Canto do rebelde esquecido — Resenha de Danilo dos Santos Rabelo (PPGD-UNB) sobre o livro “Negro sou: a questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949–1973)” de Guerreiro Ramos, organizado por Muryatan S. Barbosa

Alberto Guerreiro Ramos | Imagem: Acervo da família Ramos/DW

Resumo: Negro sou: a questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949–1973), organizado por Muryatan S. Barbosa, é uma compilação de textos de Alberto Guerreiro Ramos que explora a questão étnico-racial e o Brasil entre 1949 e 1973. A obra ressalta a contribuição de Guerreiro Ramos nos debates raciais e sociais. Apesar de algumas inconsistências na seleção e apresentação dos textos, a coletânea oferece uma visão de suas ideias e contribuições ao debate sobre a opressão racial e a formação nacional/colonial no Brasil.

Palavras-chave: Guerreiro Ramos, Negro, Questão Étnico-Racial.


Alberto Guerreiro Ramos (1915–1982), nascido em Santo Amaro da Purificação, Bahia, foi um intelectual negro com variada atuação profissional: foi sociólogo, professor, servidor público e Deputado Federal. Entre as décadas de quarenta e sessenta, participou ativamente dos debates acadêmicos e políticos sobre as propostas que pensaram a formação social/racial brasileira e o desenvolvimento nacional através de uma interpretação teórica autêntica e engajada. Guerreiro Ramos conjecturou um projeto de Brasil. Muryatan Barbosa, o organizador do livro, é historiador e professor da Universidade da Universidade Federal do ABC e autor de Guerreiro Ramos e o personalismo negro (2015). Negro sou: a questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949–1973) é composto por vinte e nove publicações de Guerreiro Ramos, produzidas entre 1949 e 1973, período que abarca desde o início de sua inserção pública na temática racial até o seu exílio, durante a ditadura militar, no sul dos Estados Unidos. O conjunto reúne artigos, ensaios, discursos recolhidos nos jornais e em algumas obras dispersas. Nesse momento de crescimento das publicações editorais sobre o debate racial com inserção gradativa na academia, a republicação da produção de Guerreiro Ramos é imprescindível e foi comemorada por todos aqueles que há muito a aguardavam.

A coletânea é precedida por uma apresentação escrita por Muryatan Barbosa. Trata da biografia de Guerreiro Ramos, resumo de suas principais ideias, da recepção das ideias naquele cenário, bem como da interpretação do organizador sobre elas. Como a presente resenha crítica é sobre a obra Negro Sou que, embora composta por textos guerrerianos, vai ser construída por escolhas textuais e por recortes temporais do organizador, a apresentação foi tomada como referencial para um diálogo com diversos textos da coletânea. Assim, quatro principais tópicos são levantados e debatidos nessa resenha: 1. a composição dos textos da obra e a sua ordem de apresentação; 2. a construção de Guerreiro Ramos como um intelectual negro e a sua aproximação com o debate racial; 3. um exame entre a práxis dialética de Guerreiro Ramos e a tese do personalismo negro proposta pelo organizador; 4. a disputa em torno da compreensão político-econômica de Guerreiro Ramos.

A seleção dos textos não resta muito bem explicada. Não se sabe se os escritos sobre a temática racial foram excluídos devido a limites editoriais ou se os vinte e nove textos são o resultado de tudo aquilo que foi localizado dos escritos de Guerreiro Ramos sobre o tema no período. Ademais, após o último texto (“A fé artística de Abdias Nascimento”), a obra se encerra. Não possui uma conclusão ou mesmo um posfácio. Como Guerreiro Ramos foi um intelectual negro que há quase trinta anos não tem as suas principais obras republicadas, provavelmente, grande parte dos leitores dessa coletânea terão um primeiro contato com o autor. Esse maior cuidado e detalhamento teria o condão de possibilitar uma maior compreensão do leitor sobre as categorias guerrerianas, os textos, os contextos, os clássicos embates entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes (Bariani, 2006; Souza, 2009, p.101), Gilberto Freyre (Carvalho, 2008), Arthur Ramos (Ramos, 1995, p.187) e Álvaro Vieira Pinto (Ramos, 2016, p.263). Também não se encontra nenhuma explicação sobre as razões para apresentar os textos em sua ordem cronológica. Essa disposição não pode ser tomada como uma questão trivial, afinal são vinte e nove textos, com temas e modalidades textuais que se diferem uma das outras, em termos temáticos e temporais.

