Harmonia e esforço objetivado – Resenha de Luciana Requião (IEAR/UFF), sobre o livro “Das Beiradas ao Beiradão – a música dos trabalhadores migrantes no Amazonas”, de Bernardo Mesquita
Resumo: A obra vem ampliar significativamente os estudos sobre o trabalho do músico no Brasil. O autor apresenta com o rigor do método materialista histórico dialético a trajetória de músicos trabalhadores migrantes que viveram entre as beiradas dos rios e a capital do estado do Amazonas e revela as motivações relacionadas à subsistência desses trabalhadores no trânsito entre o ambiente rural e o urbano amazonense e sua subordinação ao processo de produção capitalista.
Palavras-chave: Músicos trabalhadores, Amazonas, Modo de produção capitalista.
Nos últimos anos nota-se um crescente interesse sobre os estudos do trabalho no campo da música, considerando aqueles realizados de forma êmica, ou seja, da perspectiva do sujeito que busca compreender o fenômeno a partir de um olhar “de dentro”. Porém, aqueles realizados sob o prisma do materialismo histórico dialético são raros. “Das Beiradas ao Beiradão – a música dos trabalhadores migrantes no Amazonas”, livro do músico, professor e pesquisador Bernardo Mesquita, é um desses exemplos. Publicado em 2022 pela editora manauara Valer, tem por objetivo traçar a trajetória de três gerações de trabalhadores músicos migrantes no território amazonense, constituída no trânsito entre o espaço rural das beiradas dos rios e o espaço urbano. O livro é prefaciado pelo músico coordenador do canal “Portal do Beiradão” Hadail Mesquita e inicia com uma introdução escrita pelo autor.
Bernardo Mesquita é mestre e doutor em Etnomusicologia, compositor, músico e investigador de temas como: música, luta de classes, história do Carimbó e dos batuques, música afro-caribenha na Amazônia e ensina “Folclore” e Etnomusicologia no curso de música da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). O livro é dividido em 30 seções que não necessariamente precisam ser lidas de forma ordenada. Em cada uma delas o autor trata de um tema (como “As festas dos Santos em Manaus” ou “Luta de classes e direitos autorais dos trabalhadores músicos”), de formações musicais como a Lacapaca ou da biografia de um músico atuante na região. Esta última é sempre precedida pela caricatura do músico, ilustrada por Reginaldo Moreira. O tom crítico sobre as formas capitalistas de existência e de sociabilidade humana às quais os músicos do Amazonas estão submetidos permeia toda a obra.
Na introdução, conforme nos conta o autor, “este trabalho não consiste numa História da Música no Amazonas, trata-se de uma interpretação histórica sobre a experiência musical dos trabalhadores migrantes” (p.11) que irá configurar a moderna música amazonense, formada por um processo de expansão do mercado musical na região a partir dos anos 1960. Em uma breve digressão, nos é apresentado o movimento histórico dos trabalhadores músicos migrantes a partir do estabelecimento da província do Amazonas em 1852, os quais são denominados pelo autor como a “primeira geração das beiradas”, “formada por músicos que nasceram no início do século [XX] e atuaram entre as décadas de 20, 30 e 40 e que iniciaram um trânsito musical entre a capital e os interiores” (p.16). Esse trânsito, também vivenciado pelas gerações posteriores, é mostrado como consequência das etapas de desenvolvimento econômico da região, que passou pelo declínio do sistema extrativista e chegou à modernidade industrial.
Nesse movimento, a música que inicialmente era mais ligada a festividades religiosas e celebrações familiares ou populares foi dando lugar à música comercial. Principalmente entre as décadas de 1950 e 1980, deu-se lugar a autonomização da música popular, quando ela se separa da esfera ritualística e mercantiliza-se. Assim, se em um momento os músicos poderiam se apresentar por “devoção”, aos poucos essa relação foi se “profissionalizando” e a remuneração em dinheiro tornando-se o valor de troca primordial pelo serviço prestado. A adaptação ao mercado não se deu sem conflitos, observando-se muitas vezes a dificuldade em “assimilar uma lógica mais impessoal imposta pelo novo ordenamento fonográfico a que estavam submetidos” (p.141). Contudo, a tendência seria à adequação à lógica mercadológica.
