Racismo no Brasil – Resenha de Luciana Vilela Dourado Matos (Uneb) sobre o livro “Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser”, de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro na ‘Ocupação’ do Itaú Cultural | Foto: André Seiti/O Globo

Resumo: Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser, de Sueli Carneiro, explora o racismo no Brasil sob a ótica foucaultiana. Publicado em 2023, o livro aborda o Eu hegemônico e a subjugação do “outro”, oferecendo um estudo detalhado e crítico do racismo brasileiro, mas com uma abordagem complexa que pode limitar sua acessibilidade ao público não acadêmico.

Palavras-chave: Dispositivo de Racialidade, Racismo, Eu.


Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser é a mais recente obra de Sueli Carneiro. A produção, publicada em 2023 pela Editora Zahar, é o desenlace do doutoramento em Educação pela Universidade de São Paulo, concluído em 2005. A pergunta inicial elaborada para a tese e que chega ao mercado editorial em formato de livro foi: “é possível operacionalizar a racialidade como um dispositivo de poder, tal como concebido por Michel Foucault para o campo da sexualidade?” Yara Frateschi, professora do Departamento de Filosofia da Unicamp, escreve um considerável posfácio que possibilita melhor compreensão da escrita filosófica carneiriana. A criação artística Estandarte (1988) de Abdias Nascimento foi escolhida pela designer e ilustradora Elisa von Randow para estampar a capa.

Sueli Carneiro, sendo uma das mais vigorosas intelectuais brasileiras contemporâneas, manifesta sua atuação filosófica e educacional além do campo acadêmico. Através de resistências e lutas neste meio, ela estabeleceu sua filosofia política ao defender sua tese, aplicando de maneira científica a cultura ocidental para decifrar as nuances do racismo no Brasil. Sueli Carneiro é uma mulher negra, intelectual pública, escritora, filósofa, ativista do Movimento Negro, do Movimento Feminista e defensora dos direitos humanos, demonstrando um papel multifacetado e influente. Ela fundou e coordena o Geledés — Instituto da Mulher Negra. Ao longo de sua carreira, publicou inúmeros ensaios e artigos, com destaque para suas obras “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil” em 2011 e “Escritos de uma vida” em 2019. Suas pesquisas acadêmicas e filosóficas estão fundamentadas em discussões sobre raça, gênero e classe. Em março de 2023, ela se destacou como primeira mulher negra a ser honrada com o título de doutora honoris causa pela Universidade de Brasília (UnB).

Quatro categorias foucaultianas — dispositivobiopoderresistência cuidado de si — estruturam o livro de Sueli Carneiro. A teoria do contrato racial de Charles Mills e os conceitos de ôntico e ontológico de Martin Heidegger são usados para fundamentar suas reflexões sobre o Eu hegemônico como ser e do Outro como não ser. Estas são as peças principais empregadas por Carneiro para compor um estudo preciso e singular sobre racismo no Brasil. Três partes compõem a obra, a primeira Poder, saber e subjetivação, os conceitos de dispositivo e biopoder são desenleados e operacionalizados, fundamentando a noção de dispositivo de racialidade. Na segunda parte, intitulada Resistências, apresenta histórias de ativistas e militantes com o claro propósito de expor as experiências de vidas como atos/práticas de construções de identidades e consciências negras, tanto individual como coletivamente. Na terceira parte, nomeada Educação e o cuidado de si, os testemunhos de vida são retomados, histórias reais de não assujeitamentos, de enfrentamentos nos campos educacional, institucional e político, alicerçado pela militância.

Na parte I, Carneiro apresenta o conceito de dispositivo de Foucault, mecanismo de poder que opera num determinado campo do saber com objetivos estratégicos constituídos no devir histórico. O dispositivo instaura divisões com finalidades ontológicas, exemplo: o dispositivo de saúde mental constitui o normal e o patológico. Adiante, o dispositivo da sexualidade é colocado como estratégia da burguesia e como distinção de classe, investido sobre o corpo feminino, sua tecnologia constrói o ideal de corpo burguês, tornando-o referência de humanidade, de ser. A filósofa complementa a visão foucaultiana ao operar com o dispositivo de racialidade tomando a cor da pele como novo estatuto e afirma com segurança que os dispositivos de sexualidade e de racialidade estão imbricados e operam alinhados na definição do Eu hegemônico — dotado de racionalidade, brancura e que inscreve o Outro no signo da morte. Ao entrelaçar o pensamento Foucault e Charles Mills, usa o pensamento do filósofo afro-americano para afirmar que o dispositivo de racialidade se estruturou historicamente na/ pelas representações sobre o não branco com as expedições de conquistas no século XV, isto é, bem antes do século XVIII, no qual o filósofo francês aponta o surgimento dos dispositivos numa sociedade disciplinar. Mills não usa o pensamento foucaultiano, mas Carneiro articula-os e compreende que tecnologias de poder e saber estabeleceram realidades de dominação e hierarquização de raças. A filósofa afirma que assim foi organizada a política imperialista neocolonialista, assentada numa razão racializada e no ideal de superioridade europeia, tão bem defendida por dois expoentes da filosofia ocidental: Kant e Hegel.