Comentada a composição e a disposição dos textos da obra, passa-se ao debate em torno do segundo tópico. O organizador destaca que, “centrado na questão étnico-racial, o livro pode dar a impressão errônea de que nos anos 1950 e 1960 Guerreiro Ramos fosse reconhecido como um intelectual negro e/ou militante negro” (p.13–14). Nesse momento, seria importante que algumas provas fossem apresentadas para robustecer a afirmação do compendiador. Na sequência, apenas traz um inventário que demonstra ter Guerreiro Ramos atuado e escrito também em outras temáticas e campos. Esse fato não inviabilizaria o seu reconhecimento enquanto intelectual negro. Seria essencializar o que é um “intelectual negro” e aquilo que ele poderia estudar e escrever, isoladamente, para adquirir tal adjetivação. Vale lembrar que Guerreiro Ramos foi cassado e exilado pela Ditadura Militar de 1964 sob a justificativa de ser “mulato, metido a sociólogo” (p.18).

Essa mesma inconsistência é verificada quando apresenta o atravessamento do debate racial em Guerreiro Ramos. O organizador aponta que Guerreiro teve medo de ser promotor do “racismo às avessas” (p.21). Essa proposição, pautada em critérios morais/subjetivos escorregadios, parece contrastar com o pioneirismo da interpretação guerreriana sobre o branco brasileiro (p.225–252), com a construção do negro como um lugar de onde se poderia interpretar o Brasil (Santos, 1995, p.28), com o grito sem rodeios de Guerreiro Ramos dado em uma entrevista e empregado no mesmo texto introdutório: “o Brasil é o país mais racista do mundo” (p.19). Com medo ou sem medo ele vai propor uma criativa interpretação para a destruição do discurso do racismo às avessas, visto sê-lo inautêntico, falso, alienígena dentro da formação histórica brasileira (p.251).

O terceiro ponto levantado para se debater na obra é a tese do “personalismo negro de Guerreiro Ramos” (Barbosa, 2015, p.208). Para o organizador, conforme alguns textos de apoio, o sociólogo baiano possuiria uma visão paternalista, voltada para indivíduos negros: “pretendia ser uma práxis orientada para as pessoas, e não para outros âmbitos da vida social: estruturas, sociedade, economia, cultura, nação, grupos sociais coletividades” (p.22).

Essa categorização válida emerge em alguns momentos dos textos guerrerianos, sobretudo nos cinco primeiros de Negro sou. No entanto, esse enquadramento parece inconsistente ao simplificar o conjunto da obra desse intelectual negro, os seus diversos escritos, as suas fases, a sua maturação teórica. Um dos textos apontados pelo compendiador para reforçar a sua tese é o escrito “O problema do negro na sociologia brasileira”, de 1954. Contudo, é nesse mesmo texto que Guerreiro Ramos sacramenta que os “problemas antropológicos” do índio e do negro são eminentemente políticos e econômicos (p.141). Ainda nele, tece uma crítica àquela antropologia pautada em uma teoria comportamental, dispersiva, que não se articula ao processo de desenvolvimento econômico” (p.141).

O próprio organizador afirma que, na década de cinquenta, para Guerreiro, “algo só poderia ser superado com uma transformação estrutural” (p.27) e não apenas por libertações individuais (p.27). Em síntese, aqui aponta-se a inconsistência sobre a categoria do “personalismo negro de Guerreiro” porque ela separa (ou tenta separar) o movimento dialético (entre o indivíduo e a estrutura) do pensamento guerreriano. Ao fazer esse processo de encaixe deste em uma categoria repartida, esse pensamento passa a soar como dirigido a uma práxis incompleta e, em alguns momentos, até mesmo passiva.

