O Zakhor de Yerushalmi: memória e historiografia judaicas
Por Sabrina Costa Braga (RTH-UFG) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9164-7560.
Neste artigo, faço uma apresentação e uma breve discussão da tese do historiador Yosef Hayim Yerushalmi em seu livro Zakhor: história judaica e memória judaica (1982). Trata-se de obra pouco citada na academia brasileira, embora seja importante referência internacional nos estudos sobre a memória. (Palavras-chave: Zakhor; Yosef Hayim Yerushalmi; Memória judaica; Historiografia judaica).
More than that, it is the very nature of what and how I study, how I teach and what I write, that represents a radically new venture. I live within the ironic awareness that the very mode in which I delve into the Jewish past represents a decisive break with that past.
Yerushalmi, 1996, p. 81.
O livro Zakhor: história judaica e memória judaica foi lançado em 1982. De autoria do historiador judeu e acadêmico norte americano Yosef Hayim Yerushalmi[1], a obra versa sobre a relação entre o conhecimento histórico e a memória coletiva judaica e se tornou significante para a compreensão do pensamento judeu e a identidade judaica pós-holocausto, além de instigar e oferecer novos elementos para o debate mais amplo sobre memória e história. Espalhou-se rapidamente entre estudiosos e público leigo, judeus e não judeus e foi traduzido para o francês, alemão, hebreu, italiano e português. Em Zakhor, Yerushalmi organiza proposições que vinha expondo em obras anteriores como Clio and the Jews (1980) e parte da tentativa de compreender o que, em algum momento, pareceu-lhe um paradoxo:
[…] embora o judaísmo ao longo dos tempos tenha sido absorvido pelo significado da história, a própria historiografia desempenhou, na melhor das hipóteses, um papel auxiliar entre os judeus, ou frequentemente nenhum papel; e, concomitantemente, embora a memória do passado sempre tenha sido um componente central da experiência judaica, o historiador não foi o seu principal guardião (Yerushalmi, 1996, p. xxxiii – tradução minha).
Assim, para Yerushalmi, a assertiva comum de que os judeus são o povo mais bem orientado historicamente, ou que possuem uma memória longeva pode ser falsa a depender do que se entende por “memória” ou “história” (Yerushalmi, 1996, p. xxxiii). A relação entre memória coletiva judaica e historiografia é explorada da antiguidade à era moderna. Nessa empreitada, acabou por mostrar que a historiografia moderna é apenas uma das alternativas usadas pelos grupos humanos para organizar o seu passado e não necessariamente a melhor delas. Além de poder ameaçar o lugar da memória coletiva quando anula a sua proximidade privilegiada com o passado – pautada na premissa do presente como reatualização do passado, uma verdadeira atemporalidade judaica.
O primeiro capítulo da obra explora os fundamentos bíblicos e rabínicos da função da memória e da história para o povo judeu. Yerushalmi difere significado em história, memória e escrita da história partindo do imperativo Zakhor, palavra compatível com o verbo lembrar, que aparece com frequência na Bíblia hebraica, conclamando Israel a se lembrar, ao passo que proíbe o esquecimento (Yerushalmi, 1996, p. 5). A determinação do rememorar é incondicional, independente do caráter problemático da memória e aponta para o papel da memória na sobrevivência de um povo em dispersão global.
Yerushalmi (1996, p. xxxiv), em consonância com o conceito de memória coletiva cunhado por Maurice Halbwachs (1990), esclarece que a memória judaica não é uma metáfora, ou um arquétipo, mas uma vivência social sustentada e transmitida por esforços conscientes do grupo. No entanto, a dinâmica específica do funcionamento da memória judaica não é examinada por Halbwachs, que trata da memória coletiva dos grupos religiosos através do exemplo principal do cristianismo. Nessa perspectiva, é na matéria que os grupos religiosos garantiriam sua estabilidade, tendo a necessidade de se apoiar sobre um objeto, uma realidade durável, uma vez que o próprio grupo desejaria durar (Halbwachs, 1990, p. 155). A imutabilidade alcançada mediante uma estabilidade material nem sempre foi uma realidade para o povo judeu, de modo que não é a relação com o quadro espacial que garante a memória, mas o próprio compromisso com a memória possibilita a condição judaica:
Guarda-te, que não te esqueças do Senhor, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão (Deuteronômio 6:12-10).
Antes te lembrarás do Senhor teu Deus, que ele é o que te dá força para adquirires riqueza; para confirmar a sua aliança, que jurou a teus pais, como se vê neste dia (Deuteronômio 8:11-18).
Lembra-te dos dias da antiguidade, atenta para os anos de muitas gerações: pergunta a teu pai, e ele te informará; aos teus anciãos, e eles te dirão (Deuteronômio 32:7-7).