Na mesma linha de raciocínio, Carneiro retoma o conceito de biopoder de Foucault para afirmar que o racismo como política de estado tem tanto aspecto positivo quanto negativo, promove a vida dos considerados racialmente superiores e inscreve os degenerados sob o signo da morte. A biopolítica estabelece uma separação no campo biológico e naturaliza a eliminação do que é considerado o Outro, a população branca se manterá pela eliminação dos não brancos. As formas de promoção de morte para os inferiores raciais têm diferenciações de acordo com o gênero, para as mulheres negras mortes preveníveis como a morte materna e doenças evitáveis como miomas uterinos, sendo a histerectomia uma tecnologia de esterilização, pura eugenia. Para o homem negro, a morte violenta.

A filósofa dialoga também com Boaventura de Souza Santos através do conceito de epistemicídio e assim evidencia como as formas de dominação étnica e racial se fundamentaram na negação e destituição da racionalidade do Outro. Existe uma interdição ao negro, incapacitando-o como ser humano.

 

II Encontro de Jovens Cientistas Negros e Negras da ANPG (Niterói-RJ, 2029) | Imagem: ANPG

Na parte II, Sueli Carneiro ao usar o conceito de resistência em Foucault, deixa claro que o aplica a partir de uma coletividade e que tem a intenção de evidenciar a formação de sujeitos coletivos. Para tanto, a filósofa recorre ao método dos testemunhos de Edson Carneiro, Sônia Maria Pereira Nascimento, Fátima de Oliveira e Arnaldo Xavier e assim demonstra como o dispositivo de racialidade elabora suas próprias estratégias de lutas. Manter-se vivo é o primeiro ato num percurso que se pauta também pela liberdade da razão e o rompimento com os discursos/práticas de dominação racial. São histórias de vida de homens e mulheres negros que expressam modos positivos de subjetivação, de autonomia e de saber/poder.

Na parte III, compreende a educação e o cuidado de si como atos políticos e como meios para resistir às diversas ações de assujeitamento dentro e fora de espaços institucionais escolares e acadêmicos, para os quais, “o corpo negro é, em si, uma transgressão”. Ao intercalar fragmentos dos testemunhos com análises teóricas, Sueli Carneiro possibilita didaticamente a compreensão de como ocorreu “a construção de sujeitos coletivos libertos dos processos de subjugação e subalternização”. Como também escancara como os espaços educacionais brasileiros estruturados no racismo colocam em curso a eliminação dos corpos e mentes dos rotulados como “desajustados” e “irracionais”, fragmentando suas subjetividades e impondo os valores ocidentais como normas civilizatórias.

Mesmo diante de análises conceituais precisas, Carneiro reproduz o hábito dos filósofos de falar para os pares, ao romper com o senso comum, não faz com que sua filosofia política e a estruturação de um novo conceito tornem-se acessíveis ao mundo não acadêmico, embora estimule criticamente estudos e pesquisas acerca do racismo no Brasil. Além disso, não instrumentaliza tão detalhadamente o conceito de resistência de Foucault, assim como opera com os conceitos de dispositivo, biopoder e cuidado de si.

Devemos reconhecer a precisão conceitual, rigor lógico e o pensamento crítico sob os quais a obra é construída. Em todo o livro, a filósofa Sueli Carneiro demonstra que a academia não a assujeitou e ela resistiu às tentativas de epistemícidio, não foi interditada pelo senso comum científico. Esta produção publicada no presente ano foi elaborada no início do século XX, até então estava limitada ao público de estudantes e pesquisadores circunscritos ao espaço acadêmico paulista ou para os que lá se direcionavam com o objetivo claro de acessar esta escrita acadêmica. Agora, ela chega a diversas mãos, possibilitando leituras e interpretações que podem estruturar estudos e pesquisas específicas sobre racismo. Como também salvaguarda um precioso e potente estudo acadêmico de uma das intelectuais brasileiras mais ativas na contemporaneidade.