Esse mesmo encaixotamento do pensamento guerreriano se percebe quando, no quarto tópico aqui selecionado, descreve que o Guerreiro Ramos defendia como a responsável pela solução dos males estruturais “a construção de um capitalismo verdadeiramente nacional” (p.27). É verdade que em um texto preambular os limites são estritos e isso pode ter justificado a necessidade de apresentar algumas definições mais objetivas, caricaturais.

Em 1962, Guerreiro Ramos redigiu os princípios do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido em que se tornaria Deputado Federal. Um princípio central vai ser a defesa de um socialismo gerado pelas condições particulares brasileiras (Ramos, 2016, p.294). A tese de uma união nacional atravessada pela luta de classes aparece tanto em Sociologia de la mortalidad infantil (1955) como em Mito e Verdade da revolução brasileira (1963).

Nestes termos, o professor Luiz Eduardo Motta (2010) vai concluir que Guerreiro Ramos “defendia um socialismo de inspiração terceiro-mundista” (Motta, 2010, p.93).

Regionalização do espaço mundial durante a Guerra Fria (Terceiro Mundo em verde) | Imagem: Nova Escola

Esses contrapontos não buscam tirar Guerreiro Ramos de um enquadramento para embuti-lo em outro. Com base no texto “O pluralismo dialético” (p.253) e na sua afirmação de “viver dialeticamente” (Ramos, 1995, p.258), sempre com a práxis precedendo a teoria (Ramos, 1995, p.260), esse panorama crítico buscou apontar os diversos movimentos, ora complementares, ora conflitivos, da produção teórica guerreriana. Almejou apresentar a complexidade, ainda que contraditória e pouco decifrável dos escritos guerrerianos presentes no livro.

Em 1937, aos 22 anos de idade, Guerreiro Ramos lançou o seu primeiro livro: O drama de ser dois. Esse livro de poesias se inicia com um verso que atravessou a sua trajetória: “o meu canto é o canto da rebeldia” (Ramos, 1937, p.07). A obra Negro sou, organizada por Muryatan Barbosa, resgata Guerreiro Ramos, insere-o no debate racial em efervescência e permite que novas análises, intepretações, disputas e diálogos sobre as contribuições e contradições de sua produção possam surgir. Permite que o canto rebelde dele volte a ser ouvido. Assim, apesar das críticas pontuais a algumas categorizações presentes no texto introdutório à obra, a coletânea cumpriu o objetivo de retratar a inserção de Guerreiro Ramos sobre o debate racial, de tratar de estratégias de enfrentamento, algumas delas vinculadas à situação colonial. A obra, portanto, deve ser lida por todos aqueles que queiram se aproximar do pensamento guerreriano sobre a opressão racial e compreender como ele a insere no debate sobre a formação nacional/colonial.

Referências

BARBOSA, Muryatan Santana.  Guerreiro Ramos e o personalismo negro. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.

BARIANI, Edison. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes x Guerreiro Ramos. Cronos, v. 7, n. 1, p.151-160, jan./jun., 2006. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/3194. Acesso em: 20 de jun., 2023.

CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: a supremacia racial e o branco antiracista. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Manizales, v. 08, n. 01, p.607-630, jan./jun., 2010. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/Colombia/alianza-cinde-umz/20131216065611/art.LourencoCardoso.pdf. Acesso em: 19 de jun., 2023.

