Uma Historiografia esquecida? – Resenha de Magno Francisco de Jesus Santos (UFRN), sobre o livro “Sergipe Colonial, de Maria Beatriz Nizza da Silva

Maria Beatriz Nizza da Silva | Imagem: Editora Singular (Silva, 2019)

Resumo: Sergipe Colonial: uma capitania esquecida (2019), de Maria Beatriz Nizza da Silva, objetiva resgatar o passado colonial sergipano e despertar novas pesquisas. Positivamente, promove sínteses históricas sobre a capitania; negativamente, negligencia a historiografia local e apresenta leituras eurocentradas e imprecisas. Apesar das limitações, reafirma a relevância da historiografia e da história sergipana.

Palavras-chave: Sergipe colonial; capitania; historiografia sergipana.


Publicado em 2019 pela Editora Singular, Sergipe Colonial: uma capitania esquecida, da historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva, é um livro que busca apresentar o passado colonial sergipano e despertar o interesse por novas pesquisas de uma capitania tida como “pouco atraente”. Pautado em ampla documentação custodiada nos arquivos portugueses, o livro apresentou uma considerável repercussão por se tratar de uma retomada com a prática de produção de sínteses históricas acerca do passado colonial das antigas capitanias do norte do Estado do Brasil, além do fato de ser uma produção oriunda de uma historiadora estrangeira que fez carreira em uma universidade do Sudeste do país, sem vínculos com Sergipe.

Maria Beatriz Nizza da Silva é uma historiadora portuguesa, nascida em Lisboa no ano de 1938. Ela é licenciada em Ciências Históricas e Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1961. Dois anos após a conclusão do curso de graduação ela foi exilada pelo governo ditatorial de Antônio Salazar e passou a residir no Brasil, onde se doutorou em Filosofia pela Universidade de São Paulo em 1967, instituição na qual exerceu a docência como professora titular entre 1973 e 1990. Trata-se de uma historiadora que possui uma considerável produção relacionada ao período colonial brasileiro e à metodologia da história, com ênfase em temas como família, mulheres, sociedade e cultura. Neste livro, 26 capítulos são distribuídos em 231 laudas para, segundo a autora, “complementar as pesquisas dos historiadores” (p.11) que a precederam.

Com a obra, Maria Beatriz Nizza da Silva inscreveu o seu nome na plêiade de historiadores que ousaram sistematizar a narrativa do passado sergipano no decurso temporal entre a conquista de 1590 e a emancipação política frente à capitania da Bahia em 1820/22, ao lado de intelectuais como Felisbelo Freire, com a pioneira História de Sergipe (1891) e Maria Thétis Nunes, com Sergipe Colonial I (1989), Sergipe Colonial II (2006) e História da Educação em Sergipe (1984). Neste sentido, o esforço da historiadora lusitana é louvável em decorrência da retomada da tradição da escrita das sínteses e da possibilidade de pluralizar as narrativas sobre o passado colonial brasileiro.

Todavia, o livro apresenta algumas insuficiências e corrobora para o velho problema da historiografia brasileira: a edificação da invisibilidade da produção de textos históricos de autores que atuam fora do centro-sul do país. A experiente historiadora aprecia o passado sergipano pautada na premissa da “escassez da historiografia de Sergipe colonial” (p.9). No âmbito da escrita da história, Sergipe é uma mata virgem. Essa leitura é oriunda das queixas apresentadas por autores como Varnhagen (1854), Felisbelo Freire (1891) e Luiz Mott (1989), ou seja, ela se amparou em argumentos produzidos por historiadores que pensaram o passado colonial em contextos distintos: Varnhagen e Felisbelo Freire em momentos de invenção de uma tradição historiográfica e Luiz Mott, no âmbito da renovação historiográfica.