Ao operacionalizar muito bem o pensamento foucaultiano, a filósofa Sueli Carneiro constrói o conceito de dispositivo de racialidade e cumpre com seu objetivo, isto é, esquadrinhar discursos e práticas que estruturam o racismo no Brasil. Como diz Yara Frateschi, não encontramos no livro uma repetição de conceitos, mas a construção de uma “nova arquitetônica conceitual”, muito combativa e política, um estandarte de luta antirracista. A obra, portanto, deve ser lida por todos os que estudam e pesquisam sobre as questões raciais no Brasil, tendo em mente que compreenderá a filosofia política através de muita disposição e revisão de seus entendimentos. Familiarizando-se com a escrita de Carneiro e voltando à introdução, compreendemos a convocação para o diálogo entre o Eu outro e o Eu hegemônico, entre o não branco e o branco.

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Luciana Vilela Dourado Matos, professora da Educação Básica do Estado da Bahia, licenciada em História (Uneb), especialista em Metodologia do Ensino Superior (UFMA), mestra em Ciências Sociais (PPGCS/UFMA) com a dissertação IMAGENS LEGADAS: São Luís nas fotografias de Gaudêncio Cunha, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (Uneb). Publicou o texto intitulado As cidades de Cícero Matos no livro Arte e Cidade: imagens de Jacobina, disponível em https://www.instagram.com/p/CuDeLspNWc6/ Redes sociais: @lucianavilelamatos; ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/9805950276303841; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0007-6804-7015; E-mail: luciana.matos6@enova.educacao.ba.gov.br.


Para citar esta resenha

CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, 431p. Resenha de: MATOS, Luciana Vilela Dourado. Racismo no Brasil. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.13, set./out., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/racismo-no-brasil-resenha-de-luciana-vilela-dourado-matos-sobre-o-livro-dispositivo-de-racialidade-a-construcao-do-outro-como-nao-ser-como-fundamento-do-ser-de-sueli-carneiro/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 13, set./out., 2023 | ISSN 2764-2666

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Racismo no Brasil – Resenha de Luciana Vilela Dourado Matos (Uneb) sobre o livro “Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser”, de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro na ‘Ocupação’ do Itaú Cultural | Foto: André Seiti/O Globo

Resumo: Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser, de Sueli Carneiro, explora o racismo no Brasil sob a ótica foucaultiana. Publicado em 2023, o livro aborda o Eu hegemônico e a subjugação do “outro”, oferecendo um estudo detalhado e crítico do racismo brasileiro, mas com uma abordagem complexa que pode limitar sua acessibilidade ao público não acadêmico.

Palavras-chave: Dispositivo de Racialidade, Racismo, Eu.


Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser é a mais recente obra de Sueli Carneiro. A produção, publicada em 2023 pela Editora Zahar, é o desenlace do doutoramento em Educação pela Universidade de São Paulo, concluído em 2005. A pergunta inicial elaborada para a tese e que chega ao mercado editorial em formato de livro foi: “é possível operacionalizar a racialidade como um dispositivo de poder, tal como concebido por Michel Foucault para o campo da sexualidade?” Yara Frateschi, professora do Departamento de Filosofia da Unicamp, escreve um considerável posfácio que possibilita melhor compreensão da escrita filosófica carneiriana. A criação artística Estandarte (1988) de Abdias Nascimento foi escolhida pela designer e ilustradora Elisa von Randow para estampar a capa.

Sueli Carneiro, sendo uma das mais vigorosas intelectuais brasileiras contemporâneas, manifesta sua atuação filosófica e educacional além do campo acadêmico. Através de resistências e lutas neste meio, ela estabeleceu sua filosofia política ao defender sua tese, aplicando de maneira científica a cultura ocidental para decifrar as nuances do racismo no Brasil. Sueli Carneiro é uma mulher negra, intelectual pública, escritora, filósofa, ativista do Movimento Negro, do Movimento Feminista e defensora dos direitos humanos, demonstrando um papel multifacetado e influente. Ela fundou e coordena o Geledés — Instituto da Mulher Negra. Ao longo de sua carreira, publicou inúmeros ensaios e artigos, com destaque para suas obras “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil” em 2011 e “Escritos de uma vida” em 2019. Suas pesquisas acadêmicas e filosóficas estão fundamentadas em discussões sobre raça, gênero e classe. Em março de 2023, ela se destacou como primeira mulher negra a ser honrada com o título de doutora honoris causa pela Universidade de Brasília (UnB).

