O bairro de Tereza Cristina – Resenha de “Malinos, zuadentos, andejos e sibites: o Aribé nos anos 70 e 80”, de Tereza Cristina Cerqueira da Graça
Resenhado por Itamar Freitas (UFS) | ID: https://orcid.org/0000-0002-8542-4173.
Alguns personagens malignos, barulhentos, errantes, atrevidos e habitantes do bairro Siqueira Campos, na cidade de Aracaju (SE) são o objeto do novo livro de Tereza Cristina Cerqueira da Graça. Essa é a mensagem, traduzida em português culto, que o pitoresco título quer transmitir. Trata-se de uma memória de pessoas para registro da memória de uma pessoa, que é Teresa Cristina Cerqueira da Graça, historiadora da cultura, “malina”, “zuadenta”, “andeja”, “sibite” e moradora do bairro Aribé (oficialmente, Siqueira Campos), durante dois terços de sua vida.
É livro desafiador para os nossos tempos acelerados. Quinhentas e três páginas. Uma semana de leitura para quem dedica um turno diário. Lourival Santana foi feliz em seu prefácio. Escreveu pouco, usou convenções – “relato de memórias”, “acurada pesquisa histórica” sobre o “cotidiano de Aracaju”, baseado “em fontes primárias”, escrito em “estilo simples”, que incorporou o depoimento de “quase 120 pessoas”, “trouxe de volta objeto brincadeiras, lugares, cenários e pessoas”, vai “encher os olhos e a alma da geração da época” e despertar a “curiosidade dos jovens do presente”.
O livro é também desafiador porque não possui introdução integral formal, comunicando objetivos, fontes, meios, gênero e domínio. Do primeiro ao nono parágrafo, a autora faz historiografia convencional. Constrói o objeto, informando as designações do bairro e os significados, delimitando o espaço, sequenciando a incorporação de equipamentos urbanos (praça, escola, templo…), os proprietários e tipificando socialmente os moradores. Do décimo ao vigésimo quinto parágrafo, faz narrativa experimental (alguns dirão “crônica”). Põe um novo narrador em cena que conversa com o leitor com termos e frases pouco inteligíveis aos nascidos no século passado: “Aqui, você vai pegar uma marinete ou uma Kombi, sair do Parque Teófilo Dantas, passar pela ponte invisível da Avenida Canal, tremer o corpo nos trilhos da Leste […]”. Os termos datados, como “marinete” não estão entre aspas e são escritos conforme a prosódia (também datada): “luz negra”, “ralar suas fivelas”, “topado”, “paca!”, “coisinha”, “virgi”, “esquelepar”, “arrudiada”, “inxame”, “estopô” e “cabrunco”.
Encerrado esse roteiro virtual pelo bairro, o leitor é convidado a conhecer (em bordão de locutor de rádio, de auditório ou de circo – “Vem aí…”) pessoas, lugares e costumes do Aribé, distribuídos em três seções. Na primeira – “Malinos, zuadentos: a música e o teatro do Aribé” –, doze personagens coetâneos da autora, em sua maioria, são destacados, entre cantores, compositores, covers, grupos musicais de estilo vário: forró, samba, canção romântica, canção da MPB. Na segunda – “Andejos e sibites nas diversões da cidade” –, a autora retrata as situações de ócio e lazer: a saída ao cinema, as festas privadas, a participação nos blocos e escolas de samba e os cinemas do bairro. A última – “É do Siqueira? É gente boa! Outros personagens da memória aribeana” – narra vidas de gerações anteriores à da autora que marcaram a lembrança dos “malinos” e “zuadentos” apresentados na primeira seção. Somente ao final do livro – “Andejando numa conclusão” –, percebo que aqueles nove parágrafos seriam mais adequados como uma longa nota de rodapé, pois o livro começa, efetivamente (introdução), com “a garotinha” ou a “jovem saltitante” Tereza Cristina Cerqueira da Graça”, convidando os ex-garotinhos e ex-jovens do bairro, que lá viveram entre 1970 e 1980, a rememorarem pessoas, lugares e comportamentos que ela sugere terem cimentado alguma identidade para o Aribé.
Vivenciei grande parte da memória narrada no livro. Morava no bairro vizinho, o Novo Paraiso. Fiz o ensino fundamental no Siqueira Campos (colégios Walter Franco e Costa e Silva), frequentei as festas de São João, participei dos concursos de Quadrilha Junina, dos comícios do Partido dos Trabalhadores, das apresentações de teatro de rua na Praça D. José Tomás, fiz compras no Paes Mendonça, frequentei a Biblioteca Clodomir Silva, o bar Flor do Siqueira, os ambulatórios de saúde e o restaurante A Palhoça. Conheci Hilton Lopes, Tut Fred, pedi votos para Ismael e e bati muitas palmas para o Grupo Repente e o grande Pantera. A lista é longa…
| Foto: Létícia Assis
Assim, adoeci, me emocionei e me diverti em vários momentos da leitura. Meu ponto de vista, nesta resenha, porém, não é o do brincante. É como professor formador que me limita a apontar virtudes e vícios no texto limitadoras ou estimuladoras da escrita histórica de leitores/autores aprendizes e consumidores dessa obra.