Com o exemplo dos trechos supracitados, tornam-se perceptíveis as vias através das quais o comando Zakhor, na Bíblia, aparece para evidenciar o pacto do povo judeu com Deus. É preciso não o esquecer, o que faz da memória um dever e uma condição de existência. O que interessou a Yerushalmi foi a maneira como esse comando para relembrar se relaciona com a escrita da história já que, como dito, não foi majoritariamente através da historiografia que a história do povo judeu foi abordada. O argumento de Yerushalmi parte da assertiva de que os gregos teriam, através de Heródoto, sido considerados os “pais da história” e destaca que, apesar disso, eles não viam um significado para a história como um todo e não visavam chegar a um conceito de história universal, ao contrário do povo judeu, estes os pais do sentido na história (meaning in history) (Yerushalmi, 1996, p. 8). Assim, o que chamamos história, para os gregos, seria aquilo cunhado por uma existência contra as falhas da memória, o esquecimento, pois, por mais que os homens fossem imortais através do recorrente ciclo da vida, da natureza e tudo o que existe sem a assistência humana,[2] os indivíduos são mortais, necessitando transformar seus feitos e trabalhos em algo permanente, rompendo a perecibilidade (Arendt, 2016, p. 59-63). Portanto, dizer que os judeus são os pais do sentido na história, significa que a religião bíblica não se desvincula da história, pelo contrário, é a história humana que evidencia a vontade de Deus e seu propósito, ou seja, Deus é conhecido quando se revela historicamente (Yerushalmi, 1996, p. 8-9). Atribuir um significado decisivo à história criou uma nova visão de mundo que posteriormente teve suas principais premissas apropriadas pelo islamismo e cristianismo, uma vez que, sendo evidenciado, na história humana, o propósito divino, seu encontro com o humano sai do âmbito da natureza para o plano da história:
O conflito pagão dos deuses com as forças do caos, ou entre si, foi substituído por um drama de ordem diferente e mais pungente: a luta paradoxal entre a vontade divina de um Criador onipotente e o livre arbítrio de sua criatura, o homem, no curso da história; uma tensa dialética de obediência e rebelião (Yerushalmi, 1996, p. 8 – tradução minha).
Yerushalmi (1996, p. 11-14) compreende que a Bíblia não é simplesmente uma escrita de ficção, mas um modo de percepção histórica e interpretação no qual sentido na história, memória do passado e escrita da história são elementos interligados. Na Bíblia hebraica se encontra a descrição dos atos de Deus, mas também de homens e mulheres de Israel e outras nações. É uma historiografia que expressa a consciência de que a história tem significado e que é necessário relembrar, mas o significado e a memória não dependem necessariamente dela. Neste momento, é importante destacar novamente que a memória coletiva é transmitida muito mais ativamente via ritual do que crônica, haja vista que os judeus escreveram menos história após o fechamento do cânone bíblico[3] e que a literatura rabínica clássica se afasta da historiografia. Tal afastamento é um dos principais meios para compreendermos o desenvolvimento da relação entre história e memória na cultura judaica e o referido distanciamento entre memória coletiva e historiografia, pois “a Bíblia pode servir para os historiadores, mas a literatura rabínica não” (Yerushalmi, 1996, p. 18). Os rabinos partem do desígnio de explorar o sentido na história, pois já possuem a história (bíblica) e, assim, não lidam com o tempo de maneira cronológica, mas muitas vezes anacrônica, quando há um silêncio sobre os eventos do seu próprio tempo e a compreensão da Bíblia não como um repositório de histórias passadas, mas um padrão para toda a história. Com isso, entende-se que não é preciso nenhuma concepção nova de história para acomodar a história de onde a Bíblia parou, as catástrofes eram como as anteriores (devidas ao pecado) e o registro bíblico capaz de iluminar toda contingência posterior (Yerushalmi, 1996, p. 19-24).
Talvez esse primeiro capítulo da obra de Yerushalmi seja o mais emblemático para a compreensão de sua tese, pois é a partir dessa pausa comportada pela historiografia no judaísmo, com a literatura rabínica, que se verifica a permanência do sentido na história e da transmissão do passado judeu cada vez mais pelas vias da memória, das práticas. Sendo a memória seletiva, a demanda de que o povo judeu se lembre também não é diferente: a história bíblica possui significado – revelado pelas profecias –, mas nem toda a história precisa ser relembrada e os rabinos não são profetas, tampouco historiadores – sua hermenêutica é antitética a destes.
O historiador segue com um capítulo sobre a memória judaica na Idade Média, no qual é destacado o impacto do judaísmo talmúdico nos judeus medievais, os avanços em diversos campos do conhecimento, tais como filosofia, linguística, poesia e o concomitante pouco interesse em registrar a própria história. Ler crônicas históricas passou a ser um costume cristão e, para o judaísmo, o gênero literário importante foi a transmissão da lei e doutrina rabínica através do Talmud.[4] Não interessava, então, aos judeus, a história dos gentios e as guerras entre outras nações, tampouco o passado recente e a condição atual, mas o remoto, quando foram cometidos os pecados que geraram o exílio e sofrimentos atuais (Yerushalmi, 1996, p. 31-36). Aqui, é possível destacar a seletividade mencionada anteriormente, pois a memória continuou sendo indispensável para a manutenção da identidade judaica, mas a historiografia não serviu como veículo primário para a rememoração, já que a historiografia, por outro lado, não é, ou não pode ser, excludente tal como a memória. Para ilustrar essa diferença marcante entre as formas de se relacionar com o passado, são mencionados os rituais de rememoração de origem bíblica e como esses rituais aconteciam de acordo com diferentes sistemas cronológicos que se relacionavam com o tempo histórico em mais de uma dimensão, de modo que cíclico ou linear são categorias insuficientes para defini-los (Yerushalmi, 1996, p. 40-41).