CARVALHO, Layla Daniele P.de. O equilíbrio de antagonismos e o niger sum: relações raciais em Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

MOTTA, Luiz Eduardo. A política do guerreiro: nacionalismo, revolução e socialismo no debate brasileiro dos anos 1960. Organizações e Sociedade, v. 17, n. 52, mar., 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/osoc/a/LkSnBvPQ7XGX4mc6xbnQpSD/abstract/?lang=pt. Acesso em: 19 de jun., 2023.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade sobre a revolução brasileira. Florianópolis: Insular, 2016.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Sociologia de la mortalidad infantil. México: Instituto de Investigaciones Sociales, 1955.

RAMOS, Alberto Guerreiro. O drama de ser dois. Salvador: Sn., 1937.

SANTOS, Joel Rufino dos. O negro como lugar. In: RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995, p.19-29.

SOUZA, Márcio Ferreira de. Guerreiro Ramos e o desenvolvimento nacional: a construção de um projeto para a nação. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009.

Sumário de Negro sou: a questão étnica-racial e o Brasil – ensaios, artigos e outros textos (1949-1973)

  • Nota da edição
  • Apresentação | Muryatan S. Barbosa
  • O negro no Brasil e um exame de consciência (1949)
  • Apresentação da grupoterapia (1950)
  • Teoria e prática do sociodrama (1950)
  • Apresentação da negritude (1950)
  • A Unesco e as relações de raça (1950)
  • Notícia sobre o I Congresso do Negro Brasileiro (1950)
  • Narcisismo branco do negro brasileiro (1950)
  • Senhores e escravos no Brasil (1950)
  • Os estudos sobre o negro brasileiro (1950)
  • Um herói da negritude (1952)
  • A Unesco e o negro carioca (1953)
  • Sociologia clínica de um baiano “claro” (1953)
  • O negro, a Unesco e o carreirismo (1953)
  • Uma redefinição do problema do negro (1953)
  • O problema do negro na sociologia brasileira (1954)
  • O negro desde dentro (1954)
  • A descida aos infernos (1954)
  • Semana do Negro de 1955 (1955)
  • Nosso Senhor Jesus Cristo Trigueiro (1955)
  • Política de relações de raça no Brasil (1955)
  • Patologia social do “branco” brasileiro (1955)
  • O pluralismo dialético (1955)
  • Nacionalismo e xenofobia (1956)
  • Gilberto Freyre ou a obsolência (1956)
  • O problema da cultura nacional (1954)
  • A consciência crítica da realidade nacional (1958)
  • O mundo tribal de Abdias Nascimento (1971)
  • A fé artística de Abdias Nascimento (1973)
  • Notas
  • Fontes
  • Índice onomástico

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Resenhista

Danilo dos Santos Rabelo é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe (PPGD-UFS), graduado em Direito pela mesma Universidade. É Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (PPGD/UNB), na linha “Criminologia, Estudos Étnico-raciais e de Gênero” e bolsista CAPES. Integra o “Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Sergipe” (NEABI-UFS) e o “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Cultura Jurídica e Atlântico Negro – Maré” da UnB. Entre outros trabalhos, escreveu: Entre o contorno legal da escravidão e o trabalhismo: a manutenção do racismo através de uma autonomia dependente, A Importância das narrativas na construção do ensino jurídico antirracista” (2021), Racismo e cidadania: o processo de vulnerabilização institucional do negro na modernidade (2022), os dois últimos em coautoria com Karyna Batista Sposato. ID: LATTES: http://lattes.cnpq.br/4523129123146854; ID: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6973-0576; Instagram: @dansrabelo; E-mail: danilo13rabelo@gmail.com.


