A história cultural de grandes pensadores – Resenha de “O Polímata: Uma história cultural – De Leonardo da Vinci a Susan Sontag”, de Peter Burke

Resenhado por José Douglas Alves dos Santos (NICA/UFSC) | 27 abril 2022.


Peter Burke | Foto: Ricardo Matsukawa/VEJA.com

O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag foi publicado, simultaneamente, no ano de 2020, em língua inglesa pela Yale University Press e em língua portuguesa pela Editora Unesp. Mais recente livro do historiador inglês Peter Burke – professor da Universidade de Cambridge e considerado um dos intelectuais mais conceituados a respeito da Idade Moderna europeia e da história cultural –, traz uma narrativa cativante que se destaca pela “erudição e clareza”, como descreveu o jornalista João Pombo Barile (2021), e por “seu caráter pedagógico”, como sugeriu a professora e escritora Carlota Boto (2021).

O livro trata da história cultural de pensadores/as que influenciaram, sobremaneira, seus períodos históricos e os subsequentes, por meio de saberes vastos e de uma prolífica atuação no trabalho da produção do conhecimento, a exemplo de Hipátia de Alexandria, Cristina de Pisano, Alberto, o Grande, Leonardo da Vinci, Francis Bacon, Blaise Pascal, Comenius, Marie de Gournay, Sóror Juana Inés de la Cruz, Gottfried Wilhelm Leibniz, Giambattista Vico, os irmãos Wilhelm e Alexander von Humboldt, Charles Darwin e, entre alguns mais recentes, Norbert Elias, Umberto Eco, Susan Sontag e Michel de Certeau. Burke traz relevo “sobre indivíduos e pequenos grupos interessados no quadro geral nos detalhes, muitas vezes dedicados à transferência ou ‘tradução’ de ideias e práticas de uma disciplina para outra” (p. 16). Em outras palavras, indivíduos e grupos que se empenharam em aprofundar seu olhar sobre assuntos mais específicos como a ampliar seu campo de visão por meio das relações e associações promovidas com outras disciplinas, matérias e intelectuais.

O livro é dividido em oito capítulos, além da introdução, do texto que conclui a obra e de outros elementos pré e pós-textuais (lista de imagens, prefácio e agradecimentos, apêndice, referências bibliográficas, leituras complementares e índice remissivo). Na introdução, Burke vai responder a pergunta “O que é um polímata?”, ressaltando que “o termo, outrora confinado aos estudiosos, estendeu-se a indivíduos cuja realizações vão do atletismo à política” (p. 20). No entanto, em sua obra, ele se concentra nos estudiosos, “nos gigantes” (p. 24), pessoas cujo conhecimento acadêmico, antes denominado “erudição” como assim se refere, foram fundamentais para o avanço histórico-científico.

Para o autor, trata-se de uma prosopografia, “uma biografia coletiva de um grupo de quinhentos indivíduos que atuaram no Ocidente entre o século XV e o XXI” (p. 23). Todavia, mais que “uma galeria de retratos individuais”, comenta Burke, um dos principais objetivos de sua obra é “descrever algumas tendências sociais e intelectuais” que ajudam a “responder perguntas gerais sobre formas de organização social e climas de opinião favoráveis ou desfavoráveis aos empreendimentos polimáticos” (p. 24). Ademais, ele relata que uma das preocupações do estudo “é a sobrevivência dos polímatas em uma cultura de crescente especialização” (p. 25). Em entrevista a Barile (2021), Burke chama atenção sobre o perigo representado pelo fim dos polímatas, cujo reflexo na sociedade estaria na perda de indivíduos capazes de ver as conexões entre os distintos campos do conhecimento, quando o quadro geral de análise pode então ser comprometido.

Após a breve introdução, no capítulo de abertura,  Oriente e Ocidente, Burke remete-se a pensadores de uma época pré-disciplinar, da Antiguidade clássica (grega e romana), China tradicional, do mundo islâmico e da Idade Média ocidental, em que “vários indivíduos foram admirados por sua excepcional amplitude de conhecimento” (p. 33). O autor destaca que semelhante a outros debates e assuntos, o primeiro registro acerca do valor do conhecimento é encontrado na Grécia antiga. O primeiro dos nomes nessa lista indicada por Burke é Pitágoras de Samos (c. 570-c.495 a.C.), seguido dos sofistas de sua época, que, mais abrangentes que o próprio Pitágoras “talvez possam ser definidos como enciclopédias ambulantes” (p. 35), sendo um dos mais famosos deles Hípias de Élis (c.460-399 a. C.). Outro nome de destaque no período foi Aristóteles (384-322 a.C.) que, para além de seus interesses em lógica, ética e metafísica, também se dedicou à matemática, retórica, poesia, teoria política, física, cosmologia, anatomia, fisiologia, história natural e zoologia. Outros dois nomes ainda figuram na lista dos gregos, Posidônio de Rodes (c. 135-c.51 a.C.) e o bibliotecário Eratóstenes de Cirene (245-194 a.C.), responsável pela mais famosa biblioteca do mundo greco-romano, a biblioteca de Alexandria.

Entre os romanos, dos polímatas exemplares descritos por Burke, encontra-se um grego expatriado, Alexandre de Mileto (Lúcio Cornélio Alexandre, 100-36 a.C.), bem como outros três mais conhecidos em textos clássicos: Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.), Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.) – autor da primeira enciclopédia que se tem registro –, e Plínio, o Velho (23-79). Fora da tradição ocidental, mais especificamente na China, Burke vai citar Hui Shi (370-310 a.C.), Su Song (1020-1101) e Shen Gua (1031-1095), este último, segundo o autor, considerado um Leibniz chinês. Retornando à tradição ocidental, quando na Antiguidade tardia e no início da Idade Média se testemunham “tanto uma crítica ao conhecimento secular quanto uma perda desse tipo de conhecimento” (p. 43), a tarefa fundamental dos polímatas, devido às circunstâncias, mais do que acrescentar foi tentar preservar e reunir os documentos e saberes da tradição clássica.

O mundo islâmico também é contemplado nesse primeiro capítulo, com nomes de destaque entre os séculos IX e XIV (de acordo com a cronologia ocidental, como comenta o autor): Al-Kind (801-73) – posteriormente, estudado por aquele que é considerado um dos maiores polímatas (senão o maior) da humanidade, Leonardo da Vinci –, Ibn Sina (c.980-1037), Ibn Rushd (1126-98) e Ibn Khaldun (1332-1406). Estes e outros pensadores trouxeram novas contribuições à produção do conhecimento, fazendo com que, na Alta Idade Média, ou na Idade Média tardia, o desafio tenha sido “recuperar e dominar não apenas o antigo conhecimento grego que se perdera, mas também o novo conhecimento produzido no mundo islâmico” (p. 51).