É verdade que José viveu há muitos anos, mas no ritmo fixo do recital da sinagoga, ele está na prisão esta semana, na próxima semana ele será libertado, no próximo ano, na mesma temporada, ambos eventos serão narrados mais uma vez, e assim novamente em cada ano que virá (Yerushalmi, 1996, p. 42 – tradução minha).
O que isso nos mostra é que os eventos, apesar de únicos, conquanto não se repetem, eram, de fato, experienciados, marcando a fusão entre passado e presente através da memória: não mais a rememoração, mas uma reatualização. Justo como eventos passados puderam ser sentidos, os sofrimentos atuais eram tidos como repetições, “equações tipológicas”. Um destaque vai para o exemplo de que a resposta a uma das maiores catástrofes na Idade Média não foi uma crônica, mas a composição de um shihot (orações penitenciais) e sua inserção na liturgia da sinagoga, o que demonstra a primazia da liturgia ritual sobre a narrativa histórica, o poder da comemoração para preservar o essencial da memória de um evento sem necessariamente descrever os detalhes históricos (Yerushalmi, 1996, p. 44-51).
No terceiro capítulo, Yerushalmi discorre sobre a expulsão dos judeus da Espanha em 1492 e o ressurgimento da escrita histórica no século XVI[5], com vários dos autores sendo exilados que contavam histórias dos sofrimentos judeus, especialmente a expulsão espanhola e a conversão forçada em Portugal. Duas questões são colocadas: por que a expulsão espanhola instiga uma recondução à historiografia e o que faz desses trabalhos, historiografia? Para responder, a expulsão da Espanha é apresentada não como a primeira, mas a última, no sentido de ser a expulsão que alterou a história dos judeus, o clímax do processo de deslocamento de judeus do leste para o oeste e tendo como resultado uma Europa ocidental esvaziada de judeus. Assim, a crise histórica foi o que estimulou a historiografia, fazendo com que fosse reconhecido o significado dos eventos para o presente e futuro, bem como a impossibilidade de apreensão com o foco voltado para o passado. Como amostra de que os escritos produzidos podem ser caracterizados como historiografia, o historiador aponta a admissão de que o destino dos judeus é afetado por sua relação com outras nações e também que o escopo cronológico e geográfico que ultrapassa o que poderia ser encontrado antes desse período. A narrativa é detalhada e não se concentra apenas em uma perseguição específica, mas busca um levantamento coerente e consecutivo de vários séculos, com interesse além dos tempos bíblicos, uma perspectiva do exílio (Yerushalmi, 1996, p. 58-66). É importante ressaltar que esses historiadores judeus não introduziram novos métodos ou novas estruturas conceituais para compreender a história judaica. Utilizaram de elementos apocalípticos e messiânicos, mas sem se encaixar em um gênero já existente e ainda foram acusados de se definir por categorias mundanas, o que fez a historiografia judaica do século XVI, apesar de notável, de pouco impacto.
O último capítulo da obra versa sobre os dilemas modernos dos judeus em relação à historiografia e identidade. Yerushalmi se apresenta como um judeu historiador profissional e isso faria dele uma criatura nova na história judaica, surgida no século XIX, numa era em que se sabe muito mais sobre o passado, mas o senso de identidade e continuidade é menor do que tempos anteriores. Importa dizer que uma historiografia judaica é algo recente, Yerushalmi (1996, p. 81-83) data de 1930 a primeira cadeira de professor de história judaica em uma universidade secular, quando Salo Wittmayer Baron, seu próprio orientador, começou a lecionar em Columbia. Isso não quer dizer que, até recentemente, a história dos judeus não tenha sido contada, mas as primeiras histórias pós-bíblicas sobre os judeus foram escritas por historiadores não judeus e, ainda, o que gerou a historiografia judaica moderna foi a secularização[6], tornando-a a “fé dos judeus descrentes” (Yerushalmi, 1996, p. 86).
A Haskalah (ou Iluminismo judeu), simbolizada destacadamente por Moses Mendelssohn[7], foi um movimento intelectual inspirado pelo Iluminismo Europeu no século XVIII e abriu caminho para diversas mudanças introduzidas na cultura e modo de vida judaicos visando modificar ou substituir algumas estruturas e práticas culturais rabínicas, criando um próprio judaísmo da Haskalah. A abertura para uma educação secular e o domínio das línguas europeias, além do hebreu (mas não o iídiche), pediu por uma representação do judaísmo como uma fé racional e não dogmática, receptiva à modernização. A busca por uma integração social não excluiu a história, pois passou-se a admitir a importância do conhecimento passado. Contudo, para Yerushalmi (1996, p. 82-85), não foi a Haskalah que gerou a abertura para a história de fato, mas, como dito, a secularização, partindo da Alemanha para toda a Europa. A historiografia judaica moderna surge, então, a partir da assimilação de fora, não como uma mera curiosidade acadêmica, mas como uma resposta à crise da emancipação[8] judaica e a luta para alcançá-la. Yerushalmi (1996, p. 83-86) destaca o artigo[9] de Immanuel Wolf, em 1822, no jornal Zeitschrift fur die Wissenschaft des Judentums como aquele onde, quando invocava repetidamente o termo Wissenschaft (ciência), Wolf tinha em mente especificamente a metodologia histórica que se espalhava pela Alemanha e logo se tornaria uma das marcas do pensamento europeu do século XIX. Pela primeira vez, não era a história que deveria provar sua utilidade para o judaísmo, mas, sim, o judaísmo para a história, justificando-se historicamente. Essa absorção dos judeus à perspectiva historicista teria criado a necessidade de que todas as ideologias judaicas do século XIX se validassem historicamente, da Reforma ao sionismo.