Mesmo com a efervescência da vida musical no Amazonas, quer seja nas bandas militares, nos festejos, nos clubes, nos cinemas e teatros, no rádio ou nas igrejas, Mesquita observa que muitas vezes os músicos não obtinham recursos materiais suficientes para seu sustento, sendo obrigados a deixar a profissão musical ou a cumprir extenuantes jornadas de trabalho em profissões distintas.
Interessante notar que, se em certo momento o montante pago aos músicos que se inseriram no meio fonográfico foi aumentado – como foi o caso de um dos saxofonistas entrevistados por Mesquita –, em outro, quando a tecnologia permitiu o uso de teclados sintetizadores, esse mesmo tipo de músico perdeu seu posto de trabalho, sendo substituído pela máquina. Além disso, “a partir de 1975, já sob o efeito da Zona Franca de Manaus, os clubes começaram a não contratar com frequência as bandas (…), os equipamentos de som e toca-discos começaram a atender uma boa parte da demanda musical da cidade” (p.193).
Questão pouco discutida na literatura sobre o trabalho musical no Brasil – o etarismo – aparece de forma sensível no texto de Bernardo Mesquita: “Toinho viveu a euforia do crescimento e o desalento do declínio deste ciclo produtivo da indústria capitalista da música. Sem reconhecimento merecido, Toinho tornou-se um músico invisível” (p.169). A precariedade das condições de trabalho dos músicos é sentida não só pelo esquecimento do artista, mas pela falta de estrutura desta profissão que se ressente de uma organização trabalhista mais efetiva e acolhedora, apesar de algumas tentativas, como na ocasião da criação da Associação Profissional dos Músicos de Manaus, em 1957 ou, em 1983, com a Associação dos Músicos do Amazonas, “que não teve vida longa” (p.324).
Por fim, o autor analisa a sonoridade musical produzida nos anos 1980, atestando uma variada gama de gêneros musicais que influenciaram e transformaram a música amazonense, com destaque para o intercâmbio entre o Pará e o Amazonas. Determinante nesse processo de fluxo migratório, que requeria do músico extrema capacidade de adaptação, foi o rádio e a influência das músicas norte americanas.
Sequência – Hadail Mesquita e Bloco Raíz (2018) | Imagem: Portal do Beiradão
Dessas influências nasce o beiradão, não mais aquele relacionado à beira dos rios, mas sim uma espécie de gênero icônico da música amazonense. O autor busca desconstruir essa ideia, reforçando que é necessário compreender a historicidade desse processo, a base material e as contradições da luta de classes, para que nos seja revelada a essência das práticas musicais dos trabalhadores músicos migrantes do Amazonas.
Mesmo com toda a riqueza da análise empreendida, o autor deixa uma lacuna no que se refere à participação das mulheres. Apenas na página 90 podemos ver uma fotografia da banda feminina do Colégio Benjamim Constante de 1959. Não obstante, a obra contribui de forma significativa aos estudos sobre o trabalho no campo da música no Brasil, não somente pela abordagem que busca uma compreensão do fenômeno musical para além das suas evidências mais imediatas, mas também por nos apresentar a vida musical da região Norte, ainda tão desconhecida para aqueles e aquelas que estão bem mais abaixo da linha do Equador.