Para citar esta resenha

RAMOS, Alberto Guerreiro. Negro sou: a questão étnica-racial e o Brasil – ensaios, artigos e outros textos (1949-1973). Organização de Muryatan S. Barbosa. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. 323p. Resenha de: Danilo dos Santos Rabelo. Canto do rebelde esquecido. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/canto-do-rebelde-esquecido-resenha-de-danilo-dos-santos-rabelo-ppgd-unb-sobre-o-livro-negro-sou-a-questao-etnico-racial-e-o-brasil-ensaios-artigos-e-outros-textos-1949/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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Canto do rebelde esquecido — Resenha de Danilo dos Santos Rabelo (PPGD-UNB) sobre o livro “Negro sou: a questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949–1973)” de Guerreiro Ramos, organizado por Muryatan S. Barbosa

Alberto Guerreiro Ramos | Imagem: Acervo da família Ramos/DW

Resumo: Negro sou: a questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949–1973), organizado por Muryatan S. Barbosa, é uma compilação de textos de Alberto Guerreiro Ramos que explora a questão étnico-racial e o Brasil entre 1949 e 1973. A obra ressalta a contribuição de Guerreiro Ramos nos debates raciais e sociais. Apesar de algumas inconsistências na seleção e apresentação dos textos, a coletânea oferece uma visão de suas ideias e contribuições ao debate sobre a opressão racial e a formação nacional/colonial no Brasil.

Palavras-chave: Guerreiro Ramos, Negro, Questão Étnico-Racial.


Alberto Guerreiro Ramos (1915–1982), nascido em Santo Amaro da Purificação, Bahia, foi um intelectual negro com variada atuação profissional: foi sociólogo, professor, servidor público e Deputado Federal. Entre as décadas de quarenta e sessenta, participou ativamente dos debates acadêmicos e políticos sobre as propostas que pensaram a formação social/racial brasileira e o desenvolvimento nacional através de uma interpretação teórica autêntica e engajada. Guerreiro Ramos conjecturou um projeto de Brasil. Muryatan Barbosa, o organizador do livro, é historiador e professor da Universidade da Universidade Federal do ABC e autor de Guerreiro Ramos e o personalismo negro (2015). Negro sou: a questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949–1973) é composto por vinte e nove publicações de Guerreiro Ramos, produzidas entre 1949 e 1973, período que abarca desde o início de sua inserção pública na temática racial até o seu exílio, durante a ditadura militar, no sul dos Estados Unidos. O conjunto reúne artigos, ensaios, discursos recolhidos nos jornais e em algumas obras dispersas. Nesse momento de crescimento das publicações editorais sobre o debate racial com inserção gradativa na academia, a republicação da produção de Guerreiro Ramos é imprescindível e foi comemorada por todos aqueles que há muito a aguardavam.

A coletânea é precedida por uma apresentação escrita por Muryatan Barbosa. Trata da biografia de Guerreiro Ramos, resumo de suas principais ideias, da recepção das ideias naquele cenário, bem como da interpretação do organizador sobre elas. Como a presente resenha crítica é sobre a obra Negro Sou que, embora composta por textos guerrerianos, vai ser construída por escolhas textuais e por recortes temporais do organizador, a apresentação foi tomada como referencial para um diálogo com diversos textos da coletânea. Assim, quatro principais tópicos são levantados e debatidos nessa resenha: 1. a composição dos textos da obra e a sua ordem de apresentação; 2. a construção de Guerreiro Ramos como um intelectual negro e a sua aproximação com o debate racial; 3. um exame entre a práxis dialética de Guerreiro Ramos e a tese do personalismo negro proposta pelo organizador; 4. a disputa em torno da compreensão político-econômica de Guerreiro Ramos.

A seleção dos textos não resta muito bem explicada. Não se sabe se os escritos sobre a temática racial foram excluídos devido a limites editoriais ou se os vinte e nove textos são o resultado de tudo aquilo que foi localizado dos escritos de Guerreiro Ramos sobre o tema no período. Ademais, após o último texto (“A fé artística de Abdias Nascimento”), a obra se encerra. Não possui uma conclusão ou mesmo um posfácio. Como Guerreiro Ramos foi um intelectual negro que há quase trinta anos não tem as suas principais obras republicadas, provavelmente, grande parte dos leitores dessa coletânea terão um primeiro contato com o autor. Esse maior cuidado e detalhamento teria o condão de possibilitar uma maior compreensão do leitor sobre as categorias guerrerianas, os textos, os contextos, os clássicos embates entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes (Bariani, 2006; Souza, 2009, p.101), Gilberto Freyre (Carvalho, 2008), Arthur Ramos (Ramos, 1995, p.187) e Álvaro Vieira Pinto (Ramos, 2016, p.263). Também não se encontra nenhuma explicação sobre as razões para apresentar os textos em sua ordem cronológica. Essa disposição não pode ser tomada como uma questão trivial, afinal são vinte e nove textos, com temas e modalidades textuais que se diferem uma das outras, em termos temáticos e temporais.