Contudo, trinta anos após a publicação de Luiz Mott, esse argumento de escassez historiográfica se revela pouco plausível. Em decorrência da ampliação dos programas de pós-graduação em todo o país, o passado colonial sergipense atualmente se encontra dotado de uma considerável historiografia que discorre sobre diferentes aspectos, incluindo questões aludidas pela autora, como a economia (Fernando Afonso Ferreira Júnior, em 2003), a elite social (com Anderson Pereira dos Santos, em 2018), a organização militar e os capitães-mores (com Luiz Siqueira, em 2017), violência (Wanderlei Oliveira, em 2015) e as ordens religiosas e a cultura escrita (Ane Mecenas, em 2011 e 2017). Assim, pensar Alagoas e Sergipe como capitanias “pouco estudadas historicamente” constitui um argumento, em grande medida, anacrônico.

O problema dessa alocução defendida por Maria Beatriz Nizza da Silva é que os fazeres historiográficos atinentes ao passado sergipano emergem como um projeto de futuro, um porvir distante, uma quimera devedora de sua pequenez. A autora defende que “Sergipe colonial deve ser objeto de pesquisa intensiva, apesar da subordinação à Bahia” (p.9). Nas lentes da historiadora portuguesa, a escrita da história sergipana emergia como uma demanda delegada ao futuro, embora esse futuro projetado em prática já tenha sido executado. Evidentemente, a escrita da história constitui um processo no qual as leituras são constantemente repensadas e a existência de uma tradição historiográfica não se torna impeditiva de revisitar temáticas clássicas. O questionamento perpassa por uma dimensão oposta, vinculada à noção de que a historiografia sobre Sergipe colonial ainda se encontra em lacuna, a ser realizada.

Essa pretensa inexistência historiográfica seria devedora de uma sociedade pouco atraente e irrelevante. Nas palavras da autora, o seu “gosto pela microhistória adaptou-se perfeitamente a um território culturalmente desvalorizado no período colonial, e por isso mesmo esquecido, sem uma produção literária que fosse além de um ocasional sermão, e também no qual a população branca era escassa ao lado de uma abundância de negros e pardos escravos e forros” (p.12). Essa interpretação de pequenez atribuída à sociedade da capitania de Sergipe é questionável, pois ao acionarmos como parâmetro outros espaços coloniais, a pequena capitania sergipense não apresentava uma realidade tão destoante. Chega a surpreender a leitura de um texto histórico em pleno século XXI que situa a literatura da capitania reduzida a um “ocasional sermão”. É de estremecer os mudos túmulos de cronistas, religiosos e letrados que nasceram ou viveram em Sergipe.

Neste caso, o que pode ser entendido como diferencial era a dinâmica vivenciada nos grandes centros urbanos da colônia, como Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Mariana e Vila Rica. Além disso, designar Sergipe como culturalmente desvalorizado em decorrência de um predomínio da população negra e parda implica em uma leitura eurocêntrica e desconsidera o seu entendimento com um território de resistência. Ao invertermos as lentes da autora, outros protagonismos emergem. Sergipe era uma capitania onde negros e indígenas combateram e resistiram às investidas lusitanas.

Além de uma postura epistêmica eurocentrada, o livro também reverbera inúmeras imprecisões interpretativas e declarações pouco verossímeis. No entendimento de Beatriz Nizza da Silva, “os jesuítas sempre preferiram instalar-se na Bahia e não na pouco povoada Sergipe, região que lhes interessava apenas para alcançarem sesmarias” (p.58). Caso isolado teria sido “o jesuíta italiano Luigi Vicenzo Mamiani que missionou por muitos anos na aldeia de Geru” (p.58). No âmbito educacional, a autora foi taxativa: “podemos portanto concluir que nem jesuítas nem franciscanos contribuíram de forma significativa para a educação em Sergipe” (p.77).