Nesse período, a maior inovação se deu com a criação, a partir do século XI, das universidades, com maior notabilidade em Bolonha e Paris, que institucionalizaram o que Burke denomina de pacote de disciplinas. Ainda que tenha havido os “primeiros sinais de especialização, alguns estudiosos medievais deram continuidade à tradição polimática” (p. 51), entre os quais: o monge Hugo de São Vítor (c. 1096-1141), o frade dominicano Vincente de Beauvais (c. 1190-1264), os ingleses Robert Grosseteste (c.1175-1253) e Roger Bacon (c.1214-c.1292), e os dois polímatas medievais mais ambiciosos na percepção de Burke: o dominicano alemão Alberto, o Grande (Alberto Magnus, c.1200-1280) e frade catalão Raimundo Lúlio (1232-1316) que, trezentos anos depois, atrairia o interesse de Leibniz, considerado pelo autor o maior polímata do século XVII.

O segundo capítulo,  A era do “homem renascentista” – 1400-1600, aborda o movimento hoje conhecido como Renascimento (que, se, por um lado, promoveu o ideal de polivalência ou do homem universal, do outro, suscitou o mito da universalidade) e a crescente quantidade de informação que passou a circular devido aos novos saberes oriundos da exploração marítima e terrestre e a invenção da imprensa, permitindo a circulação mais rápida de conhecimentos novos e antigos. No sentido estrito de polimatia utilizado por Burke, de estudiosos acadêmicos, segundo o autor, poucos dos multifacetados “homens renascentistas” na Europa deste período se enquadram nesse perfil. Foi uma época em que muitos artistas e engenheiros se situavam em uma posição semelhante aos acadêmicos, com frequência empregando técnicas de um campo a outro do conhecimento. Isso, segundo o autor, ajuda a demonstrar como “os polímatas contribuem para o conhecimento, transferindo ideias e práticas de uma disciplina a outra” (p. 73), como foi o caso, entre outros, de Filippo Brunelleschi e Leonardo da Vinci.

Considerado o maior exemplo do “homem renascentista”, Leonardo da Vinci, autodidata na maioria dos campos em que atuou, deixou quase sete mil páginas de anotações em seus cadernos. Voltou-se, por curiosidade, para o estudo da anatomia e a prática da dissecação, foi entusiasta da geometria e estudou ainda mecânica, hidráulica, química, botânica, zoologia, geologia e cartografia. Fez experimentos químicos, observações de plantas e do movimento da água, colecionou fósseis, calculou a idade das árvores através do exame de seus anéis, observou distintos animais e desenhou mapas. O lado negativo dessa vasta gama de interesses foram os fracassos também acumulados, ao não concluir muito de seus projetos – o que levou Burke a cunhar a expressão “síndrome de Leonardo”, em relação a polímatas que não “conseguiram completar seus projetos devido à dispersão de sua energia e interesses” (p. 79).

Mas é apenas sobre os “homens” renascentistas e polímatas que Burke trata em seu livro? E as mulheres? Neste capítulo o autor traz exemplos de mulheres instruídas e polímatas em períodos anteriores. Nesse caso, na Antiguidade tardia, ele dá o exemplo Hipátia de Alexandria, da abadessa alemã Hildegarda de Bingen e, na fronteira do final da Idade Média, para o início do Renascimento, Cristina de Pisano que, em 1405, escreveu sua obra mais conhecida, “Cidade das Mulheres” (Cité des dames), defendendo a capacidade feminina e apresentando algumas mulheres famosas do passado. Burke lembra que, no período da Europa renascentista, “as mulheres tinham de superar uma série de obstáculos, principalmente a exclusão da universidade – se não em princípio, na prática, graças à visão disseminada de que o conhecimento não era coisa para mulheres. Elas deviam se limitar aos trabalhos domésticos, ser mães ou freiras” (p. 81). As “mulheres renascentistas” mais famosas por seu saber foram as italianas Isotta Nogarola, Laura Cereta e Cassandra Fedele, a alemã Caritas Pirckheimer, a espanhola Beatriz Galindo, a inglesa Margarida Roper e a francesa Marie de Gournay, provavelmente, a mais notável delas, segundo o autor, chegando a escrever “um polêmico tratado sobre a igualdade entre homens e mulheres” (p. 84).

O capítulo seguinte,  A era dos “monstros da erudição” – 1600-1700, destaca, segundo Burke, a idade de ouro, dos polímatas. De sua lista de 500 nomes descritos no Apêndice, noventa e dois nasceram entre 1570 e 1669. Entre os homens, constam nomes, como: Francis Bacon, Hugo Grotius, Tychi Brahe, Johannes Kepler, Galileu, René Descartes, Pierre Gassendi, Blaise Pascal, Christopher Wren, Isaac Newton e Johan Heinrich Alsted Jan Amos Komenský, mais conhecido por Comenius. Entre as mulheres, estão: Marie de Gournay (comentada no final do capítulo anterior); Bathsua Makin; Anna Maria van Schurman; Isabel, a princesa Palatina; Margaret Cavendish; Cristina, rainha da Suécia; Elena Corner; e, Juana Ramírez, mais conhecida como Sóror Juana Inés de la Cruz.

Para Burke, foi a presença de uma série de indivíduos denominados por Hermann Boerhaave de “monstros da erudição” que fez o século XVII ser chamado de era de ouro dos polímatas. Foram indivíduos que produziram em grande quantidade, abarcando diferentes disciplinas. Seus feitos ganham maior fascínio “quando se lembra que seu saber resultara da leitura à luz de velas e que seus livros foram escritos à mão, com uma pena” (p. 99). Na seleta lista de Burke, dos gigantes ou monstros da erudição, são mencionados Nicolar-Claude Fabri de Peiresc, Juan Caramuel, Olof Rudbeck, o Velho, Athanasius Kircher, Pierre Bayle e Gottfried Wilhelm Leibniz.

E o que explicaria o século XVII como a era de ouro dos polímatas? Segundo Burke, não se trata “do nascimento milagroso de gigantes (ou monstros)”, mas sim de “mudanças sociais e culturais” (p. 124) na época. A descoberta do Novo Mundo pelos europeus e um contato mais avançado com países asiáticos e africanos, assim como a chamada Revolução Científica com a introdução de novos instrumentos de estudo (como o telescópio e o microscópio) estimularam uma mudança qualitativa e quantitativa na produção do saber. Outro ponto que Burke chama atenção diz respeito ao aumento da correspondência entre acadêmicos na Europa, estimulado pela revolução nas comunicações e pela reorganização da chamada Comunidade do Saber ou República das Letras (Respublica litterarum). Outrossim, essa expansão do sistema postal ainda propiciou o surgimento de jornais e revistas, periódicos eruditos.