É notável que a Haskalah tenha se desenvolvido inicialmente na região de Berlim, então Prússia, e não em regiões como Inglaterra ou Holanda, onde os judeus desfrutavam de mais liberdades sob um regime constitucional. Foi durante o regime de Frederico II (1740-1786) que a Haskalah, tendo em Mendelssohn sua figura central, começou a tomar contornos. Frederico II via a si mesmo como o “rei filósofo” e buscava se mostrar sempre aberto às ideias de uma nova era. Por isso mesmo, repudiou qualquer tipo de fanatismo religioso e defendeu a coexistência pacífica entre as diferentes seitas. Essa visão, entretanto, não condizia com a maneira como os judeus eram, de fato, pouco tolerados. O Regimento Judaico de seu Código Geral apresentava os judeus como uma coletividade na qual a comunidade deveria assumir a responsabilidade por qualquer transgressão individual, além de ser um tipo de regulamentação que acelerou o processo de desintegração da autoridade rabínica, gerando tensões e mergulhando a comunidade em uma verdadeira crise de liderança (Graetz, 1996, p. 264-266). Assim, Haskalah e assimilação tornam-se indissociáveis, pois é o declínio da fé talmúdica que abre espaço para o surgimento dessa nova elite intelectual de judeus, cuja maior abertura ao mundo do Iluminismo esteve lado a lado com a adaptação ao ambiente cristão. Pensadores judeus passaram a mergulhar em obras de filósofos não judeus e a repensar o próprio judaísmo. Mesmo que jamais tenha abandonado o judaísmo, como chegou a ser acusado de o fazer, Mendelssohn sempre buscou conciliar sua fé na religião revelada com a razão, de modo que procurou justificar o pertencimento à fé judaica através de princípios universais, ou seja, instituir uma racionalidade comum às religiões monoteístas que asseguraria a tolerância e a possibilidade de o judeu moderno se tornar um cidadão. A racionalidade iluminada difundida entre a classe educada prussiana e europeia não foi capaz, no entanto, de reduzir significativamente a aversão aos judeus, como intentou Mendelssohn. Apesar do pouco interesse, ou até certo desprezo, demonstrado por Mendelssohn pela historiografia (Hess, 2007, p. 4-5), as mesmas assimilação e secularização que traçaram os contornos de seu pensamento, posteriormente, conduziram os primeiros judeus modernos a se definirem como historiadores. A Wissenschaft des Judentums, já no século XIX, precisou lidar com questões fundantes, uma delas se deveria o judeu, comprometido tanto com a Wissenschaft quanto com o judaísmo, lidar com dois sistemas de valores que, internalizados, se modificam mutuamente ou mesmo se negam (Meyer, 2007, p. 73). Essa busca pelo equilíbrio entre emancipação e tradição está no cerne da tentativa de substituição da memória coletiva pela historiografia apontada por Yerushalmi.
Desde o início, o povo judeu é apresentado como possuidor de uma relação especial com a memória, mas que, apesar de toda sua realização técnica e literária, teria falhado em preservar eventos em sua facticidade. O motivo para isso estaria na ameaça de que a história corrompe não só a mensagem divina e a maneira através da qual se compartilha a fé, mas a própria identidade judaica. Assim seria porque a memória se mantém viva pela transmissão de geração em geração e o tratamento do historiador, ao transformar a memória em narrativa, é capaz de deslocar e até mesmo interromper a tradição (Ricoeur, 2007, p. 409). Nesse último capítulo de seu livro, Yerushalmi retoma a tese do distanciamento entre memória coletiva e historiografia, alertando para os danos que a história pode infringir à memória coletiva, pois, somente a partir da era moderna, uma historiografia judaica divorciada de uma memória coletiva judaica seria verificável. A conclusão é: aqueles que esperam que o historiador seja capaz de restaurar a memória estão lhe atribuindo poderes que ele não possui. A historiografia não pode substituir uma memória coletiva que, em primeiro lugar, nunca dependeu da história, pois funcionou possuindo uma função de fé compartilhada, coesão e vontade coletivas, do próprio grupo que transmitiu e recriou seu passado por meio de todo um complexo de instituições sociais e religiosas interligadas (Yerushalmi, 1996, p. 93-94).
O declínio da memória coletiva judaica nos tempos modernos é apenas um sintoma do desenrolar daquela rede comum de crenças e práticas cujos mecanismos, alguns dos quais examinamos, fizeram o passado, em algum momento, se tornar presente. Aí está a raiz do padecimento. Em última análise, a memória judaica não pode ser “curada” a menos que o próprio grupo encontre a cura, a menos que sua integridade seja restaurada ou rejuvenescida. Entretanto, pelas feridas infligidas à vida judaica por meio dos golpes desintegradores dos últimos duzentos anos, o historiador parece, na melhor das hipóteses, um patologista, dificilmente um médico (Yerushalmi, 1996, p. 94 – tradução minha).