Como sustentar essas proposições, ao considerar que, entre o final do século XVII e o início do XVIII, os inacianos e capuchinhos foram os responsáveis pelo maior quantitativo na publicação de impressos oriundos do Brasil e parte considerável desses impressos eram provenientes de manuscritos produzidos por religiosos que atuavam em Sergipe? Essas informações não se sustentam nem historiograficamente, tampouco por meio da documentação. Uma vasta lista de propriedades e de investidas da Companhia de Jesus em terras sergipenses foi desconsiderada, bem como as contribuições de outros religiosos que publicaram importantes textos, incluindo sergipanos nascidos no pequeno torrão “esquecido”.

A leitura de Sergipe Colonial: uma capitania esquecida evidencia que a Maria Beatriz Nizza da Silva priorizou a apreciação de uma historiografia clássica como respaldo para a sua narrativa. Assim, ela amparou-se em autores que pensaram a história do Brasil, como Robert Southey, Francisco Adolfo Varnhagen e Capistrano de Abreu, além de alguns autores da historiografia sergipana, como Maria da Glória Santana de Almeida, Felisbelo Freire, Maria Thetis Nunes, Luiz Mott, Beatriz Góis Dantas e Edna Matos Antônio.

Neste aspecto, Maria Beatriz Nizza da Silva ressalta que a escrita da história de Sergipe colonial implicava no enfrentamento de um obstáculo adicional no tocante às “dificuldades documentais”, que em diferentes momentos exigem a consulta às fontes atinentes à Bahia. No entendimento da autora “a história de Sergipe colonial continua atrelada à Bahia, apesar dos historiadores que se dedicaram a ela: Feliberto Freire, Maria Thetis Nunes e Luiz Mott” (p.10).

Ao longo do livro a professora Maria Beatriz Nizza da Silva nomeou erroneamente o historiador sergipano, Felisbelo Freire, apesar da sua considerável contribuição à historiografia brasileira, entre o final da centúria oitocentista e o emergir do século XX. Todavia, o que desperta a atenção é a ausência de autores que discorrem sobre as temáticas elencadas ao longo de cada capítulo. Até mesmo os que produziram primeira metade do século XX, publicando em periódicos como a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, foram “esquecidos” pela autora.

Essa ausência causa estranhamento, ao considerarmos que a professora Maria Beatriz Nizza da Silva é reconhecida pelo rigor metodológico e por sabermos que o estado da arte constitui um pressuposto basilar na pesquisa histórica. Neste sentido, as conclusões da autora na qual lamenta que “pesquisar Sergipe colonial revelou-se uma experiência desafiadora, não só pela escassez historiográfica, mas também pela escassez documental para o estudo da sociedade sergipana em seus múltiplos aspectos” (p.211) deve ser relativizada.

Pautado nesta premissa, é possível dizer que a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva apresentou um livro que evidencia contribuições ambíguas: de um lado, reaviva a possibilidade de produção de sínteses históricas que englobam grandes marcos temporais e que amplifica a difusão do passado sergipano na concorrida seara historiográfica. Por outro, o livro negligencia a efetivação do estado da arte e corrobora a perpetuação de uma velha prática nos fazeres historiográficos brasileiros: desconsiderar os escritos que não são oriundos do centro-sul do país. Possivelmente, grande parte dessa lacuna documental ressaltada pela autora seria sanada por meio da apreciação de autores que trilharam os caminhos das fontes sobre a aludida capitania em outros momentos.

A autora declara que, “em resumo”, o seu “objetivo foi tirar do esquecimento, na historiografia do Brasil colonial, uma capitania considerada menos atraente” e que espera “tê-lo atingido, com a esperança de que com a documentação dos arquivos sergipanos os jovens historiadores possam completar o que aqui esteja faltando” (p.212). Ela corroborou a ampliação do debate historiográfico sobre Sergipe de forma comparativa com as experiências de outras capitanias. Todavia, esse investimento fortalece a construção do silêncio sobre homens e mulheres que, em diferentes temporalidades, vasculharam os arquivos e produziram saberes acerca do passado sergipano, prática que os jovens historiadores conclamados pela autora, espero, não devam replicar.