Assim, a obra cumpre o objetivo de nos apresentar a trajetória de trabalhadores músicos migrantes no território amazonense ao mesmo tempo em que mostra a transformação política-econômica da região, que passa de uma ruralidade pré-industrial à urbanização industrial dependente. O autor demonstra o quanto o processo de circulação dos músicos, constituído no trânsito entre o espaço rural das beiradas dos rios e o espaço urbano, se constitui em um movimento dialético a partir da expansão capitalista na região. Por fim, percebemos que a riqueza desta obra encontra-se na análise materialista de Mesquita, que busca desconstruir estereótipos idealistas sobre a produção musical no estado do Amazonas destacando repertórios, formações instrumentais, espaços urbanos e rurais onde se dá a prática musical, relações de trabalho, a influência do desenvolvimento tecnológico na produção musical, remuneração, fomento, produção fonográfica, formação musical, dentre outros determinantes para a constituição da chamada “música de beiradão”.
Sumário de “Das Beiradas ao Beiradão – a música dos trabalhadores migrantes no Amazonas”
- Prefácio
- Introdução
- Da terra firme à várzea: o movimento dos trabalhadores músicos migrantes
- Festas em movimento
- As festas de santos em Manaus
- Eliberto Barroncas
- Gambá
- A música nas festas de devoção: o caso do Careiro da Várzea
- As bandas de música do Amazonas
- Chico Caju
- Lacapaca
- Jazz Barreiros: os músicos barbeiros no Amazonas
- A presença da valsa
- O jazz no Amazonas e a primeira geração no trânsito musical
- Economia da música nas beiradas: mercado musical nos municípios e comunidades do Amazonas
- Toinho Bindá
- O rádio, o cinema, o rock e os festivais de dublagem: a expansão da indústria capitalista da música em Manaus
- Roberto Bopp
- Um carrapicho anti-imperialista
- O nativismo musical na Amazônia: Amazonas e Pará
- A indústria fonográfica e a reprodução capitalista dependente
- Dj e Mc Fino
- Pinduca e a racionalização capitalista da música
- Teixeira de Manaus
- Oseas da Guitarra
- Segmentação-regionalização do popular romântico na crise da indústria dos anos 80
- Nunes Filho
- O popular – romântico
- Marinho Saúba
- Chiquinho David
- Luta de classes e direitos autorais dos trabalhadores músicos
- A formação do beiradão
- Considerações finais
Para ampliar a sua revisão da literatura
- Consulte resenhas de livros sobre
- Antropologia da Música
- História da Música
- História da Música Latina
- Historiografia da Música
- Instrumentos Musicais
- Memória da Música
- Música | Música do Caribe | Música e Modernismo | Música Popular Brasileira | MPB | Música tradicional | Musicalidade | Músicas | Músico
- Consulte dossiês de artigos sobre
- Música | Música Alternativa | Música Folclórica | Música Popular
- Patrimônio Musical
- Rede de Circulação de Música Popular | Rede de Produção de Música Popular
Resenhista
Luciana Requião – Doutora em Educação pela UFF e Mestre em Música pela UNIRIO, professora do Instituto de Educação de Angra dos Reis (IEAR/UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO. Publicou, dentre outros, “Eis aí a Lapa…: processos e relações de trabalho do músico nas casas de shows da Lapa” (São Paulo: Annablume, 2010) e “Festa acabada, músicos a pé!”: um estudo crítico sobre as relações de trabalho de músicos atuantes no estado do Rio de Janeiro” (2016). ID: LATTES: http://lattes.cnpq.br/2687869588131721 ID ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0351-0578; E-mail: lucianarequiao@id.uff.br; Instagram: lucianareq.
Para citar esta resenha
MESQUITA, Bernardo. Das Beiradas ao Beiradão: a música dos trabalhadores migrantes no Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2022. 384p. Resenha de: REQUIÃO, Luciana. A música como trabalho. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.11, maio/jun., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/a-musica-como-trabalho-resenha-de-luciana-requiao-iear-uff-sobre-o-livro-das-beiradas-ao-beiradao-a-musica-dos-trabalhadores-migrantes-no-amazonas-de-bernardo/>.
© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).