Memória e historiografia seriam, então, maneiras inteiramente distintas de se relacionar com o passado e o historiador não poderia restaurar, ou “curar”, a memória, mas apenas diagnosticar (como um patologista) seu fim e, antes, criar uma nova forma de recordação. Aqueles que escolheram, em algum momento, examinar a história judaica através do ângulo do historicismo ocidental estariam a ameaçar, com sua busca por dar conta de todo o passado, memórias que durante muito tempo permaneceram intactas. A ciência histórica, como surge na Alemanha, serve à busca por unificação cultural e política, mas para se integrar, muitos intelectuais da Wissenschaft des Judentums suprimiram o elemento nacional do passado judaico, elemento que foi caro à historiografia do início do século XIX. Do despertar do nacionalismo moderno extraiu-se o ímpeto para a historiografia alemã e francesa; da emancipação dos judeus emergiu a exigência de que deixassem de se considerar uma nação.
Nesse ponto, é possível buscar em Nietzsche (1999, p. 273), especialmente na sua defesa da necessidade do sentir-se a-historicamente, uma analogia com a preocupação manifesta de Yerushalmi. É certo que a motivação para tais críticas ao fazer historiográfico advém de uma mesma noção do que é a história para o historicismo, mas teria sido capaz a memória de possibilitar um contraponto a toda filosofia e cultura modernas?[10] Considerando o imperativo que evoca os judeus a não se esquecerem de seu passado, concorda-se que não há por que abarcar todo esse passado, há “tempo de conservar e tempo de jogar fora” (Eclesiastes 3:6). Não obstante, mesmo que a memória seja capaz de se relacionar com o passado de outra forma, que não buscando dar conta dele inteiramente, não chega a ser desejável para a conservação da identidade judaica, particularmente, o “poder de esquecer” evocado por Nietzsche, mesmo que se trate para o último de uma preocupação distinta, não com a memória, mas com um presente obsessivamente tomado por um passado morto. Os “golpes desintegradores” aos quais se referiu Yerushalmi, muitos os quais partiram de intelectuais judeus em busca de integração, impossibilitaram a memória judaica de permanecer imune às investidas da modernização trazidas por uma historiografia que almejava ser reconhecida como ciência empírica e também de se apresentar enquanto uma alternativa para muitos pensadores judeus. Para Yerushalmi (1996, p. 96), essa historiografia influenciou, por fim, muito pouco o pensamento judaico moderno, recebendo resistência de círculos variados e gerando menos influência na percepção do passado do que a literatura. Os judeus que rejeitaram essa história buscaram não a historicidade do passado, mas sua eterna contemporaneidade, de modo que muitos continuaram a buscar pelo passado, mas não o oferecido pelos historiadores.
Foi acrescentada em versões posteriores de Zakhor uma conferência proferida em 1987 no Colóquio de Royaumont, em Paris, na mesma época em que Yerushalmi ministrava um simpósio na École des Hautes Études en Sciences Sociales. O evento levou o nome de “Usos do esquecimento” e a conferência, depois publicada, de Yerushalmi, o título de Reflexões sobre o esquecimento. Yerushalmi (2017, p. 10) conta que aceitou o convite com inquietações. Foi-lhe sugerido o título de “Hipertrofia da memória, esquecimento da história”, mas ele preferiria algo como “Atrofia da memória, hipertrofia da história”, escolhendo, por fim, um título mais genérico. Em sua exposição, parte de duas obras que retratam clássicos casos psiquiátricos: The man with a shattered world: The history of a brain wound (1972) e The mind of a mnemonist (1987). Os livros tratam, respectivamente, do caso de um homem que perdeu a memória após ser ferido na cabeça durante a Segunda Guerra Mundial e de um “memorialista” que, desde a infância, demonstrou ser possuidor de uma memória prodigiosa. O título das duas obras já oferece uma clara diferença na abordagem: o primeiro está voltado para o que se perde quando a memória falha e o segundo tem como foco o diferencial da mente daquele que de muito consegue se lembrar. Apesar da distinção, para Yerushalmi, um caso não seria menos patológico do que o outro. Não se lembrar e não conseguir esquecer seriam duas enfermidades, mas a fronteira entre esses dois extremos não estaria clara e nos faz refletir sobre quem é capaz de dizer onde está o homem saudável, aquele que sabe o que deve lembrar e o que pode esquecer.
Sendo a amnésia consensualmente considerada uma patologia, Yerushalmi (2017, p. 12) retoma Nietzsche para mostrar que a crise do historicismo também foi tratada pelo filósofo – e diagnosticada por outros – como uma enfermidade. A fim de encaminhar sua exposição, o autor de Zakhor busca a distinção grega entre mneme (memória) e anamnesis (reminiscência) para denominar, a primeira, aquilo que permanece essencialmente ininterrupto e, a segunda, o que havia sido esquecido, de modo que todo aprendizado seria anamnesis, um esforço para se lembrar do esquecido. Nesse sentido, todos os mandamentos que convocam os judeus a lembrar e os proíbem o esquecimento não teriam efeito se não tivessem se transformado na Torá (ensinamento) e ela não tivesse se renovado constantemente enquanto tradição. Tradição e escritura que mantiveram unido, a partir do interesse gerado, o povo disperso. A angústia da perda não recai, então, sobre o esquecimento da história, mas sobre o esquecimento da Halakhah[11], a lei, em nome da qual, do passado, só são transmitidos os episódios julgados exemplares ou edificantes. Um “esquecimento coletivo” só poderia se referir a uma falha na transmissão do passado às gerações contemporâneas, pois povos só podem de fato esquecer acontecimentos ocorridos durante a própria existência, não anteriores, o que quer dizer que o que é chamado de esquecimento, no sentido coletivo, aparece quando a geração detentora do passado falha em transmitir o que aprendeu com esse passado. O que se pratica, portanto, para manutenção da Halakhah – quando, em um “renascimento” ou “reforma”, buscam-se, no passado distante, episódios esquecidos – é anamnesis. As anamnesis transformam o seu objeto, já a história restitui um passado perdido, mas não aquele cuja perda seria a lamentada (Yerushalmi, 2017, p. 13-23).