Com essa nova forma de comunicação, foi possível ter acesso a artigos eruditos, obituários de estudiosos, relatos de experimentos e resenhas de livros – na época um novo gênero literário –, o que possibilitou aos leitores maior atualização “com os acontecimentos do mundo do saber” (p. 127). A partir dessa revolução e expansão da comunicação, houve também uma crise do conhecimento, descrita por muitos dos estudiosos da época devido à quantidade de obras publicadas, à ansiedade provocada pela explosão do conhecimento e à sobrecarga de informação. Esses fatores levaram Burke a afirmar que o século XVII deve ser lembrado como a era de ouro dos polímatas, uma vez que, para as gerações subsequentes, se tornaria mais difícil “viver de acordo com o ideal do conhecimento universal” (p. 130).

No capítulo quatro, A era do “homem de letras” – 1700-1850 , percebemos que o século XVIII trouxe maiores complexidades aos polímatas, quando o termo passou a ter uma carga mais pejorativa devido às críticas recebidas por muitos de seus expoentes declarados como “charlatões”. O ideal de “polivalência não foi abandonado nesse momento, mas acabou sendo limitado, baixando a barra sobre a qual os candidatos ao título tinham de saltar” (p. 142). Foi quando surgiu o novo ideal de gens de letres “(geralmente, mas nem sempre, homens)” (p. 143), que seria um “indivíduo que, além de escrever poemas, peças ou romances, fazia contribuições para as humanidades e mostrava interesse pelas ciências naturais” (p. 144). Nesse sentido, os salons e os periódicos culturais proliferaram e tiveram ainda mais importância no século XVIII.

Alguns nomes de destaque nesse período foram os de Montesquieu, Voltaire, Diderot, D’Alembert, Hume, Adam Smith, Samuel Johnson, Sir William Jones, Lorenzo Herváz y Panduro, Gaspar Melchor de Jovellanos, Benito Jerónimo Feijoo, Giambattista Vico, Carlos Lineu, Emanuel Swedenborg, Mikhail Lomonosov, Rudjer Bošković, Pedro de Peralta, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Samuel Coleridge, Thomas De Quincey, Johann Wolfgang von Goethe, os irmãos Wilhelm e Alexander von Humboldt, Auguste Comte, Herbert Spencer, Karl Marx e Charles Darwin. Burke também destaca a presença de Émilie du Châtet, Maria Gaetana Agnesi, Germaine de Staël, Dorothea Schlözer, Mary Somerville, Harriet Martineau e Mary Ann Evans. Foi nesse período que uma outra crise do conhecimento se pronunciou, com o advento de novas instituições e universidades, o que incentivou as práticas de especialização.

No capítulo cinco, A era da territorialidade – 1850-2000, Burke descreve essa segunda crise, com a expansão do conhecimento acadêmico e a ascensão do “Estado da informação” por meio dos governos na época. Nas universidades, houve uma maior divisão departamental para incluir as novas disciplinas que se desenvolviam, quando temáticas de interesse estudadas por indivíduos de formação distintas passaram a se transformar em disciplinas autônomas de determinados campos. Essas novas disciplinas rapidamente se fragmentaram, a exemplo da história, que se dividiu em períodos (antiga, medieval e moderna) e se repartiu em história econômica e história da ciência. Outro exemplo que o autor menciona é a geografia, dividida em geografia física e geografia humana (que, no caso da segunda, logo se desmembraria em geografia econômica e geografia política, também conhecida como “geopolítica”). Nesse sentido, Burke ressalta ter ficado “mais difícil atravessar as fronteiras entre as disciplinas, o que produziu um cenário de “tribos e territórios acadêmicos” (p. 209).

À parte da crescente tendência à departamentalização e especialização do ensino universitário, outras instituições de conhecimento também se tornaram mais especializadas, com a criação de museus, sociedades, congressos e periódicos focados a algum campo específico. No entanto, esse movimento de especialização não demoraria para cindir sob suas bases, e o que havia sido uma resposta à sobrecarga de informações, logo passou a ser percebido como um novo problema. Com isso, houve uma defesa em prol de uma formação pautada por saberes gerais, a fim de abarcar não apenas os detalhes do conhecimento, mas os possíveis padrões e o quadro geral que eles podiam fornecer. Ainda neste capítulo, Burke introduz alguns polímatas mais conhecidos entre os estudiosos contemporâneos, dividindo-os entre passivos, agrupados e seriais: H. G. Wells, Aldous Huxley, Max Weber, Jorge Luis Borges, Johan Huizinga, José Ortega y Gasset, Franz Boas, Marcel Mauss, Edmund Wilson, Sigmund Freud, Norbert Elias, Gregory Bateson, Georg Steiner, Alan Turing, Umberto Eco, Susan Sontag, Michel Foucault, Michel de Certeau, entre outros/as.

No capítulo seis, Um retrato de grupo,  o autor retoma os  anteriores, ressaltando algumas características gerais dos polímatas, fazendo uma análise e sintetizando seu argumento. Aqui ele destaca os seguintes traços identificados entre os nomes então citados: curiosidade, capacidade de concentração, boa memória, velocidade em assimilar diferentes tipos de conhecimentos e informações, imaginação, energia, inquietação, esforço e disciplina de trabalho, organização do tempo, competição e elementos lúdicos.

Já nos capítulos sete e oito, o autor prioriza o ambiente geográfico e social onde os indivíduos cresceram e grupos foram desenvolvidos, além dos estudos interdisciplinares – redes de relações que interferem e/ou estimulam uma prática polimática – e grupos multidisciplinares, por meio dos quais são trazidos à tona os projetos comuns, movimento que se tornou tendência internacional entre as décadas de 1960 e 1970 e permanece ativo em alguns lugares. Um fato relevante nesse sentido foi a abertura de estudos para grupos historicamente negligenciados, como negros, mulheres e latinos.

Susan Sontag | Imagem: Reuters

Burke finaliza seu texto sinalizando que atravessamos, hoje, uma terceira crise de conhecimento, com a quantidade exponencial de informação disponível na Internet e as transformações provocadas pela cultura digital, que nem sempre dá o tempo e as técnicas necessárias para que a informação se traduza ou se configure em conhecimento. Para os periódicos culturais, essa situação é ainda mais agravante, uma vez que o tempo de leitura que tais publicações necessitam não se adequam ao da velocidade cada vez maior de notícias veiculadas e transmitidas em diferentes canais de informação e comunicação, como as redes sociais e os textos curtos. Ao se perguntar se os polímatas vão sobreviver nesse novo cenário social, Burke acentua que nessa “era de hiperespecialização, mais do que nunca precisamos desses indivíduos” (p. 367).