Quatro categorias foucaultianas — dispositivobiopoderresistência cuidado de si — estruturam o livro de Sueli Carneiro. A teoria do contrato racial de Charles Mills e os conceitos de ôntico e ontológico de Martin Heidegger são usados para fundamentar suas reflexões sobre o Eu hegemônico como ser e do Outro como não ser. Estas são as peças principais empregadas por Carneiro para compor um estudo preciso e singular sobre racismo no Brasil. Três partes compõem a obra, a primeira Poder, saber e subjetivação, os conceitos de dispositivo e biopoder são desenleados e operacionalizados, fundamentando a noção de dispositivo de racialidade. Na segunda parte, intitulada Resistências, apresenta histórias de ativistas e militantes com o claro propósito de expor as experiências de vidas como atos/práticas de construções de identidades e consciências negras, tanto individual como coletivamente. Na terceira parte, nomeada Educação e o cuidado de si, os testemunhos de vida são retomados, histórias reais de não assujeitamentos, de enfrentamentos nos campos educacional, institucional e político, alicerçado pela militância.

Na parte I, Carneiro apresenta o conceito de dispositivo de Foucault, mecanismo de poder que opera num determinado campo do saber com objetivos estratégicos constituídos no devir histórico. O dispositivo instaura divisões com finalidades ontológicas, exemplo: o dispositivo de saúde mental constitui o normal e o patológico. Adiante, o dispositivo da sexualidade é colocado como estratégia da burguesia e como distinção de classe, investido sobre o corpo feminino, sua tecnologia constrói o ideal de corpo burguês, tornando-o referência de humanidade, de ser. A filósofa complementa a visão foucaultiana ao operar com o dispositivo de racialidade tomando a cor da pele como novo estatuto e afirma com segurança que os dispositivos de sexualidade e de racialidade estão imbricados e operam alinhados na definição do Eu hegemônico — dotado de racionalidade, brancura e que inscreve o Outro no signo da morte. Ao entrelaçar o pensamento Foucault e Charles Mills, usa o pensamento do filósofo afro-americano para afirmar que o dispositivo de racialidade se estruturou historicamente na/ pelas representações sobre o não branco com as expedições de conquistas no século XV, isto é, bem antes do século XVIII, no qual o filósofo francês aponta o surgimento dos dispositivos numa sociedade disciplinar. Mills não usa o pensamento foucaultiano, mas Carneiro articula-os e compreende que tecnologias de poder e saber estabeleceram realidades de dominação e hierarquização de raças. A filósofa afirma que assim foi organizada a política imperialista neocolonialista, assentada numa razão racializada e no ideal de superioridade europeia, tão bem defendida por dois expoentes da filosofia ocidental: Kant e Hegel.

Na mesma linha de raciocínio, Carneiro retoma o conceito de biopoder de Foucault para afirmar que o racismo como política de estado tem tanto aspecto positivo quanto negativo, promove a vida dos considerados racialmente superiores e inscreve os degenerados sob o signo da morte. A biopolítica estabelece uma separação no campo biológico e naturaliza a eliminação do que é considerado o Outro, a população branca se manterá pela eliminação dos não brancos. As formas de promoção de morte para os inferiores raciais têm diferenciações de acordo com o gênero, para as mulheres negras mortes preveníveis como a morte materna e doenças evitáveis como miomas uterinos, sendo a histerectomia uma tecnologia de esterilização, pura eugenia. Para o homem negro, a morte violenta.

A filósofa dialoga também com Boaventura de Souza Santos através do conceito de epistemicídio e assim evidencia como as formas de dominação étnica e racial se fundamentaram na negação e destituição da racionalidade do Outro. Existe uma interdição ao negro, incapacitando-o como ser humano.

 

II Encontro de Jovens Cientistas Negros e Negras da ANPG (Niterói-RJ, 2029) | Imagem: ANPG

Na parte II, Sueli Carneiro ao usar o conceito de resistência em Foucault, deixa claro que o aplica a partir de uma coletividade e que tem a intenção de evidenciar a formação de sujeitos coletivos. Para tanto, a filósofa recorre ao método dos testemunhos de Edson Carneiro, Sônia Maria Pereira Nascimento, Fátima de Oliveira e Arnaldo Xavier e assim demonstra como o dispositivo de racialidade elabora suas próprias estratégias de lutas. Manter-se vivo é o primeiro ato num percurso que se pauta também pela liberdade da razão e o rompimento com os discursos/práticas de dominação racial. São histórias de vida de homens e mulheres negros que expressam modos positivos de subjetivação, de autonomia e de saber/poder.

Na parte III, compreende a educação e o cuidado de si como atos políticos e como meios para resistir às diversas ações de assujeitamento dentro e fora de espaços institucionais escolares e acadêmicos, para os quais, “o corpo negro é, em si, uma transgressão”. Ao intercalar fragmentos dos testemunhos com análises teóricas, Sueli Carneiro possibilita didaticamente a compreensão de como ocorreu “a construção de sujeitos coletivos libertos dos processos de subjugação e subalternização”. Como também escancara como os espaços educacionais brasileiros estruturados no racismo colocam em curso a eliminação dos corpos e mentes dos rotulados como “desajustados” e “irracionais”, fragmentando suas subjetividades e impondo os valores ocidentais como normas civilizatórias.

Mesmo diante de análises conceituais precisas, Carneiro reproduz o hábito dos filósofos de falar para os pares, ao romper com o senso comum, não faz com que sua filosofia política e a estruturação de um novo conceito tornem-se acessíveis ao mundo não acadêmico, embora estimule criticamente estudos e pesquisas acerca do racismo no Brasil. Além disso, não instrumentaliza tão detalhadamente o conceito de resistência de Foucault, assim como opera com os conceitos de dispositivo, biopoder e cuidado de si.

Devemos reconhecer a precisão conceitual, rigor lógico e o pensamento crítico sob os quais a obra é construída. Em todo o livro, a filósofa Sueli Carneiro demonstra que a academia não a assujeitou e ela resistiu às tentativas de epistemícidio, não foi interditada pelo senso comum científico. Esta produção publicada no presente ano foi elaborada no início do século XX, até então estava limitada ao público de estudantes e pesquisadores circunscritos ao espaço acadêmico paulista ou para os que lá se direcionavam com o objetivo claro de acessar esta escrita acadêmica. Agora, ela chega a diversas mãos, possibilitando leituras e interpretações que podem estruturar estudos e pesquisas específicas sobre racismo. Como também salvaguarda um precioso e potente estudo acadêmico de uma das intelectuais brasileiras mais ativas na contemporaneidade.

Ao operacionalizar muito bem o pensamento foucaultiano, a filósofa Sueli Carneiro constrói o conceito de dispositivo de racialidade e cumpre com seu objetivo, isto é, esquadrinhar discursos e práticas que estruturam o racismo no Brasil. Como diz Yara Frateschi, não encontramos no livro uma repetição de conceitos, mas a construção de uma “nova arquitetônica conceitual”, muito combativa e política, um estandarte de luta antirracista. A obra, portanto, deve ser lida por todos os que estudam e pesquisam sobre as questões raciais no Brasil, tendo em mente que compreenderá a filosofia política através de muita disposição e revisão de seus entendimentos. Familiarizando-se com a escrita de Carneiro e voltando à introdução, compreendemos a convocação para o diálogo entre o Eu outro e o Eu hegemônico, entre o não branco e o branco.

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Luciana Vilela Dourado Matos, professora da Educação Básica do Estado da Bahia, licenciada em História (Uneb), especialista em Metodologia do Ensino Superior (UFMA), mestra em Ciências Sociais (PPGCS/UFMA) com a dissertação IMAGENS LEGADAS: São Luís nas fotografias de Gaudêncio Cunha, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (Uneb). Publicou o texto intitulado As cidades de Cícero Matos no livro Arte e Cidade: imagens de Jacobina, disponível em https://www.instagram.com/p/CuDeLspNWc6/ Redes sociais: @lucianavilelamatos; ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/9805950276303841; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0007-6804-7015; E-mail: luciana.matos6@enova.educacao.ba.gov.br.


Para citar esta resenha

CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, 431p. Resenha de: MATOS, Luciana Vilela Dourado. Racismo no Brasil. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.13, set./out., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/racismo-no-brasil-resenha-de-luciana-vilela-dourado-matos-sobre-o-livro-dispositivo-de-racialidade-a-construcao-do-outro-como-nao-ser-como-fundamento-do-ser-de-sueli-carneiro/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 13, set./out., 2023 | ISSN 2764-2666

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