Quando conclui o último capítulo de Zakhor afirmando que a sombra de Funes, o memorioso, recai sobre todos nós, Yerushalmi (1996, p. 102) busca no conto de Borges a comparação ideal com a maneira como vê a historiografia que se torna, ela mesma, objeto de investigação histórica. Funes é o personagem que guarda até mesmo a menor de suas recordações, a mais minuciosa e vívida em relação à memória de quaisquer outras pessoas, sendo o espectador de um mundo intoleravelmente preciso e autor de projetos de uma grandeza inútil – um vocabulário infinito para a série de números naturais e um catálogo mental de todas as imagens por ele recordadas (Borges, 2010, p. 110-116). Yerushalmi parece ter uma visão parecida acerca da “hipertrofia da história” e, na conferência em Paris, reafirma o que apresentou em Zakhor: que a tentação de restaurar o passado total e o crescente desejo de alcançar a objetividade científica exigiram um desprendimento cada vez maior entre o ofício do historiador e os interesses imediatos do grupo. Assim, “Para o historiador, Deus habita nos detalhes. Todavia, a memória se insurge, denunciando que os detalhes se tornaram deuses” (Yerushalmi, 2017, p. 24). Funes el memorioso é concluído com a fastidiada assertiva do narrador de que, não havendo nada no abarrotado mundo de Funes além de detalhes imediatos, ele já não seria realmente capaz de pensar, pois pensar é esquecer diferenças, generalizar, abstrair (Borges, 2010, p. 117).
Curiosamente, Yerushalmi sentiu a necessidade de concluir sua fala com o que chamou de “epílogo dissonante”. Após advertir que a crise do historicismo foi um reflexo da crise de nossa cultura e vida espiritual, pois não dispomos mais de uma Halakhah – um conjunto de valores que permitiria transformar a história em memória –, o historiador retorna às ressalvas que demonstrou a respeito do título do colóquio, “Usos do esquecimento”. Com isso, pretende distanciar o seu trabalho de uma rejeição ao empreendimento histórico em si, como muitos o interpretaram. Assim, mantém a posição de que é inviável que a historiografia substitua a memória coletiva, mas apresenta a história, seu imperativo moral, como mais urgente do que nunca, o que se deve ao surgimento de uma questão mais premente à decadência da memória coletiva, que é a violação do que ela poderia conservar, a “mentira deliberada visando a destruição de arquivos e fontes” (Yerushalmi, 2017, p. 27). Pode-se inferir que ele alude e teme, em especial, o negacionismo da Shoah, considerando que menciona os “assassinos da memória” – termo usado posteriormente por Vidal-Naquet para falar contra o revisionismo –, além de concluir citando uma matéria do Le Monde, sobre a necessidade ou não de julgar Klaus Barbie,[12] na qual a palavra esquecimento aparecia como antônimo de justiça e não de memória. Por fim, dissonante, coloca-se ao lado do excesso da história, conquanto seu terror do esquecimento supera o terror de recordar demasiadamente (Yerushalmi, 2017, p. 17-18).
Ricoeur (2007, p. 408-409) compreende que Zakhor é um livro capaz de nos permitir o acesso a um problema universal por meio da existência da singularidade judaica, revelando a resistência que toda memória pode opor ao tratamento historiográfico pelo qual o historiador é capaz de afetar a memória das mais variadas maneiras: contestando, corrigindo, deslocando, interrompendo ou até mesmo destruindo. Uma atenção especial é dada por Ricoeur, em seu comentário sobre a obra de Yerushalmi, à ideia de sentido na história, pois o sentido na história pode se encontrar em gêneros alheios à preocupação de explicar os acontecimentos históricos. A injunção para se lembrar e não esquecer explicita que a sobrevivência dos judeus enquanto grupo depende da memória, mas não infere a obrigação de narrar os acontecimentos históricos, de modo que o lugar da narrativa está ao lado das leis e isso é o explicita a preocupação com o sentido da história. Assim, para Ricoeur, é apenas com um olhar retrospectivo que Yerushalmi pode apontar a não equivalência entre o sentido na história, a memória do passado e a escrita da história. Justamente pela diferença entre a poesia ou a lenda e a história erudita ser ignorada é que o sentido na história pode ignorar a historiografia: é possível que o caráter histórico da fé bíblica tenha se originado de uma reconstrução da historiografia (Ricoeur, 2007, p. 410). O distanciamento entre a memória coletiva e a historiografia não deixa de ser, por isso, paradigmático, pois a relação entre historiografia e secularização é inegável e é também exemplar o “mal-estar na historiografia” do qual afirma sofrer Yerushalmi enquanto um historiador profissional judeu. O projeto mesmo da Wissenschaft des Judentums não surgiu como uma simples adoção da metodologia científica, foi também uma crítica ao sentido teológico presente na memória judaica, por isso “esse mal-estar é talvez o nosso, o de todos nós, filhos bastardos da memória judaica e da historiografia secularizada do século XIX” (Ricoeur, 2007. p. 412).