Ao final, e corroborando Carlota Boto, tem-se que a leitura “proporciona, a um só tempo, aprendizado e fruição” (2021, p. 170). A impressão que fica é a de que o autor britânico atendeu com méritos aos objetivos então propostos. Ao descrever tendências sociais e intelectuais que favorecem ou desfavorecem empreendimentos polimáticos, Burke dá uma contribuição interdisciplinar a diferentes campos do conhecimento – mais acentuadamente aos estudos historiográficos, biográficos, linguísticos, sociológicos, antropológicos, filosóficos e pedagógicos –, situando figuras históricas e o relevo científico, social, político e cultural de suas produções, que não se limitam àquelas que os tornaram reconhecidos; na verdade, amplia, consideravelmente, o escopo, semelhante ao que os nomes listados e apresentados em sua obra fizeram.  Mas Burke oferece ainda outras vantagens ao leitor que também quer narrar experiências de polímatas. Em breves passagens, ele literalmente ensina a evitar anacronismos, combinar generalizações com estudos de caso, expressar êxitos e fracassos, honestidades e charlatanismos intelectuais e, principalmente, ensina a esboçar classificações absolutamente interessadas ao historiador, no sentido de tornar a escolha das fontes a mais produtiva e lógica possível. Tais ensinamentos, porém, só farão sentido se o leitor não conceber a história dos polímato como uma experiência evolutiva, da erudição à especialização (do século XV ao século XX), como podem sugerir a designação e a periodização do plano da obra.


Sumário de O polímata

  • Introdução: O que é um polímata?
    • Definições
    • Disciplinas
    • Objetivos e métodos
    • Tipos de polímata
    • A mitologia dos polímatas
  • 1 Oriente e Ocidente
    • Os gregos
    • Os romanos
    • China
    • Início da Idade Média europeia
    • O mundo islâmico
    • A Alta Idade Média
  • 2 A era do “homem renascentista” – 1400-1600
    • O ideal de universalidade
    • O mito da universalidade
    • Ação e pensamento
    • Estudiosos acadêmicos
    • Unidade e concórdia
    • Artistas e engenheiros
    • Leonardo
    • A mulher renascentista
  • 3 A era dos “monstros da erudição” – 1600-1700
    • A era dos polímatas
    • Mulheres polímatas
    • A linguagem da polimatia
    • O polímata como enciclipedista: Alsted
    • O polímata como pansofista: Comenius
    • Monstros da erudição
    • O polímata como colecionador: Peiresc
    • O polímata como filósofo escolástico: Caramuel
    • O polímata como patriota: Rudbeck
    • O polímata como pansofista: Kircher
    • O polímata como crítico: Bayle
    • O polímata como sintetizador: Leibniz
    • Polímatas menores
    • Concórdia
    • Originalidade versus plágio
    • Explicando a era de ouro
    • A crise do conhecimento
    • Sobrecarga de informação
    • Fragmentação
    • Polímatas sob fogo
    • Síndrome de Leonardo
  • 4 A era do “homem de letras” – 1700-1850
    • O século XVIII
    • Pedantes e polyhistors
    • Um novo ideal
    • Homens de letras
    • Mulheres de letras
    • O Iluminismo francês
    • O Iluminismo escocês
    • O Iluminismo inglês
    • Da Espanha à Rússia
    • O Novo Mundo
    • Inglaterra
    • Alemanha
    • Construtores de sistemas
    • A sobrevivência do homem de letras
    • Críticos franceses
    • Críticos ingleses
    • A nova mulher de letras
    • Cientistas
    • Cientistas alemães
    • Cientistas britânicos
    • Rumo a uma nova crise
  • 5 A era da territorialidade – 1850-2000
    • Polímatas em clima frio
    • Sobrecarga
    • Especialização
    • A divisão das instituições
    • Museus, sociedades e congressos
    • Periódicos
    • Duas culturas
    • Trabalho em equipe
    • A departamentalização das universidades
    • Explicando a especialização
    • A especialização se torna o problema
    • A sobrevivência do polímata
    • Polímatas passivos
    • Críticos
    • Polímatas agrupados
    • Novas disciplinas
    • As ciências sociais
    • Sociologia
    • Psicologia
    • Antropologia
    • Ciência da computação
    • Sistemas gerais
    • Semiótica
    • Seis polímatas seriais
    • Gigantes ou charlatões
  • 6 Um retrato de grupo
    • Curiosidade
    • Concentração
    • Memória
    • Velocidade
    • Imaginação
    • Energia
    • Inquietação
    • Trabalho
    • Contando o tempo
    • Competição
    • O elemento lúdico
    • Ouriços e raposas
    • Síndrome de Leonardo
  • 7 Hábitats
    • A ético do trabalho
    • A questão Veblen
    • Educação
    • Independência
    • Ócio forçado
    • Famílias
    • Redes
    • Cortes e patronato
    • Escolas e universidades
    • Disciplinas
    • Bibliotecas e museus
    • Enciclopédias e periódicos
    • Colaboração
  • 8 A era da interdisciplinaridade
    • Arranjos semiformais
    • Unificação do conhecimento na teoria e na prática
    • Pesquisa interdisciplinar nas universidades
    • Educação geral
    • O papel do governo
    • Estudos de área
    • Novas universidades
    • Periódicos e institutos
    • História interdisciplinar
    • Ambição versus modéstia
  • Coda: rumo a uma terceira crise
  • Apêndice: quinhentos polímatas ocidentais
  • Referências bibliográficas
  • Leituras complementares

Resenhista

José Douglas Alves dos Santos é doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, onde também possui graduação em Pedagogia. Pesquisador do O Núcleo Infância, Comunicação, Cultura e Arte (NICA/UFSC) e escritor fatimense, publicou, entre outros trabalhos, Intersecções entre cinema, educação e ensino de história (em coautoria com Marizete Lucini); Ciência, educação e sociedade: uma leitura sobre “O menino que descobriu o vento” (em coautoria com Machaia M. Mualaca); O cinema como elemento formativo cultural: articulação de narrativas, estéticas e memórias em Fátima/BA (em coautoria com Jonielton Oliveira Dantas); O palácio da memória, ou: da arte de contar histórias; e Cartas às crianças do futuro: narrativas sobre a pandemia Covid-19 (em coautoria com Monica Fantin). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7263-4657. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0393956017972311. E-mail: jdneo@hotmail.com.


Para citar esta resenha

BURKE, Peter. O polímata: uma história cultural – De Leonardo da Vinci a Susan Sontag. São Paulo: Editora Unesp, 2020. 495p. Trad.: Renato Prelorentzou. Resenha de: SANTOS, José Douglas Alves dos. História cultural de grandes pensadores. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, p.32-41 maio/jun. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/?p=2716>


Outras resenhas sobre o mesmo livro

Roberto Macedo – Estadão (2021)

Carlota Boto – Revista USP (2021)

Baixar esta resenha em PDF


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, maio/jun. 2022 | ISSN 2764-2666

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisa/Search

Alertas/Alerts

A história cultural de grandes pensadores – Resenha de “O Polímata: Uma história cultural – De Leonardo da Vinci a Susan Sontag”, de Peter Burke

Resenhado por José Douglas Alves dos Santos (NICA/UFSC) | 27 abril 2022.