Sergipe Colonial: uma capitania esquecida, certamente, se tornará uma leitura obrigatória para os pesquisadores acerca do passado sergipano porque foi escrito por uma historiadora consagrada nacionalmente. Todavia, considero que ele apresenta poucas contribuições à compreensão do passado colonial sergipano, além de explicitar inúmeras imprecisões que não se sustentam historiográfica e documentalmente.

O livro permite a retomada do debate sobre alguns temas clássicos da história de Sergipe, mas não avança em relação às contribuições de Beatriz Góis Dantas, Luiz Mott, Maria Thetis Nunes e até mesmo ao velho Felisbelo Freire.

Felisbelo Freire (1858-1916) | Foto: Libânio do Amaral/Wikipédia

A leitura do livro, por noviços e acadêmicos, contribui para reafirmar o peso da autoridade dos discípulos de Clio, nascidos entre o Rio Real e o Rio São Francisco. Com isso, apesar dos esforços louváveis da autora e considerando o fato de a obra ter cumprido parcialmente os objetivos anunciados, o passado colonial sergipano continua a ter como principais contribuições historiográficas os eruditos escritos de Maria Thetis Nunes. Talvez esse seja o grande legado do livro: confirmar o mérito dos escritos de historiadores e historiadoras de Sergipe. Se, em outros tempos, o sergipano só era valorizado ao sair de seu torrão; hoje, reafirmamos a autoestima ao contrapor a nossa historiografia com a pequenez dos olhares exógenos.

Sumário de Sergipe, uma historiografia esquecida

  • Introdução
  • 1. A conquista e o povoamento do território
  • 2. Sergipe setecentista
  • 3. Os capitães-mores do século XVII
  • 4. Um espaço de violência
  • 5. A presença da Inguisição: confidentes e denunciados, familiares e comissários
  • 6. As missões
  • 7. A Coroa e a população indígena
  • 8. Jesuítas e franciscanos e a educação
  • 9. A reclusão feminina
  • 10. A elite social
  • 11. A elite administrativa
  • 12. A escassez de Aulas Régias
  • 13. Vilas e povoações
  • 14. Dados demográficos
  • 15. O clero secular e a criação de frequesias
  • 16. Os párocos e seus fregueses
  • 17. A organização militar
  • 18. Os capitães-mores do século XVIII e início do XIX
  • 19. Magistrados letrados
  • 20. Juízes ordinários
  • 21. O funcionamento da justiça
  • 22. A contribuição de Sergipe para os donativos à Coroa
  • 23. Sergipe no fim do período colonial
  • 24. Ainda a submissão à Bahia
  • 25. Os representantes de Sergipe nas Cortes de Lisboa
  • 26. Sergipe e D. Pedro
  • Concluindo
  • Fontes e bibliografia

Resenhista

Magno Francisco de Jesus Santos é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e é bolsista de Produtividade do CNPq. Publicou, entre outros trabalhos, Ecos da Modernidade: a arquitetura dos grupos escolares sergipanos (2013), No sertão e na capital, salve Aparecida: peregrinações em Sergipe no tempo presente (2015) e O Prefácio dos tempos: a romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão (2024). ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/9046069221784194 ID Orcid: Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2218-7772. E-mail: magno.santos@ufrn.br


Para citar esta resenha

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sergipe colonial: uma Capitania esquecida. São Paulo: Singular, 2019. 281p. Resenha de: SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Imagem pouco atraente. Crítica Historiográfica. Natal, v4, n.18, jul./ago, 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/imagem-pouco-atraente-resenha-de-magno-francisco-de-jesus-santos-ufrn-sobre-o-livro-sergipe-uma-historiografia-esquecida-de-maria-beatriz-nizza-da-silva/>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 18, jul./ago., 2024 | ISSN 2764-2666

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Uma Historiografia esquecida? – Resenha de Magno Francisco de Jesus Santos (UFRN), sobre o livro “Sergipe Colonial, de Maria Beatriz Nizza da Silva

Maria Beatriz Nizza da Silva | Imagem: Editora Singular (Silva, 2019)

Resumo: Sergipe Colonial: uma capitania esquecida (2019), de Maria Beatriz Nizza da Silva, objetiva resgatar o passado colonial sergipano e despertar novas pesquisas. Positivamente, promove sínteses históricas sobre a capitania; negativamente, negligencia a historiografia local e apresenta leituras eurocentradas e imprecisas. Apesar das limitações, reafirma a relevância da historiografia e da história sergipana.