Referências
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2016.
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Notas
[1] Yosef Hayim Yerushalmi (1932-2009), filho de judeus imigrantes russos falantes de iídiche e hebraico, nasceu em Nova York e foi titular da cátedra de História Judaica na Universidade de Columbia entre 1980 e 2008, posição herdada de seu mentor Salo Wittmayer Baron. Yerushalmi seguiu a carreira acadêmica, mas chegou a ser nomeado rabino em 1857, de modo que seus conhecimentos sobre a Torah e o Talmud estiveram presentes em suas publicações ao longo da vida. Yerushalmi fez parte da formação de inúmeros historiadores em Harvard e Columbia e ganhou renome para além dos limites da história judaica. Em 1980, ele ministrou uma série de conferências na Universidade de Washington intitulada Stroum Lectures in Jewish Studies que deu origem ao seu mais proeminente livro publicado Zakhor: história judaica e memória judaica.
[2] Arendt (2016, p. 59-70) aponta as raízes da história ocidental na experiência da natureza, aquilo que existe sem os homens ou deuses e que independe da memória humana para se eternizar. A noção parte da ideia de que sendo as coisas da natureza sempre presentes, não poderiam ser ignoradas ou esquecidas e por isso não precisam da recordação humana para se fazerem imortais. A historiografia grega estava intimamente ligada à natureza, pois buscava-se, através da história, a imortalidade, passando pela grandeza dos feitos, ou seja, a história acolheria aqueles que, em seus feitos e palavras, se mostrassem dignos de ocupar o mesmo lugar da natureza, na companhia do que dura para sempre.
[3] Flavius Josephus (38 – 100), apesar do reconhecimento que carrega hoje como historiador, é apresentado como uma exceção, considerando que seu trabalho não perdurou entre os judeus e foram necessárias centenas de anos até que um judeu se chamasse ou fosse chamado de historiador novamente.
[4] A palavra Talmud significa estudo ou aprendizagem e pode ser empregada em diversos sentidos, tratando-se aqui especialmente do aspecto analítico do mandamento do estudo da Torá, a exegese de um texto bíblico. A palavra é utilizada para denominar o ensino das tradições e discussões organizadas, principalmente, no Talmud Babilônico (Talmud Bavli) e no Talmud de Jerusalém (Talmud Yerushalmi). O Talmud é uma obra literária de proporções monumentais que se baseia na totalidade das tradições espirituais, intelectuais, éticas, históricas e jurídicas produzidas nos círculos rabínicos desde a época da destruição do Segundo Templo no primeiro século até a conquista muçulmana no início do século VII (Skolnik, 2007, p.769-470).
[5] A noção de que o século XVI representaria um ponto culminante para pensar a historiografia judaica já havia sido desenvolvida por Salo W. Baron que também partiu da ideia de que, durante a Idade Média, obras de caráter histórico “no verdadeiro sentido do termo” não foram produzidas por judeus (Baron, 1928).
[6] O tema da secularização envolve um debate teórico com posições divergentes. De modo geral, o termo faz referência ao afastamento de preceitos culturais que se apoiam na religiosidade, mas apresenta, em seu uso, uma multiplicidade de sentidos e muitas questões, como quais seriam as condições e as consequências do processo de secularização e onde estariam os limites para o que pode ser chamado de secularização, pois, a depender, o simples desvio de certas normas nas religiões tradicionais pode ser assim definido. Processos como a dessacralização e desmistificação das estruturas sociais se apresentam como características definidoras do que seria a secularização, mas falham na contribuição ao entendimento dos aspectos subjetivos da secularização, ou seja, da relação entre o religioso e o secular na ação orientada do sujeito, independente da presença intrínseca da religião (Fenn, 1969, p. 159-160). Com a noção de processo de desencantamento do mundo, Weber (2005) coloca o homem moderno em uma posição secular a partir de um longo processo, diferentes discursos, linguagens e critérios de validade culminando em uma associação à noção de progresso e consequente perda do contato com o sentido pela fragmentação dos discursos, já que o progresso da secularização produziria novos valores e ordens que constantemente disputariam a hegemonia. Recentemente, Sérgio da Mata (2021) tem retomado as obras de Hermann Lübbe (1926-) e Ernst-Wolfgang Böckenförde (1930-2019) para refletir sobre como o Estado moderno e liberal se relaciona com a religião e com a secularização mostrando que a secularização pode ser examinada como um problema de semântica histórica, político-jurídico, histórico-filosófico ou sociológico mostrando que, para Lübbe, o conceito passou de instrumento heurístico a armamento retórico, ou seja, passou de categoria descritiva a instrumento de luta política com uma dimensão pragmática própria. Assim, a secularização aparece como muito mais do que uma questão de convicção religiosa, mas se relaciona à defesa do Estado liberal democrático.