Peter Burke | Foto: Ricardo Matsukawa/VEJA.com

O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag foi publicado, simultaneamente, no ano de 2020, em língua inglesa pela Yale University Press e em língua portuguesa pela Editora Unesp. Mais recente livro do historiador inglês Peter Burke – professor da Universidade de Cambridge e considerado um dos intelectuais mais conceituados a respeito da Idade Moderna europeia e da história cultural –, traz uma narrativa cativante que se destaca pela “erudição e clareza”, como descreveu o jornalista João Pombo Barile (2021), e por “seu caráter pedagógico”, como sugeriu a professora e escritora Carlota Boto (2021).

O livro trata da história cultural de pensadores/as que influenciaram, sobremaneira, seus períodos históricos e os subsequentes, por meio de saberes vastos e de uma prolífica atuação no trabalho da produção do conhecimento, a exemplo de Hipátia de Alexandria, Cristina de Pisano, Alberto, o Grande, Leonardo da Vinci, Francis Bacon, Blaise Pascal, Comenius, Marie de Gournay, Sóror Juana Inés de la Cruz, Gottfried Wilhelm Leibniz, Giambattista Vico, os irmãos Wilhelm e Alexander von Humboldt, Charles Darwin e, entre alguns mais recentes, Norbert Elias, Umberto Eco, Susan Sontag e Michel de Certeau. Burke traz relevo “sobre indivíduos e pequenos grupos interessados no quadro geral nos detalhes, muitas vezes dedicados à transferência ou ‘tradução’ de ideias e práticas de uma disciplina para outra” (p. 16). Em outras palavras, indivíduos e grupos que se empenharam em aprofundar seu olhar sobre assuntos mais específicos como a ampliar seu campo de visão por meio das relações e associações promovidas com outras disciplinas, matérias e intelectuais.

O livro é dividido em oito capítulos, além da introdução, do texto que conclui a obra e de outros elementos pré e pós-textuais (lista de imagens, prefácio e agradecimentos, apêndice, referências bibliográficas, leituras complementares e índice remissivo). Na introdução, Burke vai responder a pergunta “O que é um polímata?”, ressaltando que “o termo, outrora confinado aos estudiosos, estendeu-se a indivíduos cuja realizações vão do atletismo à política” (p. 20). No entanto, em sua obra, ele se concentra nos estudiosos, “nos gigantes” (p. 24), pessoas cujo conhecimento acadêmico, antes denominado “erudição” como assim se refere, foram fundamentais para o avanço histórico-científico.

Para o autor, trata-se de uma prosopografia, “uma biografia coletiva de um grupo de quinhentos indivíduos que atuaram no Ocidente entre o século XV e o XXI” (p. 23). Todavia, mais que “uma galeria de retratos individuais”, comenta Burke, um dos principais objetivos de sua obra é “descrever algumas tendências sociais e intelectuais” que ajudam a “responder perguntas gerais sobre formas de organização social e climas de opinião favoráveis ou desfavoráveis aos empreendimentos polimáticos” (p. 24). Ademais, ele relata que uma das preocupações do estudo “é a sobrevivência dos polímatas em uma cultura de crescente especialização” (p. 25). Em entrevista a Barile (2021), Burke chama atenção sobre o perigo representado pelo fim dos polímatas, cujo reflexo na sociedade estaria na perda de indivíduos capazes de ver as conexões entre os distintos campos do conhecimento, quando o quadro geral de análise pode então ser comprometido.

Após a breve introdução, no capítulo de abertura,  Oriente e Ocidente, Burke remete-se a pensadores de uma época pré-disciplinar, da Antiguidade clássica (grega e romana), China tradicional, do mundo islâmico e da Idade Média ocidental, em que “vários indivíduos foram admirados por sua excepcional amplitude de conhecimento” (p. 33). O autor destaca que semelhante a outros debates e assuntos, o primeiro registro acerca do valor do conhecimento é encontrado na Grécia antiga. O primeiro dos nomes nessa lista indicada por Burke é Pitágoras de Samos (c. 570-c.495 a.C.), seguido dos sofistas de sua época, que, mais abrangentes que o próprio Pitágoras “talvez possam ser definidos como enciclopédias ambulantes” (p. 35), sendo um dos mais famosos deles Hípias de Élis (c.460-399 a. C.). Outro nome de destaque no período foi Aristóteles (384-322 a.C.) que, para além de seus interesses em lógica, ética e metafísica, também se dedicou à matemática, retórica, poesia, teoria política, física, cosmologia, anatomia, fisiologia, história natural e zoologia. Outros dois nomes ainda figuram na lista dos gregos, Posidônio de Rodes (c. 135-c.51 a.C.) e o bibliotecário Eratóstenes de Cirene (245-194 a.C.), responsável pela mais famosa biblioteca do mundo greco-romano, a biblioteca de Alexandria.

Entre os romanos, dos polímatas exemplares descritos por Burke, encontra-se um grego expatriado, Alexandre de Mileto (Lúcio Cornélio Alexandre, 100-36 a.C.), bem como outros três mais conhecidos em textos clássicos: Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.), Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.) – autor da primeira enciclopédia que se tem registro –, e Plínio, o Velho (23-79). Fora da tradição ocidental, mais especificamente na China, Burke vai citar Hui Shi (370-310 a.C.), Su Song (1020-1101) e Shen Gua (1031-1095), este último, segundo o autor, considerado um Leibniz chinês. Retornando à tradição ocidental, quando na Antiguidade tardia e no início da Idade Média se testemunham “tanto uma crítica ao conhecimento secular quanto uma perda desse tipo de conhecimento” (p. 43), a tarefa fundamental dos polímatas, devido às circunstâncias, mais do que acrescentar foi tentar preservar e reunir os documentos e saberes da tradição clássica.

O mundo islâmico também é contemplado nesse primeiro capítulo, com nomes de destaque entre os séculos IX e XIV (de acordo com a cronologia ocidental, como comenta o autor): Al-Kind (801-73) – posteriormente, estudado por aquele que é considerado um dos maiores polímatas (senão o maior) da humanidade, Leonardo da Vinci –, Ibn Sina (c.980-1037), Ibn Rushd (1126-98) e Ibn Khaldun (1332-1406). Estes e outros pensadores trouxeram novas contribuições à produção do conhecimento, fazendo com que, na Alta Idade Média, ou na Idade Média tardia, o desafio tenha sido “recuperar e dominar não apenas o antigo conhecimento grego que se perdera, mas também o novo conhecimento produzido no mundo islâmico” (p. 51).

Nesse período, a maior inovação se deu com a criação, a partir do século XI, das universidades, com maior notabilidade em Bolonha e Paris, que institucionalizaram o que Burke denomina de pacote de disciplinas. Ainda que tenha havido os “primeiros sinais de especialização, alguns estudiosos medievais deram continuidade à tradição polimática” (p. 51), entre os quais: o monge Hugo de São Vítor (c. 1096-1141), o frade dominicano Vincente de Beauvais (c. 1190-1264), os ingleses Robert Grosseteste (c.1175-1253) e Roger Bacon (c.1214-c.1292), e os dois polímatas medievais mais ambiciosos na percepção de Burke: o dominicano alemão Alberto, o Grande (Alberto Magnus, c.1200-1280) e frade catalão Raimundo Lúlio (1232-1316) que, trezentos anos depois, atrairia o interesse de Leibniz, considerado pelo autor o maior polímata do século XVII.