Comentada a composição e a disposição dos textos da obra, passa-se ao debate em torno do segundo tópico. O organizador destaca que, “centrado na questão étnico-racial, o livro pode dar a impressão errônea de que nos anos 1950 e 1960 Guerreiro Ramos fosse reconhecido como um intelectual negro e/ou militante negro” (p.13–14). Nesse momento, seria importante que algumas provas fossem apresentadas para robustecer a afirmação do compendiador. Na sequência, apenas traz um inventário que demonstra ter Guerreiro Ramos atuado e escrito também em outras temáticas e campos. Esse fato não inviabilizaria o seu reconhecimento enquanto intelectual negro. Seria essencializar o que é um “intelectual negro” e aquilo que ele poderia estudar e escrever, isoladamente, para adquirir tal adjetivação. Vale lembrar que Guerreiro Ramos foi cassado e exilado pela Ditadura Militar de 1964 sob a justificativa de ser “mulato, metido a sociólogo” (p.18).

Essa mesma inconsistência é verificada quando apresenta o atravessamento do debate racial em Guerreiro Ramos. O organizador aponta que Guerreiro teve medo de ser promotor do “racismo às avessas” (p.21). Essa proposição, pautada em critérios morais/subjetivos escorregadios, parece contrastar com o pioneirismo da interpretação guerreriana sobre o branco brasileiro (p.225–252), com a construção do negro como um lugar de onde se poderia interpretar o Brasil (Santos, 1995, p.28), com o grito sem rodeios de Guerreiro Ramos dado em uma entrevista e empregado no mesmo texto introdutório: “o Brasil é o país mais racista do mundo” (p.19). Com medo ou sem medo ele vai propor uma criativa interpretação para a destruição do discurso do racismo às avessas, visto sê-lo inautêntico, falso, alienígena dentro da formação histórica brasileira (p.251).

O terceiro ponto levantado para se debater na obra é a tese do “personalismo negro de Guerreiro Ramos” (Barbosa, 2015, p.208). Para o organizador, conforme alguns textos de apoio, o sociólogo baiano possuiria uma visão paternalista, voltada para indivíduos negros: “pretendia ser uma práxis orientada para as pessoas, e não para outros âmbitos da vida social: estruturas, sociedade, economia, cultura, nação, grupos sociais coletividades” (p.22).

Essa categorização válida emerge em alguns momentos dos textos guerrerianos, sobretudo nos cinco primeiros de Negro sou. No entanto, esse enquadramento parece inconsistente ao simplificar o conjunto da obra desse intelectual negro, os seus diversos escritos, as suas fases, a sua maturação teórica. Um dos textos apontados pelo compendiador para reforçar a sua tese é o escrito “O problema do negro na sociologia brasileira”, de 1954. Contudo, é nesse mesmo texto que Guerreiro Ramos sacramenta que os “problemas antropológicos” do índio e do negro são eminentemente políticos e econômicos (p.141). Ainda nele, tece uma crítica àquela antropologia pautada em uma teoria comportamental, dispersiva, que não se articula ao processo de desenvolvimento econômico” (p.141).