Palavras-chave: Sergipe colonial; capitania; historiografia sergipana.


Publicado em 2019 pela Editora Singular, Sergipe Colonial: uma capitania esquecida, da historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva, é um livro que busca apresentar o passado colonial sergipano e despertar o interesse por novas pesquisas de uma capitania tida como “pouco atraente”. Pautado em ampla documentação custodiada nos arquivos portugueses, o livro apresentou uma considerável repercussão por se tratar de uma retomada com a prática de produção de sínteses históricas acerca do passado colonial das antigas capitanias do norte do Estado do Brasil, além do fato de ser uma produção oriunda de uma historiadora estrangeira que fez carreira em uma universidade do Sudeste do país, sem vínculos com Sergipe.

Maria Beatriz Nizza da Silva é uma historiadora portuguesa, nascida em Lisboa no ano de 1938. Ela é licenciada em Ciências Históricas e Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1961. Dois anos após a conclusão do curso de graduação ela foi exilada pelo governo ditatorial de Antônio Salazar e passou a residir no Brasil, onde se doutorou em Filosofia pela Universidade de São Paulo em 1967, instituição na qual exerceu a docência como professora titular entre 1973 e 1990. Trata-se de uma historiadora que possui uma considerável produção relacionada ao período colonial brasileiro e à metodologia da história, com ênfase em temas como família, mulheres, sociedade e cultura. Neste livro, 26 capítulos são distribuídos em 231 laudas para, segundo a autora, “complementar as pesquisas dos historiadores” (p.11) que a precederam.

Com a obra, Maria Beatriz Nizza da Silva inscreveu o seu nome na plêiade de historiadores que ousaram sistematizar a narrativa do passado sergipano no decurso temporal entre a conquista de 1590 e a emancipação política frente à capitania da Bahia em 1820/22, ao lado de intelectuais como Felisbelo Freire, com a pioneira História de Sergipe (1891) e Maria Thétis Nunes, com Sergipe Colonial I (1989), Sergipe Colonial II (2006) e História da Educação em Sergipe (1984). Neste sentido, o esforço da historiadora lusitana é louvável em decorrência da retomada da tradição da escrita das sínteses e da possibilidade de pluralizar as narrativas sobre o passado colonial brasileiro.

Todavia, o livro apresenta algumas insuficiências e corrobora para o velho problema da historiografia brasileira: a edificação da invisibilidade da produção de textos históricos de autores que atuam fora do centro-sul do país. A experiente historiadora aprecia o passado sergipano pautada na premissa da “escassez da historiografia de Sergipe colonial” (p.9). No âmbito da escrita da história, Sergipe é uma mata virgem. Essa leitura é oriunda das queixas apresentadas por autores como Varnhagen (1854), Felisbelo Freire (1891) e Luiz Mott (1989), ou seja, ela se amparou em argumentos produzidos por historiadores que pensaram o passado colonial em contextos distintos: Varnhagen e Felisbelo Freire em momentos de invenção de uma tradição historiográfica e Luiz Mott, no âmbito da renovação historiográfica.

Contudo, trinta anos após a publicação de Luiz Mott, esse argumento de escassez historiográfica se revela pouco plausível. Em decorrência da ampliação dos programas de pós-graduação em todo o país, o passado colonial sergipense atualmente se encontra dotado de uma considerável historiografia que discorre sobre diferentes aspectos, incluindo questões aludidas pela autora, como a economia (Fernando Afonso Ferreira Júnior, em 2003), a elite social (com Anderson Pereira dos Santos, em 2018), a organização militar e os capitães-mores (com Luiz Siqueira, em 2017), violência (Wanderlei Oliveira, em 2015) e as ordens religiosas e a cultura escrita (Ane Mecenas, em 2011 e 2017). Assim, pensar Alagoas e Sergipe como capitanias “pouco estudadas historicamente” constitui um argumento, em grande medida, anacrônico.