O segundo capítulo,  A era do “homem renascentista” – 1400-1600, aborda o movimento hoje conhecido como Renascimento (que, se, por um lado, promoveu o ideal de polivalência ou do homem universal, do outro, suscitou o mito da universalidade) e a crescente quantidade de informação que passou a circular devido aos novos saberes oriundos da exploração marítima e terrestre e a invenção da imprensa, permitindo a circulação mais rápida de conhecimentos novos e antigos. No sentido estrito de polimatia utilizado por Burke, de estudiosos acadêmicos, segundo o autor, poucos dos multifacetados “homens renascentistas” na Europa deste período se enquadram nesse perfil. Foi uma época em que muitos artistas e engenheiros se situavam em uma posição semelhante aos acadêmicos, com frequência empregando técnicas de um campo a outro do conhecimento. Isso, segundo o autor, ajuda a demonstrar como “os polímatas contribuem para o conhecimento, transferindo ideias e práticas de uma disciplina a outra” (p. 73), como foi o caso, entre outros, de Filippo Brunelleschi e Leonardo da Vinci.

Considerado o maior exemplo do “homem renascentista”, Leonardo da Vinci, autodidata na maioria dos campos em que atuou, deixou quase sete mil páginas de anotações em seus cadernos. Voltou-se, por curiosidade, para o estudo da anatomia e a prática da dissecação, foi entusiasta da geometria e estudou ainda mecânica, hidráulica, química, botânica, zoologia, geologia e cartografia. Fez experimentos químicos, observações de plantas e do movimento da água, colecionou fósseis, calculou a idade das árvores através do exame de seus anéis, observou distintos animais e desenhou mapas. O lado negativo dessa vasta gama de interesses foram os fracassos também acumulados, ao não concluir muito de seus projetos – o que levou Burke a cunhar a expressão “síndrome de Leonardo”, em relação a polímatas que não “conseguiram completar seus projetos devido à dispersão de sua energia e interesses” (p. 79).

Mas é apenas sobre os “homens” renascentistas e polímatas que Burke trata em seu livro? E as mulheres? Neste capítulo o autor traz exemplos de mulheres instruídas e polímatas em períodos anteriores. Nesse caso, na Antiguidade tardia, ele dá o exemplo Hipátia de Alexandria, da abadessa alemã Hildegarda de Bingen e, na fronteira do final da Idade Média, para o início do Renascimento, Cristina de Pisano que, em 1405, escreveu sua obra mais conhecida, “Cidade das Mulheres” (Cité des dames), defendendo a capacidade feminina e apresentando algumas mulheres famosas do passado. Burke lembra que, no período da Europa renascentista, “as mulheres tinham de superar uma série de obstáculos, principalmente a exclusão da universidade – se não em princípio, na prática, graças à visão disseminada de que o conhecimento não era coisa para mulheres. Elas deviam se limitar aos trabalhos domésticos, ser mães ou freiras” (p. 81). As “mulheres renascentistas” mais famosas por seu saber foram as italianas Isotta Nogarola, Laura Cereta e Cassandra Fedele, a alemã Caritas Pirckheimer, a espanhola Beatriz Galindo, a inglesa Margarida Roper e a francesa Marie de Gournay, provavelmente, a mais notável delas, segundo o autor, chegando a escrever “um polêmico tratado sobre a igualdade entre homens e mulheres” (p. 84).

O capítulo seguinte,  A era dos “monstros da erudição” – 1600-1700, destaca, segundo Burke, a idade de ouro, dos polímatas. De sua lista de 500 nomes descritos no Apêndice, noventa e dois nasceram entre 1570 e 1669. Entre os homens, constam nomes, como: Francis Bacon, Hugo Grotius, Tychi Brahe, Johannes Kepler, Galileu, René Descartes, Pierre Gassendi, Blaise Pascal, Christopher Wren, Isaac Newton e Johan Heinrich Alsted Jan Amos Komenský, mais conhecido por Comenius. Entre as mulheres, estão: Marie de Gournay (comentada no final do capítulo anterior); Bathsua Makin; Anna Maria van Schurman; Isabel, a princesa Palatina; Margaret Cavendish; Cristina, rainha da Suécia; Elena Corner; e, Juana Ramírez, mais conhecida como Sóror Juana Inés de la Cruz.

Para Burke, foi a presença de uma série de indivíduos denominados por Hermann Boerhaave de “monstros da erudição” que fez o século XVII ser chamado de era de ouro dos polímatas. Foram indivíduos que produziram em grande quantidade, abarcando diferentes disciplinas. Seus feitos ganham maior fascínio “quando se lembra que seu saber resultara da leitura à luz de velas e que seus livros foram escritos à mão, com uma pena” (p. 99). Na seleta lista de Burke, dos gigantes ou monstros da erudição, são mencionados Nicolar-Claude Fabri de Peiresc, Juan Caramuel, Olof Rudbeck, o Velho, Athanasius Kircher, Pierre Bayle e Gottfried Wilhelm Leibniz.

E o que explicaria o século XVII como a era de ouro dos polímatas? Segundo Burke, não se trata “do nascimento milagroso de gigantes (ou monstros)”, mas sim de “mudanças sociais e culturais” (p. 124) na época. A descoberta do Novo Mundo pelos europeus e um contato mais avançado com países asiáticos e africanos, assim como a chamada Revolução Científica com a introdução de novos instrumentos de estudo (como o telescópio e o microscópio) estimularam uma mudança qualitativa e quantitativa na produção do saber. Outro ponto que Burke chama atenção diz respeito ao aumento da correspondência entre acadêmicos na Europa, estimulado pela revolução nas comunicações e pela reorganização da chamada Comunidade do Saber ou República das Letras (Respublica litterarum). Outrossim, essa expansão do sistema postal ainda propiciou o surgimento de jornais e revistas, periódicos eruditos.

Com essa nova forma de comunicação, foi possível ter acesso a artigos eruditos, obituários de estudiosos, relatos de experimentos e resenhas de livros – na época um novo gênero literário –, o que possibilitou aos leitores maior atualização “com os acontecimentos do mundo do saber” (p. 127). A partir dessa revolução e expansão da comunicação, houve também uma crise do conhecimento, descrita por muitos dos estudiosos da época devido à quantidade de obras publicadas, à ansiedade provocada pela explosão do conhecimento e à sobrecarga de informação. Esses fatores levaram Burke a afirmar que o século XVII deve ser lembrado como a era de ouro dos polímatas, uma vez que, para as gerações subsequentes, se tornaria mais difícil “viver de acordo com o ideal do conhecimento universal” (p. 130).