Começo com os vícios. O primeiro deles é o desequilíbrio que alguns capítulos provocam em termos substantivos. O que trata do cinema é o principal. No livro, os cinemas não marcam episódios das pessoas. São somente locais. Com tão poucos depoimentos, enfraquecem a narrativa sobre o bairro (não imprimem traço diferenciador ao bairro Aribé/Siqueira Campos). O desequilíbrio está também na arquitetura da informação de alguns poucos capítulos. Na história da vida de “Agnaldo Batista”, o narrador expulsou o personagem em ¾ do tópico. Na história de vida do cantor e compositor “Sergival”, o formato currículo vitae predomina e destoa, por exemplo, da proveitosa biografia de “Pantera”. Alguns finais de biografias (p.189, 206, 231, 317) são bastante artificiais quando forçam uma volta do leitor ao bairro, já bastante distanciado ao longo da narrativa. Exemplos positivos são os finais das biografias de Isabel Nunes e de “Hilton Lopes”. As definições de índio (p.297), o histórico das lavanderias (p.236), do Axé music (p.266-267) e da revolta dos marinheiros (p.302), por exemplo, apesar de funcionarem como elementos de contexto, são dispensáveis pelo ruído que provocam em termos de coesão. Outra imperfeição está em localizadas transições da fala do autor à fala do depoente. Várias delas não apresentam coesão (p.73, p.134, p.136). Para que o leitor desta resenha possa também avaliar, sugiro que compare o que entendo como boa transição, presente na página 139 do mesmo livro.
A última imperfeição está no trato das imagens. Falta um mapa do bairro. Na ausência dele, cada leitor tem que imaginar uma figura para o Aribé (um círculo, uma cruz, um retângulo) e uma escala para as relações com o centro e as adjacências. Há também problemas com as representações fotográficas (Não me refiro ao procedimento normativo de registrar autoria, custódia etc. Trato da contextualização). As imagens compostas nas duas últimas páginas de cada capítulo ou seção têm função estética, mas as da abertura de capítulos compõem textos conexos aos escritos. Bem demarcados os tempos, espaços e circunstâncias de cada uma dessas aberturas, ampliariam o leque de significação de cada biografia.
Das virtudes, destaco e replico os comentários do prefaciador. É memória de costumes comuns e/ou história de fenômenos com baixa significação nas transformações políticas de aribeanos, aracajuanos e sergipanos, raramente inventariados e tratados por historiadores profissionais. Mas o que me chama a atenção é a experiência ordinária que vem à tona e a rara mistura entre tempo narrado e tempo da narração. O livro é atravessado pela tensão entre o desejo de expressar o bairro da personagem Teresa Cristina e o dever de a historiadora Cerqueira da Graça limitar uma noção de identidade e uma identidade para o lugar “Aribé” ou o lugar “Siqueira”. A maioria dos personagens são seus amigos, admirados, parceiros de bar, ideologia, segmento de classe e geração. Isso marca a migração dos “aribeanos” para outros locais da cidade e, principalmente, para o seu centro, criando, inclusive, uma periferia (bairros América, Getúlio Vargas, por exemplo) de outra periferia que é o bairro Siqueira Campos. Entretanto, há capítulos e tópicos integralmente dedicados a (provavelmente) domar essa deformação, descrevendo, a instalação dos primeiros equipamentos urbanos, o parcelamento do solo, as prescrições sobre os limites do território e alguns personagens fundadores.
Do tempo narrado, o livro abre uma janela para observarmos à distância a vida como ela é (ou à experiência ordinária referida acima). Os personagens não são espelho de trajetórias comuns. São artistas reconhecidos fora do bairro, em sua maioria. Os intertextos o revelam (instituições, autoridades, programas etc.). Mas são pessoas comuns e normais em comportamento. São talentosas, piedosas, religiosas, esbanjadoras, conservadoras, moralistas, preconceituosas, autoritárias, oportunistas, trapaceiras, avaras, clientelistas, pragmáticas, céticas, crentes, dignas (como bem o exige a vida cotidiana dos pobres) que expressam a mudança histórica por todo tipo de razão (sorte ou azar, subserviência ou estrutura social), sem que o narrador se arvore (na maioria dos casos) a tomar alguma posição a favor ou contra.