[7] Moses Mendelssohn (1726-1789) é chamado por muitos de “pai da Haskalah”. Foi um filósofo judeu defensor da abertura à educação secular escrevendo, ele mesmo, em alemão. Não deixou de defender, porém, o renascimento da língua e literatura hebraica, desprezando o uso do iídiche. Iniciou uma tradução da Torá para o alemão e buscou meios para melhorar a situação legal dos judeus e a relação entre judeus e cristãos. Naturalmente, estabelecer um fundador para um movimento é algo problemático e, assim como demonstrou Azriel Shohet (apud Rosman, 2007, p. 129), muitas características comumente associadas à Haskalah – como a busca por “sabedoria externa”, contato social e cultural próximo com os gentios, mudanças nas práticas educacionais, queda na intensidade da vida ritual – poderiam ser rastreadas dentro do judaísmo alemão anos antes de Mendelssohn que, nessa perspectiva, não teria se proposto a iniciar novos modos, mas moderar e modular tendências já em andamento. Para Michael Graetz (1996, p. 263), entretanto, apesar de as sementes para a Haskalah já haverem sido plantadas bem antes de Mendelssohn, essas ideias não encontraram terreno para se fundir em um movimento sociocultural poderoso o suficiente para efetuar uma grande mudança na consciência judaica, como ocorreu em meados do século XVIII, quando foi criado um domínio onde os intelectuais judeus puderam se ocupar mais do que da escrutinação da religião e leis judaicas e se reunir em um plano secular, engajando-se no pensamento crítico.
[8] Aqui, a palavra emancipação se refere à libertação de indivíduos e grupos de situações de servidão ou restrições legais, políticas e sociais. A emancipação judaica denota a supressão de injustiças legais contra os judeus e a concessão dos direitos de cidadania. Apesar de ser um processo iniciado na Europa no século XVIII, a emancipação dependeu das condições políticas e sociais específicas de cada país e não significou a obliteração da antipatia contra os judeus, o que foi um impedimento constante na busca pela igualdade.
[9] Über den Begriff einer Wissenschaft des Judentums (sobre o conceito de uma ciência do judaísmo) foi o artigo publicado por Wolf dentro da chamada Wissenschaft des Judentums (ciência judaica/ciência dos judeus), um movimento do século XIX surgido sob a premissa de investigação crítica da literatura e cultura judaica, incluindo a literatura rabínica, usando métodos científicos para analisar as origens das tradições judaicas. Apesar da tentativa de construção da ideia de um povo independente de suas tradições, o movimento acabou com alguns de seus membros, com Heinrich Heine, se convertendo ao cristianismo.
[10] “Nossa cultura moderna, por isso mesmo, não é nada de vivo, porque, sem aquela oposição, absolutamente não pode ser concebida, isto é: não é de modo algum uma cultura efetiva, mas apenas uma espécie de saber em torno na cultura; fica no pensamento-de-cultura, no sentimento-de-cultura, dela não resulta nenhuma decisão-de-cultura” (Nietzsche, 1999. p. 62).
[11] A palavra Halakhah, se traduzida, significa “caminho” e se refere ao conjunto de leis e regras que, desde os tempos bíblicos evoluíram e regularam a vida cotidiana dos judeus, preservando tradições orais. Halakhah, comumente chamada de lei judaica, é, então, o caminho, o conjunto de rituais e crenças que dá a um povo a possibilidade de identidade e o sentido de seu destino. O judaísmo não orienta apenas práticas e crenças religiosas, mas inúmeros outros aspectos da vida.
[12] Nikolaus “Klaus” Barbie (1913-1991) foi oficial SS e chefe da Gestapo em Lyon, França. Adquiriu a alcunha de “carniceiro de Lyon” ou “açougueiro de Lyon” pela maneira brutal como torturou pessoalmente judeus e membros do movimento de Resistência Francesa – à época tendo em Lyon um centro vital. Barbie teria sido responsável pelo assassinato (direta e indiretamente) de cerca de 4 mil pessoas, assim como a deportação de 7500 judeus e entre seus crimes mais notáveis estão a tortura de Jean Moulin, herói da resistência francesa, e a deportação de mais de quarenta crianças de um refúgio infantil em Izieu, sul da França. A história de Barbie se destaca pois, em 1947, ele foi identificado pelo Corpo de Contra-Inteligência do exército dos EUA (CIC) e recrutado como informante sobre as atividades comunistas na zona de ocupação americana na Alemanha. Após ter sua identidade descoberta e sua extradição exigida pelo governo francês, Barbie estabeleceu-se sob nome falso em La Paz, na Bolívia, e só foi preso e enviado para julgamento na França em 1983 (USHMM, 2018).
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Autora
Sabrina Costa Braga – Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) com período sanduíche na Freie Universität Berlin. Defendeu a dissertação de mestrado “A leitura freudiana de Norbert Elias sobre o nazismo: civilização como produtora de anticivilização” (2018) e a tese de doutorado “O paradigma da Shoah e a historiografia: memória e testemunho sob a ótica do trauma” (2022), na Universidade Federal de Goiás (UFG), e trabalha com temas relacionados à memória, historiografia judaica, testemunho, literatura e as relações entre história e psicanálise. Possui experiência na área de História com ênfase em Teoria e Metodologia da História e História Contemporânea. Atua como membro do corpo editorial da Revista de Teoria da História. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/3937621434163282; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9164-7560; E-mail: sabrinacostabraga94@gmail.com.
Para citar este artigo
BRAGA, Sabrina Costa. O Zakhor de Yerushalmi: memória e historiografia judaicas. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/o-zakhor-de-yerushalmi-memoria-e-historiografia-judaicas/>.
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