No capítulo quatro, A era do “homem de letras” – 1700-1850 , percebemos que o século XVIII trouxe maiores complexidades aos polímatas, quando o termo passou a ter uma carga mais pejorativa devido às críticas recebidas por muitos de seus expoentes declarados como “charlatões”. O ideal de “polivalência não foi abandonado nesse momento, mas acabou sendo limitado, baixando a barra sobre a qual os candidatos ao título tinham de saltar” (p. 142). Foi quando surgiu o novo ideal de gens de letres “(geralmente, mas nem sempre, homens)” (p. 143), que seria um “indivíduo que, além de escrever poemas, peças ou romances, fazia contribuições para as humanidades e mostrava interesse pelas ciências naturais” (p. 144). Nesse sentido, os salons e os periódicos culturais proliferaram e tiveram ainda mais importância no século XVIII.

Alguns nomes de destaque nesse período foram os de Montesquieu, Voltaire, Diderot, D’Alembert, Hume, Adam Smith, Samuel Johnson, Sir William Jones, Lorenzo Herváz y Panduro, Gaspar Melchor de Jovellanos, Benito Jerónimo Feijoo, Giambattista Vico, Carlos Lineu, Emanuel Swedenborg, Mikhail Lomonosov, Rudjer Bošković, Pedro de Peralta, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Samuel Coleridge, Thomas De Quincey, Johann Wolfgang von Goethe, os irmãos Wilhelm e Alexander von Humboldt, Auguste Comte, Herbert Spencer, Karl Marx e Charles Darwin. Burke também destaca a presença de Émilie du Châtet, Maria Gaetana Agnesi, Germaine de Staël, Dorothea Schlözer, Mary Somerville, Harriet Martineau e Mary Ann Evans. Foi nesse período que uma outra crise do conhecimento se pronunciou, com o advento de novas instituições e universidades, o que incentivou as práticas de especialização.

No capítulo cinco, A era da territorialidade – 1850-2000, Burke descreve essa segunda crise, com a expansão do conhecimento acadêmico e a ascensão do “Estado da informação” por meio dos governos na época. Nas universidades, houve uma maior divisão departamental para incluir as novas disciplinas que se desenvolviam, quando temáticas de interesse estudadas por indivíduos de formação distintas passaram a se transformar em disciplinas autônomas de determinados campos. Essas novas disciplinas rapidamente se fragmentaram, a exemplo da história, que se dividiu em períodos (antiga, medieval e moderna) e se repartiu em história econômica e história da ciência. Outro exemplo que o autor menciona é a geografia, dividida em geografia física e geografia humana (que, no caso da segunda, logo se desmembraria em geografia econômica e geografia política, também conhecida como “geopolítica”). Nesse sentido, Burke ressalta ter ficado “mais difícil atravessar as fronteiras entre as disciplinas, o que produziu um cenário de “tribos e territórios acadêmicos” (p. 209).

À parte da crescente tendência à departamentalização e especialização do ensino universitário, outras instituições de conhecimento também se tornaram mais especializadas, com a criação de museus, sociedades, congressos e periódicos focados a algum campo específico. No entanto, esse movimento de especialização não demoraria para cindir sob suas bases, e o que havia sido uma resposta à sobrecarga de informações, logo passou a ser percebido como um novo problema. Com isso, houve uma defesa em prol de uma formação pautada por saberes gerais, a fim de abarcar não apenas os detalhes do conhecimento, mas os possíveis padrões e o quadro geral que eles podiam fornecer. Ainda neste capítulo, Burke introduz alguns polímatas mais conhecidos entre os estudiosos contemporâneos, dividindo-os entre passivos, agrupados e seriais: H. G. Wells, Aldous Huxley, Max Weber, Jorge Luis Borges, Johan Huizinga, José Ortega y Gasset, Franz Boas, Marcel Mauss, Edmund Wilson, Sigmund Freud, Norbert Elias, Gregory Bateson, Georg Steiner, Alan Turing, Umberto Eco, Susan Sontag, Michel Foucault, Michel de Certeau, entre outros/as.

No capítulo seis, Um retrato de grupo,  o autor retoma os  anteriores, ressaltando algumas características gerais dos polímatas, fazendo uma análise e sintetizando seu argumento. Aqui ele destaca os seguintes traços identificados entre os nomes então citados: curiosidade, capacidade de concentração, boa memória, velocidade em assimilar diferentes tipos de conhecimentos e informações, imaginação, energia, inquietação, esforço e disciplina de trabalho, organização do tempo, competição e elementos lúdicos.

Já nos capítulos sete e oito, o autor prioriza o ambiente geográfico e social onde os indivíduos cresceram e grupos foram desenvolvidos, além dos estudos interdisciplinares – redes de relações que interferem e/ou estimulam uma prática polimática – e grupos multidisciplinares, por meio dos quais são trazidos à tona os projetos comuns, movimento que se tornou tendência internacional entre as décadas de 1960 e 1970 e permanece ativo em alguns lugares. Um fato relevante nesse sentido foi a abertura de estudos para grupos historicamente negligenciados, como negros, mulheres e latinos.

Susan Sontag | Imagem: Reuters

Burke finaliza seu texto sinalizando que atravessamos, hoje, uma terceira crise de conhecimento, com a quantidade exponencial de informação disponível na Internet e as transformações provocadas pela cultura digital, que nem sempre dá o tempo e as técnicas necessárias para que a informação se traduza ou se configure em conhecimento. Para os periódicos culturais, essa situação é ainda mais agravante, uma vez que o tempo de leitura que tais publicações necessitam não se adequam ao da velocidade cada vez maior de notícias veiculadas e transmitidas em diferentes canais de informação e comunicação, como as redes sociais e os textos curtos. Ao se perguntar se os polímatas vão sobreviver nesse novo cenário social, Burke acentua que nessa “era de hiperespecialização, mais do que nunca precisamos desses indivíduos” (p. 367).

Ao final, e corroborando Carlota Boto, tem-se que a leitura “proporciona, a um só tempo, aprendizado e fruição” (2021, p. 170). A impressão que fica é a de que o autor britânico atendeu com méritos aos objetivos então propostos. Ao descrever tendências sociais e intelectuais que favorecem ou desfavorecem empreendimentos polimáticos, Burke dá uma contribuição interdisciplinar a diferentes campos do conhecimento – mais acentuadamente aos estudos historiográficos, biográficos, linguísticos, sociológicos, antropológicos, filosóficos e pedagógicos –, situando figuras históricas e o relevo científico, social, político e cultural de suas produções, que não se limitam àquelas que os tornaram reconhecidos; na verdade, amplia, consideravelmente, o escopo, semelhante ao que os nomes listados e apresentados em sua obra fizeram.  Mas Burke oferece ainda outras vantagens ao leitor que também quer narrar experiências de polímatas. Em breves passagens, ele literalmente ensina a evitar anacronismos, combinar generalizações com estudos de caso, expressar êxitos e fracassos, honestidades e charlatanismos intelectuais e, principalmente, ensina a esboçar classificações absolutamente interessadas ao historiador, no sentido de tornar a escolha das fontes a mais produtiva e lógica possível. Tais ensinamentos, porém, só farão sentido se o leitor não conceber a história dos polímato como uma experiência evolutiva, da erudição à especialização (do século XV ao século XX), como podem sugerir a designação e a periodização do plano da obra.