Entre a raridade do tema e a qualidade da informação, há motivos de sobra para o aprendiz da história da cultura e da história local comprar e ler o livro, além das clássicas funções que o impresso cumpriria: fonte sobre costumes, gente comum, narrativa sobre história do lugar etc. Gostaria, neste final, de apontar mais um aspecto à reflexão no tocante às definições dos gêneros típicos de escritos de vida. Afinal, o livro de Cerqueira da Graça é biografia, autobiografia ou memória? Não há definições na introdução, e a autora tem a liberdade de não anunciar autoclassificações. Mas você, que está se iniciando na área, tem o dever de comunicá-lo. Penso que a leitura desse livro ajuda a você tomar uma decisão. Em geral, e seguindo rudimentos desse domínio (escritos de vida), ela poderia optar por circunscrever seu texto a partir do objeto, da autoria do método. Vou exemplificar apenas a opção autoria. Nessa classe, livro seria um escrito de si sobre os outros (biografia), um escrito de si sobre eventos que envolvem outros (memória) ou um escrito de si sobre si (autobiografia). Entendo que os Malinos, zuadentos… fogem aos três tipos e se encaixam em um quarto pouco comum: trata-se de uma auto-biografia (com hífen), ou seja, uma escrita da vida de aribeanos com a inclusão deliberada da vida de quem escreve em cada capítulo que, formal e originalmente, não seria dedicado à esta vida.
Cerqueira da Graça faz outra experimentação também incomum. Ela mistura estratégias de composição ficcional e composição de historiador convencional. Apresenta testemunhos em texto recuado, emprega duplo sistema de referenciação (textual e em pé de página), impõe ao leitor um vocabulário (sem aspas) e uma prosódia ininteligíveis aos moradores do bairro e varia o foco narrativo a todo tempo: “meus avós” (no rodapé, p.96), “Tereza Cristina Cerqueira” (p.123), “como vimos” (p.147), “pelo que se pode depreender” (p.276), “eu não tinha dinheiro para frequentar a cantina do Bizu” (p.282). Ela pode fazer isso? Pode, mas você que se inicia nesse domínio não terá o estofo de títulos acadêmicos, livros publicados, décadas de docência nos ensinos escolar e universitário e o reconhecimento social da Tereza Cristina Cerqueira da Graça nos meios políticos e intelectuais para justificar essas peculiaridades. Portanto, ao iniciar o seu texto, você, aprendiz e admirador de Cerqueira da Graça, ao menos, diga para o leitor que vai fazer uma auto-biografia em narrativa de tipo experimental.
Sumário de Malinos, zuadentos, andejos e sibites: o Aribé nos anos 70 e 80
- Agradecimentos
- Apresentação
- Introdução
- I. Malinos, zuadentos: a música e o teatro do Aribé
- José Augusto Sergipano, o sucesso nacional
- Lucinha Fontes, a mais bela voz do Nordeste
- Brasinha, o menino cantor
- Vem aí… Tut Fred, o Nelson Ned de Sergipe!
- Agnaldo Batista, o compositor do Bar dos Estudantes
- Ave, chegou de supetão! Carvalhinho e o Repente
- Bora brincar de samba? A rapaziada do Black Samba
- Sergival e os Rala-buchos do Aribé
- Pantera: um violão nas calçadas
- Rivando Góis, o Rauzito sergipano
- Sérgio Lucas, um juiz no forró
- Isabel Nunes, a carnavalesca de Ará
- Hilton Lopes, o “Pajé do Aribé”
- Severo D’Acelino e o Grfacaca
- II. Andejos e Sibites nas diversões da cidade
- Entre pra dentro, menino, que o filme vai começar! Cinemas do Siqueira
- Ei, onde vai ter embalo? Hi-fis, boate a bares do Aribé
- Avie, que o bloco já tá passando! O Siqueira nos Carnavais de Aracaju
- Batendo as Sete Freguesias: andejos nos agitos de Ará
- III. É o do Siqueira? É gente boa! Outros personagens da memória aribeana
- Mariano Salmeron, um desbravador
- É caixão de Lió!
- Dona Eulina e a escola de consertar menino
- Zé da Farmácia, o político amigo
- Florival Freitas, o alfaiate
- Enaldo Silva, o irrequieto
- Murilão na memória de amigos
Resenhista
Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), Professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe, e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Piragibe da Fonseca (1903-1986)”. ID: https://orcid.org/0000-0002-8542-4173; Email: itamarfreitas@gmail.com.
Para citar esta resenha
GRAÇA, Teresa Cristina Cerqueira da. Malinos, zuadentos, andejos e sibites: o Aribé nos anos 70 e 80. Aracaju: Códice, 2021. 503p. Resenha de: FREITAS, Itamar. O bairro de Tereza Cristina. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.6, p., jul./ago. 2022. Disponível em<https://www.criticahistoriografica.com.br/o-bairro-de-tereza-cristina-resenha-de-malinos-zuadentos-andejos-e-sibites-o-aribe-nos-anos-70-e-80-de-tereza-cristina-cerqueira-da-graca/>
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Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.6, jul./ago. 2022 | ISSN 2764-2666