O problema dessa alocução defendida por Maria Beatriz Nizza da Silva é que os fazeres historiográficos atinentes ao passado sergipano emergem como um projeto de futuro, um porvir distante, uma quimera devedora de sua pequenez. A autora defende que “Sergipe colonial deve ser objeto de pesquisa intensiva, apesar da subordinação à Bahia” (p.9). Nas lentes da historiadora portuguesa, a escrita da história sergipana emergia como uma demanda delegada ao futuro, embora esse futuro projetado em prática já tenha sido executado. Evidentemente, a escrita da história constitui um processo no qual as leituras são constantemente repensadas e a existência de uma tradição historiográfica não se torna impeditiva de revisitar temáticas clássicas. O questionamento perpassa por uma dimensão oposta, vinculada à noção de que a historiografia sobre Sergipe colonial ainda se encontra em lacuna, a ser realizada.

Essa pretensa inexistência historiográfica seria devedora de uma sociedade pouco atraente e irrelevante. Nas palavras da autora, o seu “gosto pela microhistória adaptou-se perfeitamente a um território culturalmente desvalorizado no período colonial, e por isso mesmo esquecido, sem uma produção literária que fosse além de um ocasional sermão, e também no qual a população branca era escassa ao lado de uma abundância de negros e pardos escravos e forros” (p.12). Essa interpretação de pequenez atribuída à sociedade da capitania de Sergipe é questionável, pois ao acionarmos como parâmetro outros espaços coloniais, a pequena capitania sergipense não apresentava uma realidade tão destoante. Chega a surpreender a leitura de um texto histórico em pleno século XXI que situa a literatura da capitania reduzida a um “ocasional sermão”. É de estremecer os mudos túmulos de cronistas, religiosos e letrados que nasceram ou viveram em Sergipe.

Neste caso, o que pode ser entendido como diferencial era a dinâmica vivenciada nos grandes centros urbanos da colônia, como Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Mariana e Vila Rica. Além disso, designar Sergipe como culturalmente desvalorizado em decorrência de um predomínio da população negra e parda implica em uma leitura eurocêntrica e desconsidera o seu entendimento com um território de resistência. Ao invertermos as lentes da autora, outros protagonismos emergem. Sergipe era uma capitania onde negros e indígenas combateram e resistiram às investidas lusitanas.

Além de uma postura epistêmica eurocentrada, o livro também reverbera inúmeras imprecisões interpretativas e declarações pouco verossímeis. No entendimento de Beatriz Nizza da Silva, “os jesuítas sempre preferiram instalar-se na Bahia e não na pouco povoada Sergipe, região que lhes interessava apenas para alcançarem sesmarias” (p.58). Caso isolado teria sido “o jesuíta italiano Luigi Vicenzo Mamiani que missionou por muitos anos na aldeia de Geru” (p.58). No âmbito educacional, a autora foi taxativa: “podemos portanto concluir que nem jesuítas nem franciscanos contribuíram de forma significativa para a educação em Sergipe” (p.77).

Como sustentar essas proposições, ao considerar que, entre o final do século XVII e o início do XVIII, os inacianos e capuchinhos foram os responsáveis pelo maior quantitativo na publicação de impressos oriundos do Brasil e parte considerável desses impressos eram provenientes de manuscritos produzidos por religiosos que atuavam em Sergipe? Essas informações não se sustentam nem historiograficamente, tampouco por meio da documentação. Uma vasta lista de propriedades e de investidas da Companhia de Jesus em terras sergipenses foi desconsiderada, bem como as contribuições de outros religiosos que publicaram importantes textos, incluindo sergipanos nascidos no pequeno torrão “esquecido”.

