Crua memória da periferia – Resenha de Juliana Silva Santana (UECE) sobre o livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus
Resumo: Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, expõe a realidade de uma favela em São Paulo nas décadas de 1950 e 1960. O diário ilustra a luta diária de Carolina como mãe solo e catadora de papel, abordando questões de pobreza, racismo e desigualdade social. A obra, ainda relevante em 2024, reflete sobre opressões interseccionais e a marginalização das comunidades negras e faveladas, cumprindo um papel social e literário significativo.
Palavras-chave: Favela, Mulher Negra; Desigualdade Social.
A obra “Quarto de despejo: diário de uma favelada” é um texto memorialista que expõe as realidades vivenciadas por Carolina Maria de Jesus, seus três filhos e vizinhos numa favela no estado de São Paulo, nas proximidades do Rio Tietê, em meados das décadas de 1950 e 1960.
A autora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) passou pouco tempo na escola, o suficiente para aprender a ler e a escrever o mundo e as palavras (Freire, 2015). Nascida em Sacramento-MG, experimentou o cotidiano de lavradores, empregadas domésticas e de escritores célebres (Santos, 2015), produzindo quatro obras: Quarto de despejo (1960), Casa de alvenaria (1961), Diário de Bitita (1986) e Meu estranho diário (1996). O primeiro é o mais conhecido e possui leitores em 13 línguas. Em Quarto de despejo, a autora narra a rotina de uma catadora de papel, dentro e fora da favela Canindé, às margens do rio Tietê. Ali, trata doo cuidado com os filhos, a convivência com outras mulheres e homens, entremeada pelo anúncio de princípios morais e posicionamentos políticos.
O livro foi publicado, inicialmente, em 1960, editado pelo jornalista Adálio Dantas, quem a encontrou em 1958, durante uma reportagem sobre a expansão da referida favela. O trabalho de Dantas foi publicado, inicialmente, na Folha da Noite e na revista O Cruzeiro. (Dantas, 2014, p.7). Na versão aqui resenhada, o texto foi transcrito de modo literal, mas mantém o rico prefácio de Dantas, que descreve o encontro com a autora, os temas recorrentes do diário, a repercussão da obra entre os intelectuais, dentro e fora do Brasil e a atualidade do seu conteúdo. A obra mantém a estrutura original de um diário. É segmentada em dias [ininterruptos] que vão de 15 de julho de 1955 a 1 de janeiro 1960 e é ilustrada com fotos em preto e branco que retratam a autora. Ao final do diário, são agregados fragmentos de entrevista concedida por Carolina de Jesus. No texto, ela depõe sobre as razões e motivações para a escrita do diário, o processo de publicação do livro e o impacto da circulação da obra na sua vida.
Passadas seis décadas da publicação em primeira dição, o livro ainda é atual, em 2024, visto que retrata os cotidianos de muitos brasileiros que vivem em situações de extrema pobreza e são acometidos por desigualdades diversas, severas e interseccionais, quando entrecruzam opressões de raça, gênero, classe, dentre outras, às “opressões estruturantes da matriz colonial moderna da qual saem” (Akotirene, 2020, p. 38).
A angústia diária compartilhada por Carolina atravessa-nos como material cortante, pois fala da dor de sentir fome, da insegurança (estrutural e psicológica) de “residir” num ambiente hostil, das violências de gênero, sobretudo entre maridos e esposas, do sistemático roubo das infâncias… A poetisa fala de vida e morte, de consciência política e fé, de esperança e de suicídio. A fome dói ao ponto de pensar em desistir de viver.
Ela demonstra, ao longo de seus relatos, uma visível capacidade crítico reflexiva sobre a sua realidade e as demais – remetendo-nos às obras de Paulo Freire, quando defende uma educação/alfabetização para a tomada de consciência, para a emancipação. Metaforicamente, a autora apresenta a cidade como uma sala de estar, enquanto a favela seria o “Quarto de despejo”, aquele espaço dos fundos, esquecido, o local para descartar o lixo. Com essa leitura – que é socioeconômica, filosófica também poética, Carolina apresenta a realidade daquelas e daqueles que têm como rotina acordar, pegar água na torneira numa distribuição coletiva, pois não há saneamento, pensar no que vai fazer para comer e para alimentar os filhos e (sobre)viver em função disso. Há dias que têm alimento, há dias que não – a barriga abriga apenas ar. Há dias em que consegue alimentar as crianças, há dias que pede para que elas aguardem o dia seguinte na esperança de que seja um dia melhor. Há dias em que um vizinho ajuda o outro, há dias em que a solidariedade não é viável. Dias e dias vividos de forma sofrida, desamparada e injusta.
O livro é também atual porque depõe sobre as relações indivíduo/Estado, através da experiência dessa mulher preta, periférica e mãe solo. Sua luta incansável e solitária para conseguir o básico para si e seus filhos não é vista pelo Estado e nem pela sociedade. Ela enfrenta o peso da normalização da miséria e os desdobramentos do pós-abolição, que resultaram num abandono de vidas negras, no encarceramento negro aos espaços, à alimentação, ao direito de sonhar e realizar. Negras e negros ainda estão escravizados pelo racismo, pela desigualdade, pelo “Pacto narcísico da branquitude” (Bento, 2022) e por essas correntes que não permitem o povo negro gozar de liberdades, de direitos, da vida. Mulheres em condições parecidas às de Carolina Maria de Jesus, quando vistas, são chamadas de guerreiras por sobreviverem a esse massacre cotidiano. Essas mulheres não querem guerrear; querem paz, querem leveza, querem alimento para corpo e mente, querem ter o direito de ser e estar no mundo.
A obra, que incita essas e tantas outras reflexões, cumpre um importante papel social e literário. Uma mulher negra favelada escreveu e publicou seu livro, iniciando um processo em que relatos do cotidiano da favela passam chegar a diferentes leitoras/es há anos. O livro de Carolina Maria de Jesus inspira e fortalece pessoas negras: temos fome, queremos mais!
Referências
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade – São Paulo: Sueli Carneiro/Editora Jandaíra, 2020.
BENTO, Cida. Pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
DANTAS, Adálio. A atualidade do mundo de Carolina. In: JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014. p.7-10.
FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. 7ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
SANTOS, Lara Gabriella Alves dos. Carolina Maria de Jesus: análise identitária em “Quarto de despejo – diário de uma favelada”. Catalão, 2015. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal de