Ilicitudes na América portuguesa – Resenha de Daniel Costa (UNIFESP) sobre o livro “Ladrões da República: Corrupção, moral e cobiça no Brasil, séculos XVI a XVIII”, de Adriana Romeiro
Resumo: A obra Ladrões da República: Corrupção, Moral e Cobiça no Brasil, Séculos XVI a XVIII de Adriana Romeiro visa compreender a corrupção no Brasil colonial. Romeiro utiliza uma ampla variedade de fontes para explorar as relações entre dinheiro, governo e corrupção. A obra é elogiada por sua profundidade e criticada pela densidade.
Palavras-chave: corrupção; moral; República.
Aquele que acompanha, mesmo de forma superficial, o noticiário e os bastidores da política brasileira sabe que o tema da corrupção é algo recorrente. Desde o suposto “mar de lama”, termo cunhado por Carlos Lacerda durante sua campanha contra o governo Vargas na década de 1950, até a imagem exibida pelo Jornal Nacional dos dutos de petróleo jorrando dinheiro sujo no auge da famigerada operação Lava Jato, o assunto, que deveria ser encarado de forma séria, é utilizado como amparo para um debate parcial, raso e baseado em muitos interesses, menos combater de fato tais práticas. Com a publicação de Ladrões da República: Corrupção, Moral e Cobiça no Brasil, Séculos XVI a XVIII, recente livro de Adriana Romeiro, o leitor poderá ter acesso a uma pesquisa fundamental para a compreensão dessa prática no Brasil, entre os séculos XVI e XVIII.
Adriana Romeiro é doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao longo de onze capítulos, a historiadora especializada em culturas políticas em Minas Gerais e em corrupção no mundo ibérico procura mostrar a percepção acerca das ideias, imagens e práticas de corrupção no período: “dos muitos fenômenos associados a essa palavra, interessou-me sobretudo investigar o problema das relações entre dinheiro, governo e corrupção, para entender como então se articulava o debate, tanto nos discursos quanto nas práticas, sobre o tema da cobiça dos governantes” (p.17).
Retomando algumas das teses apresentadas no livro Corrupção e Poder no Brasil: Uma História, Séculos XVI a XVIII, obra lançada em 2017, Romeiro busca aprofundar a análise acerca do significado da corrupção no imaginário político e social no período. Para tal empreitada, a historiadora recorre a uma gama variada de fontes, percorrendo desde a documentação oficial produzida pela administração colonial até peças literárias e teatrais, e os tratados político-morais. De acordo com Adriana Romeiro, a escolha pela diversidade das fontes “visa a sustentar o argumento de que os discursos que associavam a corrupção ao amor do dinheiro e às práticas de favorecimento, não estavam confinados aos escritos político-morais, mas, amplamente partilhados, conformavam a gramática e a prática política de homens e mulheres” (p.19).
O significado da palavra corrupção e do próprio ato de corromper não ficou imune às transformações ocorridas na sociedade ao longo do tempo, gerando inclusive debates acalorados entre historiadores sobre a pertinência da utilização do conceito de corrupção para casos ocorridos no século XVIII. A falta de clareza na utilização do termo pode levar o historiador a cometer diversos anacronismos, causando prejuízos à análise dos casos postos. Para evitar tais riscos, Adriana adota uma estratégia de análise baseada na história dos conceitos apresentada pelo historiador Reinhart Koselleck. Na introdução da publicação, a historiadora explica ao leitor sua estratégia para evitar cair nas armadilhas postas. Vejamos: “Para exorcizar o fantasma do presente, esforcei-me por abordar o passado da mesma forma que os antropólogos observam as comunidades tradicionais, tomando as devidas precauções metodológicas para não esvaziá-la de sua alteridade.” Ela afirma também que a metodologia empregada “pode ser sintetizada como a ‘reconstrução analítica das diferenças’, de modo que, ao longo das páginas seguintes, o leitor se deparará, por exemplo, com um cuidado quase obsessivo no tratamento do léxico com que os contemporâneos então elaboravam a reflexão sobre a corrupção” (p.18).
Além de Koselleck, autor mobilizado para a construção do método analítico, Romeiro busca dar continuidade à tradição historiográfica construída por autores como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Fernando Novais e Laura de Mello e Souza. Afora os citados, o leitor poderá acompanhar um profícuo diálogo com autores hispânicos, visto que, após a superação do discurso dominante sobre o tema, onde se preconizavam interpretações de cunho moralizante, a temática nas últimas décadas tem “assistido a um vigoroso movimento de renovação das suas perspectivas teóricas” (p.21).
Para a autora, a proeminência desse diálogo com autores hispânicos ocorre, entre outras razões, porque “no meio acadêmico luso-brasileiro, a história da corrupção parece avançar a passos lentos, relegada ainda a uma posição mais transversal que central” (p.22). Algo incompreensível quando se “constata a relevância do papel da corrupção no universo colonial” (p.22), algo inerente à sociedade da época, abrangendo desde a política local, formação de uma elite econômica e política e, principalmente, quando se pensa no processo de acumulação do capital.
Os dois primeiros capítulos da obra são dedicados à discussão do significado da corrupção da República e da humanidade naquele período. Partindo da associação entre a interpretação que era dada na época ao ato de corromper e o conjunto da sociedade vista enquanto um corpo político, é que poderemos constatar como a corrupção era vista como algo extremamente danoso. Segundo Romeiro, “havia dois campos em que o termo corrupção conhecia particular circulação: os tratados médicos e os escritos político-morais, servindo para nomear ora os quadros patológicos associados ao apodrecimento de partes do organismo, ora o processo de adoecimento e morte das repúblicas” (p.26).
Nos capítulos seguintes, partindo de exemplos tirados de escritos morais e políticos, sermões, poemas e na literatura, a historiadora mostra quem eram aqueles que, contaminados pela corrupção, destruíam a República. Assim, entre servidores pródigos, avarentos ou tiranos, o bem comum misturava-se com o particular. Ao realizar uma acurada leitura das fontes, Romeiro explica que “a noção de bem comum se apresentava como um campo de disputa em torno dos seus múltiplos sentidos, o que refletia a pluralidade do horizonte de expectativa dos grupos sociais”, entretanto tais embates não impediam que o significado geralmente resultasse em “manipulação para encobrir e promover interesses privados” (p.145).
Percorrendo os caminhos do processo de consolidação de uma estrutura administrativa na colônia, Adriana Romeiro mostra como a percepção dos atos de corrupção foi ganhando novos significados para a população, passando de uma postura de tolerância para o enfrentamento, como no caso em que “moradores de Salvador enviaram um procurador a Lisboa com a missão de apresentar ao rei suas queixas” (p.188) sobre a postura da Câmara local em relação à cobrança de tributos e a arrematação de contratos.
Passando pelas intrincadas relações de governantes com seus criados, parentes e achegados, a autora demonstra que, diante de convenções já pré-estabelecidas e considerando os soldos irrisórios, essas autoridades acabavam se aproveitando de expedientes ilícitos para sustentar seus apaniguados, gerando ruído entre a população. Isso também não era bem-visto pela Coroa, que desejava um território harmônico, com uma governança pacífica.
Frente aos diversos casos de corrupção, nem sempre aqueles que cometiam o ilícito saíam impunes, porém geralmente a rede de relações estabelecidas acabava livrando o responsável pelo ilícito. Caso exemplar é o do governador Sebastião de Castro e Caldas, classificado por um historiador como “homem despótico, imoral, sem religião e cuja ambição não tinha limites” (p.322). Um governador que “havia posto as conveniências particulares acima dos interesses da Coroa” protagonizara “um verdadeiro rosário de malfeitos” (p.344). Após ser enviado preso para Portugal, tem sua residência aprovada, sendo inclusive reabilitado.
