproximaram distâncias, tornando a Europa o centro do poder econômico.
Nesse contexto, o autor ressalta a ideologia como realidade e ilusão, sublinhando o símbolo da leitura sintomatológica de Althusser em “Ler o Capital”. Nascimento conclui essa primeira discussão com o pensamento de Marx, afirmando que a vinculação entre economia e política se intensifica na reprodução que, para se perpetuar, precisa reproduzir a si mesma. Assim, para ele, a formação social não ocorre em dados naturais, mas na compreensão e análise dos efeitos ideológicos da natureza. Para o autor, numa linguagem estruturalista, a posse de terra se concentra nas mãos da classe dominante branca. Com isso, a separação entre o trabalhador e os meios de produção ocorre por meio de uma instauração do racismo, na modernidade periférica.
Na segunda parte do livro, “Os Quilombos como Novos Nomos da Terra”, Nascimento aborda o biopoder como lugar de produção. Ele discute a relação entre senhor e escravo e o modo de capitalismo colonial. No campo, prevaleceu a vida nua e crua, a “vida matável”, como ele descreve, vinculada à calculabilidade levada para a herança da mais-valia. Diante dessa nova concepção de exploração, surge a “brecha camponesa”, que se coloca inicialmente como um benefício para o assalariado ou escravo, mas tem por objetivo fomentar ainda mais o servidão do proletariado. Este, ansioso para alcançar a superprodução e lucrar com ela, não percebe a extrema exploração de seu trabalho.
Nesse cenário, o livro esclarece que a visão do meio de produção é distanciada da mão de obra, cortando os laços entre a força humana e a produtividade, com a intenção de desvalorizar o serviço prestado em detrimento do lucro exacerbado, fazendo prevalecer a “lei do mais forte”. Nesse ponto, Nascimento destaca a relevância do método dialético para elucidar a problemática que envolve os menos favorecidos.
Retomando algumas discussões presentes na primeira parte, sobre a categoria de totalidade e o pensamento cartesiano, Nascimento busca compreender o pensamento científico como passível de mudança. Ele discute Hegel e a potência inerente a cada situação, comparando essa potência a uma semente que gera a planta, a flor e, por fim, o fruto. Nesse ciclo, o fruto é a causa da semente, formando-se um ciclo auto-organizador. Dessa forma, a vida é entendida como substância para elevar-se como auto-organização complexa que produz autonomia.
O livro também indica que os narradores da história, ao descrever os fatos, o faziam do ponto de vista burguês. Eles descreviam os quilombos como espaços de fuga, com o intuito de retirar o mérito da população negra. Com isso, as lutas e resistências eram suprimidas para garantir a dominação completa, inclusive nos registros da História. No entanto, o conceito de quilombo e seu real significado trazem a ideia de espaços autônomos como parte de uma declaração positiva de liberdade e de resistência da população que se recusava a ser escravizada.
Neste contexto, o autor apresenta a categoria dos nomos, no sentido decolonial, que empreendia e legalizava as tomadas de terras pelos europeus. A tomada de terra era, assim, a unificação do território e sua ordenação. O texto enfatiza a organização dos quilombos como espaços autônomos legítimos, adquiridos por meio de luta e resistência. Desta forma, estes se constituem como uma nova formação social, originando uma forma comunitária. Os quilombos estabelecem-se como comunidades agrárias, consideradas associações de seres humanos livres cuja posse comum das terras, segundo o autor, instaura uma nova ética: o desenvolvimento de um é a condição do outro.
Por fim, considerando que o capitalismo não abdica do processo de acumulação consistente na expropriação da base fundiária dos indígenas, o autor afirma que é urgente resgatar a memória dos quilombos como forma comunitária. Deve-se, portanto, reconhecê-los como espaços autônomos e repletos de cidadãos com direitos, permitindo que ocupem seus espaços como seres que pensam, atuam e transformam o meio em que vivem.
De maneira geral, considero que o livro é atual por diversas razões. Primeiramente, apresenta a teoria decolonial e a teoria social marxista, abordagens recentes no Brasil, no campo das Ciências Sociais. Em segundo lugar, o livro propõe resgatar a luta dos quilombos como uma nova “forma de comunidade”. Dessa forma, a obra aborda a resistência negra na forma de quilombos, constituindo um “novo espaço de autonomia”. O livro também é original. O autor inova ao afirmar que a questão social e a questão racial estão interligadas no contexto americano e brasileiro. Ele é inovador ao denunciar a incompletude dos trabalhos que discutem quilombos e, principalmente, ao inserir os quilombos no contexto da conquista colonial da África e da América Latina.
Apesar dessas qualidades, o livro apresenta deficiências que podem ser corrigidas em uma segunda edição. Também mostra falhas primárias em termos de revisão tipográfica e textual, erros que dificilmente seriam cometidos por um iniciante após uma breve revisão solicitada a um colega ou parceiro. O livro peca, sobretudo, pelos erros de concordância verbo-nominal e no uso da vírgula. Na tentativa de explicitar contextos e conceitos, o autor cita diversos filósofos, porém, faz isso de maneira abrupta, atrasando a compreensão do leitor sobre o lugar referenciado no texto. Além disso, utiliza de forma exagerada o expediente das citações diretas. Por fim, o livro apresenta (principalmente nas considerações finais) trechos truncados que prejudicam a compreensão das frases, além de empregar um vocabulário rebuscado e anacrônico em todo o texto, interrompendo o fluxo narrativo.
O livro, contudo, demonstra consistência entre seus objetivos e conclusões. A meta anunciada de ilustrar a originalidade da organização social quilombola é retomada como uma proposição nas considerações finais. De fato, os quilombos são espaços conquistados por meio de luta e resistência e devem ser reconhecidos como lugares de autonomia e de plena e legítima cidadania. Por isso, é uma obra que deve ser lida por pesquisadores e militantes de questões relativas aos quilombos que se interessem, principalmente, por abordagens que associam dimensões de classe e de etnia.
Sumário de Os Quilombos como novos nomos da terra: Da Forma-valor à Forma-comunitária
- Prefácio
- Introdução
- Colonialidade do poder e modernidade periférica
- Os quilombos como novos nomos da terra
- Considerações finais
- Referências
Para ampliar a sua revisão da literatura
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Resenhista
Érica Simone Rodrigues da Paz Souza – Mestranda em Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN/UNEB), graduada em Pedagogia e Docência UNEB), Licenciatura em Biologia (FTC) e professora da Secretaria de Estado da Educação (SEED-BA). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5929301415371558; ID ORCID https://orcid.org/0000-0003-0287-0854 ericapazsouza@gmail.com.
Para citar esta resenha
NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Os Quilombos como novos nomos da terra: da Forma-valor à Forma-comunitária. São Paulo: Dialética, 2020. 113p. Resenha de: SOUZA, Érica Simone Rodrigues da Paz. Resistência e cidadania. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.11, maio/jun., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/5889-2/>.
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