O próprio organizador afirma que, na década de cinquenta, para Guerreiro, “algo só poderia ser superado com uma transformação estrutural” (p.27) e não apenas por libertações individuais (p.27). Em síntese, aqui aponta-se a inconsistência sobre a categoria do “personalismo negro de Guerreiro” porque ela separa (ou tenta separar) o movimento dialético (entre o indivíduo e a estrutura) do pensamento guerreriano. Ao fazer esse processo de encaixe deste em uma categoria repartida, esse pensamento passa a soar como dirigido a uma práxis incompleta e, em alguns momentos, até mesmo passiva.

Esse mesmo encaixotamento do pensamento guerreriano se percebe quando, no quarto tópico aqui selecionado, descreve que o Guerreiro Ramos defendia como a responsável pela solução dos males estruturais “a construção de um capitalismo verdadeiramente nacional” (p.27). É verdade que em um texto preambular os limites são estritos e isso pode ter justificado a necessidade de apresentar algumas definições mais objetivas, caricaturais.

Em 1962, Guerreiro Ramos redigiu os princípios do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido em que se tornaria Deputado Federal. Um princípio central vai ser a defesa de um socialismo gerado pelas condições particulares brasileiras (Ramos, 2016, p.294). A tese de uma união nacional atravessada pela luta de classes aparece tanto em Sociologia de la mortalidad infantil (1955) como em Mito e Verdade da revolução brasileira (1963).

Nestes termos, o professor Luiz Eduardo Motta (2010) vai concluir que Guerreiro Ramos “defendia um socialismo de inspiração terceiro-mundista” (Motta, 2010, p.93).

Regionalização do espaço mundial durante a Guerra Fria (Terceiro Mundo em verde) | Imagem: Nova Escola

Esses contrapontos não buscam tirar Guerreiro Ramos de um enquadramento para embuti-lo em outro. Com base no texto “O pluralismo dialético” (p.253) e na sua afirmação de “viver dialeticamente” (Ramos, 1995, p.258), sempre com a práxis precedendo a teoria (Ramos, 1995, p.260), esse panorama crítico buscou apontar os diversos movimentos, ora complementares, ora conflitivos, da produção teórica guerreriana. Almejou apresentar a complexidade, ainda que contraditória e pouco decifrável dos escritos guerrerianos presentes no livro.

Em 1937, aos 22 anos de idade, Guerreiro Ramos lançou o seu primeiro livro: O drama de ser dois. Esse livro de poesias se inicia com um verso que atravessou a sua trajetória: “o meu canto é o canto da rebeldia” (Ramos, 1937, p.07). A obra Negro sou, organizada por Muryatan Barbosa, resgata Guerreiro Ramos, insere-o no debate racial em efervescência e permite que novas análises, intepretações, disputas e diálogos sobre as contribuições e contradições de sua produção possam surgir. Permite que o canto rebelde dele volte a ser ouvido. Assim, apesar das críticas pontuais a algumas categorizações presentes no texto introdutório à obra, a coletânea cumpriu o objetivo de retratar a inserção de Guerreiro Ramos sobre o debate racial, de tratar de estratégias de enfrentamento, algumas delas vinculadas à situação colonial. A obra, portanto, deve ser lida por todos aqueles que queiram se aproximar do pensamento guerreriano sobre a opressão racial e compreender como ele a insere no debate sobre a formação nacional/colonial.

Referências

BARBOSA, Muryatan Santana.  Guerreiro Ramos e o personalismo negro. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.

BARIANI, Edison. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes x Guerreiro Ramos. Cronos, v. 7, n. 1, p.151-160, jan./jun., 2006. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/3194. Acesso em: 20 de jun., 2023.

CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: a supremacia racial e o branco antiracista. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Manizales, v. 08, n. 01, p.607-630, jan./jun., 2010. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/Colombia/alianza-cinde-umz/20131216065611/art.LourencoCardoso.pdf. Acesso em: 19 de jun., 2023.