Sumário de O polímata

  • Introdução: O que é um polímata?
    • Definições
    • Disciplinas
    • Objetivos e métodos
    • Tipos de polímata
    • A mitologia dos polímatas
  • 1 Oriente e Ocidente
    • Os gregos
    • Os romanos
    • China
    • Início da Idade Média europeia
    • O mundo islâmico
    • A Alta Idade Média
  • 2 A era do “homem renascentista” – 1400-1600
    • O ideal de universalidade
    • O mito da universalidade
    • Ação e pensamento
    • Estudiosos acadêmicos
    • Unidade e concórdia
    • Artistas e engenheiros
    • Leonardo
    • A mulher renascentista
  • 3 A era dos “monstros da erudição” – 1600-1700
    • A era dos polímatas
    • Mulheres polímatas
    • A linguagem da polimatia
    • O polímata como enciclipedista: Alsted
    • O polímata como pansofista: Comenius
    • Monstros da erudição
    • O polímata como colecionador: Peiresc
    • O polímata como filósofo escolástico: Caramuel
    • O polímata como patriota: Rudbeck
    • O polímata como pansofista: Kircher
    • O polímata como crítico: Bayle
    • O polímata como sintetizador: Leibniz
    • Polímatas menores
    • Concórdia
    • Originalidade versus plágio
    • Explicando a era de ouro
    • A crise do conhecimento
    • Sobrecarga de informação
    • Fragmentação
    • Polímatas sob fogo
    • Síndrome de Leonardo
  • 4 A era do “homem de letras” – 1700-1850
    • O século XVIII
    • Pedantes e polyhistors
    • Um novo ideal
    • Homens de letras
    • Mulheres de letras
    • O Iluminismo francês
    • O Iluminismo escocês
    • O Iluminismo inglês
    • Da Espanha à Rússia
    • O Novo Mundo
    • Inglaterra
    • Alemanha
    • Construtores de sistemas
    • A sobrevivência do homem de letras
    • Críticos franceses
    • Críticos ingleses
    • A nova mulher de letras
    • Cientistas
    • Cientistas alemães
    • Cientistas britânicos
    • Rumo a uma nova crise
  • 5 A era da territorialidade – 1850-2000
    • Polímatas em clima frio
    • Sobrecarga
    • Especialização
    • A divisão das instituições
    • Museus, sociedades e congressos
    • Periódicos
    • Duas culturas
    • Trabalho em equipe
    • A departamentalização das universidades
    • Explicando a especialização
    • A especialização se torna o problema
    • A sobrevivência do polímata
    • Polímatas passivos
    • Críticos
    • Polímatas agrupados
    • Novas disciplinas
    • As ciências sociais
    • Sociologia
    • Psicologia
    • Antropologia
    • Ciência da computação
    • Sistemas gerais
    • Semiótica
    • Seis polímatas seriais
    • Gigantes ou charlatões
  • 6 Um retrato de grupo
    • Curiosidade
    • Concentração
    • Memória
    • Velocidade
    • Imaginação
    • Energia
    • Inquietação
    • Trabalho
    • Contando o tempo
    • Competição
    • O elemento lúdico
    • Ouriços e raposas
    • Síndrome de Leonardo
  • 7 Hábitats
    • A ético do trabalho
    • A questão Veblen
    • Educação
    • Independência
    • Ócio forçado
    • Famílias
    • Redes
    • Cortes e patronato
    • Escolas e universidades
    • Disciplinas
    • Bibliotecas e museus
    • Enciclopédias e periódicos
    • Colaboração
  • 8 A era da interdisciplinaridade
    • Arranjos semiformais
    • Unificação do conhecimento na teoria e na prática
    • Pesquisa interdisciplinar nas universidades
    • Educação geral
    • O papel do governo
    • Estudos de área
    • Novas universidades
    • Periódicos e institutos
    • História interdisciplinar
    • Ambição versus modéstia
  • Coda: rumo a uma terceira crise
  • Apêndice: quinhentos polímatas ocidentais
  • Referências bibliográficas
  • Leituras complementares

Resenhista

José Douglas Alves dos Santos é doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, onde também possui graduação em Pedagogia. Pesquisador do O Núcleo Infância, Comunicação, Cultura e Arte (NICA/UFSC) e escritor fatimense, publicou, entre outros trabalhos, Intersecções entre cinema, educação e ensino de história (em coautoria com Marizete Lucini); Ciência, educação e sociedade: uma leitura sobre “O menino que descobriu o vento” (em coautoria com Machaia M. Mualaca); O cinema como elemento formativo cultural: articulação de narrativas, estéticas e memórias em Fátima/BA (em coautoria com Jonielton Oliveira Dantas); O palácio da memória, ou: da arte de contar histórias; e Cartas às crianças do futuro: narrativas sobre a pandemia Covid-19 (em coautoria com Monica Fantin). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7263-4657. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0393956017972311. E-mail: jdneo@hotmail.com.


Para citar esta resenha

BURKE, Peter. O polímata: uma história cultural – De Leonardo da Vinci a Susan Sontag. São Paulo: Editora Unesp, 2020. 495p. Trad.: Renato Prelorentzou. Resenha de: SANTOS, José Douglas Alves dos. História cultural de grandes pensadores. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, p.32-41 maio/jun. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/?p=2716>


Outras resenhas sobre o mesmo livro

Roberto Macedo – Estadão (2021)

Carlota Boto – Revista USP (2021)

Baixar esta resenha em PDF


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.5, maio/jun. 2022 | ISSN 2764-2666

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Resenhistas

Privacidade

Ao se inscrever nesta lista de e-mails, você estará sujeito à nossa política de privacidade.

Acesso livre

Crítica Historiográfica não cobra taxas para submissão, publicação ou uso dos artigos. Os leitores podem baixar, copiar, distribuir, imprimir os textos para fins não comerciais, desde que citem a fonte.

Foco e escopo

Publicamos resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas acadêmicas que tratem da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História. Saiba mais sobre o único periódico de História inteiramente dedicado à Crítica em formato resenha.

Corpo editorial

Somos professore(a)s do ensino superior brasileiro, especializado(a)s em mais de duas dezenas de áreas relacionadas à reflexão, produção e usos da História. Faça parte dessa equipe.

Submissões

As resenhas devem expressar avaliações de livros ou de dossiês de revistas acadêmicas autodesignadas como "de História". Conheça as normas e envie-nos o seu texto.

Pesquisa


Enviar mensagem de WhatsApp