A leitura de Sergipe Colonial: uma capitania esquecida evidencia que a Maria Beatriz Nizza da Silva priorizou a apreciação de uma historiografia clássica como respaldo para a sua narrativa. Assim, ela amparou-se em autores que pensaram a história do Brasil, como Robert Southey, Francisco Adolfo Varnhagen e Capistrano de Abreu, além de alguns autores da historiografia sergipana, como Maria da Glória Santana de Almeida, Felisbelo Freire, Maria Thetis Nunes, Luiz Mott, Beatriz Góis Dantas e Edna Matos Antônio.

Neste aspecto, Maria Beatriz Nizza da Silva ressalta que a escrita da história de Sergipe colonial implicava no enfrentamento de um obstáculo adicional no tocante às “dificuldades documentais”, que em diferentes momentos exigem a consulta às fontes atinentes à Bahia. No entendimento da autora “a história de Sergipe colonial continua atrelada à Bahia, apesar dos historiadores que se dedicaram a ela: Feliberto Freire, Maria Thetis Nunes e Luiz Mott” (p.10).

Ao longo do livro a professora Maria Beatriz Nizza da Silva nomeou erroneamente o historiador sergipano, Felisbelo Freire, apesar da sua considerável contribuição à historiografia brasileira, entre o final da centúria oitocentista e o emergir do século XX. Todavia, o que desperta a atenção é a ausência de autores que discorrem sobre as temáticas elencadas ao longo de cada capítulo. Até mesmo os que produziram primeira metade do século XX, publicando em periódicos como a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, foram “esquecidos” pela autora.

Essa ausência causa estranhamento, ao considerarmos que a professora Maria Beatriz Nizza da Silva é reconhecida pelo rigor metodológico e por sabermos que o estado da arte constitui um pressuposto basilar na pesquisa histórica. Neste sentido, as conclusões da autora na qual lamenta que “pesquisar Sergipe colonial revelou-se uma experiência desafiadora, não só pela escassez historiográfica, mas também pela escassez documental para o estudo da sociedade sergipana em seus múltiplos aspectos” (p.211) deve ser relativizada.

Pautado nesta premissa, é possível dizer que a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva apresentou um livro que evidencia contribuições ambíguas: de um lado, reaviva a possibilidade de produção de sínteses históricas que englobam grandes marcos temporais e que amplifica a difusão do passado sergipano na concorrida seara historiográfica. Por outro, o livro negligencia a efetivação do estado da arte e corrobora a perpetuação de uma velha prática nos fazeres historiográficos brasileiros: desconsiderar os escritos que não são oriundos do centro-sul do país. Possivelmente, grande parte dessa lacuna documental ressaltada pela autora seria sanada por meio da apreciação de autores que trilharam os caminhos das fontes sobre a aludida capitania em outros momentos.

A autora declara que, “em resumo”, o seu “objetivo foi tirar do esquecimento, na historiografia do Brasil colonial, uma capitania considerada menos atraente” e que espera “tê-lo atingido, com a esperança de que com a documentação dos arquivos sergipanos os jovens historiadores possam completar o que aqui esteja faltando” (p.212). Ela corroborou a ampliação do debate historiográfico sobre Sergipe de forma comparativa com as experiências de outras capitanias. Todavia, esse investimento fortalece a construção do silêncio sobre homens e mulheres que, em diferentes temporalidades, vasculharam os arquivos e produziram saberes acerca do passado sergipano, prática que os jovens historiadores conclamados pela autora, espero, não devam replicar.

Sergipe Colonial: uma capitania esquecida, certamente, se tornará uma leitura obrigatória para os pesquisadores acerca do passado sergipano porque foi escrito por uma historiadora consagrada nacionalmente. Todavia, considero que ele apresenta poucas contribuições à compreensão do passado colonial sergipano, além de explicitar inúmeras imprecisões que não se sustentam historiográfica e documentalmente.