CARVALHO, Layla Daniele P.de. O equilíbrio de antagonismos e o niger sum: relações raciais em Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

MOTTA, Luiz Eduardo. A política do guerreiro: nacionalismo, revolução e socialismo no debate brasileiro dos anos 1960. Organizações e Sociedade, v. 17, n. 52, mar., 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/osoc/a/LkSnBvPQ7XGX4mc6xbnQpSD/abstract/?lang=pt. Acesso em: 19 de jun., 2023.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade sobre a revolução brasileira. Florianópolis: Insular, 2016.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Sociologia de la mortalidad infantil. México: Instituto de Investigaciones Sociales, 1955.

RAMOS, Alberto Guerreiro. O drama de ser dois. Salvador: Sn., 1937.

SANTOS, Joel Rufino dos. O negro como lugar. In: RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995, p.19-29.

SOUZA, Márcio Ferreira de. Guerreiro Ramos e o desenvolvimento nacional: a construção de um projeto para a nação. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009.

Sumário de Negro sou: a questão étnica-racial e o Brasil – ensaios, artigos e outros textos (1949-1973)

  • Nota da edição
  • Apresentação | Muryatan S. Barbosa
  • O negro no Brasil e um exame de consciência (1949)
  • Apresentação da grupoterapia (1950)
  • Teoria e prática do sociodrama (1950)
  • Apresentação da negritude (1950)
  • A Unesco e as relações de raça (1950)
  • Notícia sobre o I Congresso do Negro Brasileiro (1950)
  • Narcisismo branco do negro brasileiro (1950)
  • Senhores e escravos no Brasil (1950)
  • Os estudos sobre o negro brasileiro (1950)
  • Um herói da negritude (1952)
  • A Unesco e o negro carioca (1953)
  • Sociologia clínica de um baiano “claro” (1953)
  • O negro, a Unesco e o carreirismo (1953)
  • Uma redefinição do problema do negro (1953)
  • O problema do negro na sociologia brasileira (1954)
  • O negro desde dentro (1954)
  • A descida aos infernos (1954)
  • Semana do Negro de 1955 (1955)
  • Nosso Senhor Jesus Cristo Trigueiro (1955)
  • Política de relações de raça no Brasil (1955)
  • Patologia social do “branco” brasileiro (1955)
  • O pluralismo dialético (1955)
  • Nacionalismo e xenofobia (1956)
  • Gilberto Freyre ou a obsolência (1956)
  • O problema da cultura nacional (1954)
  • A consciência crítica da realidade nacional (1958)
  • O mundo tribal de Abdias Nascimento (1971)
  • A fé artística de Abdias Nascimento (1973)
  • Notas
  • Fontes
  • Índice onomástico

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Danilo dos Santos Rabelo é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe (PPGD-UFS), graduado em Direito pela mesma Universidade. É Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (PPGD/UNB), na linha “Criminologia, Estudos Étnico-raciais e de Gênero” e bolsista CAPES. Integra o “Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Sergipe” (NEABI-UFS) e o “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Cultura Jurídica e Atlântico Negro – Maré” da UnB. Entre outros trabalhos, escreveu: Entre o contorno legal da escravidão e o trabalhismo: a manutenção do racismo através de uma autonomia dependente, A Importância das narrativas na construção do ensino jurídico antirracista” (2021), Racismo e cidadania: o processo de vulnerabilização institucional do negro na modernidade (2022), os dois últimos em coautoria com Karyna Batista Sposato. ID: LATTES: http://lattes.cnpq.br/4523129123146854; ID: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6973-0576; Instagram: @dansrabelo; E-mail: danilo13rabelo@gmail.com.


Para citar esta resenha

RAMOS, Alberto Guerreiro. Negro sou: a questão étnica-racial e o Brasil – ensaios, artigos e outros textos (1949-1973). Organização de Muryatan S. Barbosa. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. 323p. Resenha de: Danilo dos Santos Rabelo. Canto do rebelde esquecido. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/canto-do-rebelde-esquecido-resenha-de-danilo-dos-santos-rabelo-ppgd-unb-sobre-o-livro-negro-sou-a-questao-etnico-racial-e-o-brasil-ensaios-artigos-e-outros-textos-1949/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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