O caso de Castro Caldas, um entre os diversos episódios narrados pela autora ao longo do livro, mostra a importância das redes de proteção estabelecidas por esses agentes. Para os camaristas a atuação do governador fora tão danosa que “duas mãos de papel não bastarão para se escrever a Vossa Majestade, as opressões, moléstias e apertos que padeceu este povo” (p.344). Já para o desembargador responsável por sua residência, além de não lhe imputar delito algum, ressaltou que Caldas foi “um dos melhores governadores que conheceu aquela capitania, tendo atuado com satisfação, limpeza de mãos, zelo, cuidado e inteireza nas obrigações de seu cargo” (p.344).
Com a publicação de Ladrões da República: Corrupção, Moral e Cobiça no Brasil, Séculos XVI a XVIII, a historiadora Adriana Romeiro apresenta ao leitor um trabalho denso, seja pela quantidade de fontes arroladas como pela bibliografia mobilizada. Na apresentação do livro, Romeiro adianta que a tese sustentada “ao longo das páginas diz respeito à existência de uma vigorosa teia de normas morais que estabeleciam limites para a atuação dos homens públicos, visando impedi-los de se apropriarem dos bens alheios no exercício de suas funções.” A autora posiciona-se contra investigadores da idade moderna para os quais “o enriquecimento por meio de cargos e postos, e o favorecimento de parentes e amigos constituíam práticas legítimas e socialmente aceitas.” Sua intenção é “mostrar que a associação dessas condutas à corrupção encontrava-se fortemente infiltrada na tratadística e nos discursos e ações dos vassalos, conformando aquilo que bem podemos chamar de economia moral da corrupção” (p.19).
Diante do que foi apresentado, a professora Adriana Romeiro cumpriu o que fora planejado para sua obra. Apesar da densidade do texto, a leitura é recomendada para leitores não acadêmicos, pois o rol de exemplos trazidos pela autora contribui para a compreensão das suas teses. Simultaneamente, ela oferece vários caminhos para aqueles que se dedicam ao estudo do tema e combate o senso comum sobre o tema da corrupção, experimentado diuturnamente por alguns grupos políticos e por setores da mídia hegemônica.
Sumário de Ladrões da República: Corrupção, moral e cobiça no Brasil, séculos XVI a XVIII
- Agradecimentos
- Introdução
- 1. A corrupção da república
- 2. A corrupção da humanidade
- 3. Pastores, ovelhas e lobos
- 4. Tomar o alheio
- 5. O ódio dos vassalos
- 6. Reputação, autoridade e corrupção
- 7. Afetos, o veneno da república
- 8. Criados, parentes e achegados
- 9. O mal ganhado ou o turpe lucrum
- 10. Governo de proveito
- 11. Entre o castigo e a dissimulação
- Fontes e bibliografia
Resenhista
Daniel Costa é mestrando em História e bolsista CNPq, vinculado ao PPGHIS da Escola de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP), onde desenvolve pesquisa acerca da corrupção na América portuguesa, com ênfase com ênfase no período pombalino. Publicou, entre outros trabalhos, “Corrupção, corruptores e contrabando: uma discussão historiográfica sobre práticas ilícitas na América Portuguesa (C. Século XVIII) (2022)” e “Caminhando entre veredas: Apontamentos sobre o contrabando e corrupção na América portuguesa (Pernambuco 1758-1778) (2023)”. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/
Para citar esta resenha
ROMERO, Adriana. Ladrões da República: Corrupção, moral e cobiça no Brasil, séculos XVI a XVIII. São Paulo: Fino Traço, 2023. 420p. Resenha de: COSTA, Daniel. Ilicitudes na América portuguesa. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.17, mar./abr., 2024. Disponível em <Ilicitudes na América portuguesa – Resenha de Daniel Costa sobre o livro “Ladrões da República: Corrupção, moral e cobiça no Brasil, séculos XVI a XVIII”, de Adriana Romeiro – Crítica Historiografica (criticahistoriografica.com.br)>
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