O livro permite a retomada do debate sobre alguns temas clássicos da história de Sergipe, mas não avança em relação às contribuições de Beatriz Góis Dantas, Luiz Mott, Maria Thetis Nunes e até mesmo ao velho Felisbelo Freire.

Felisbelo Freire (1858-1916) | Foto: Libânio do Amaral/Wikipédia

A leitura do livro, por noviços e acadêmicos, contribui para reafirmar o peso da autoridade dos discípulos de Clio, nascidos entre o Rio Real e o Rio São Francisco. Com isso, apesar dos esforços louváveis da autora e considerando o fato de a obra ter cumprido parcialmente os objetivos anunciados, o passado colonial sergipano continua a ter como principais contribuições historiográficas os eruditos escritos de Maria Thetis Nunes. Talvez esse seja o grande legado do livro: confirmar o mérito dos escritos de historiadores e historiadoras de Sergipe. Se, em outros tempos, o sergipano só era valorizado ao sair de seu torrão; hoje, reafirmamos a autoestima ao contrapor a nossa historiografia com a pequenez dos olhares exógenos.

Sumário de Sergipe, uma historiografia esquecida

  • Introdução
  • 1. A conquista e o povoamento do território
  • 2. Sergipe setecentista
  • 3. Os capitães-mores do século XVII
  • 4. Um espaço de violência
  • 5. A presença da Inguisição: confidentes e denunciados, familiares e comissários
  • 6. As missões
  • 7. A Coroa e a população indígena
  • 8. Jesuítas e franciscanos e a educação
  • 9. A reclusão feminina
  • 10. A elite social
  • 11. A elite administrativa
  • 12. A escassez de Aulas Régias
  • 13. Vilas e povoações
  • 14. Dados demográficos
  • 15. O clero secular e a criação de frequesias
  • 16. Os párocos e seus fregueses
  • 17. A organização militar
  • 18. Os capitães-mores do século XVIII e início do XIX
  • 19. Magistrados letrados
  • 20. Juízes ordinários
  • 21. O funcionamento da justiça
  • 22. A contribuição de Sergipe para os donativos à Coroa
  • 23. Sergipe no fim do período colonial
  • 24. Ainda a submissão à Bahia
  • 25. Os representantes de Sergipe nas Cortes de Lisboa
  • 26. Sergipe e D. Pedro
  • Concluindo
  • Fontes e bibliografia

Resenhista

Magno Francisco de Jesus Santos é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e é bolsista de Produtividade do CNPq. Publicou, entre outros trabalhos, Ecos da Modernidade: a arquitetura dos grupos escolares sergipanos (2013), No sertão e na capital, salve Aparecida: peregrinações em Sergipe no tempo presente (2015) e O Prefácio dos tempos: a romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão (2024). ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/9046069221784194 ID Orcid: Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2218-7772. E-mail: magno.santos@ufrn.br


Para citar esta resenha

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sergipe colonial: uma Capitania esquecida. São Paulo: Singular, 2019. 281p. Resenha de: SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Imagem pouco atraente. Crítica Historiográfica. Natal, v4, n.18, jul./ago, 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/imagem-pouco-atraente-resenha-de-magno-francisco-de-jesus-santos-ufrn-sobre-o-livro-sergipe-uma-historiografia-esquecida-de-maria-beatriz-nizza-da-silva/>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 18, jul./ago., 2024 | ISSN 2764-2666

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Foco e escopo

Publicamos resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas acadêmicas que tratem da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História. Saiba mais sobre o único periódico de História inteiramente dedicado à Crítica em formato resenha.

Corpo editorial

Somos professore(a)s do ensino superior brasileiro, especializado(a)s em mais de duas dezenas de áreas relacionadas à reflexão, produção e usos da História. Faça parte dessa equipe.

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As resenhas devem expressar avaliações de livros ou de dossiês de revistas acadêmicas autodesignadas como "de História". Conheça as normas e envie-nos o seu texto.

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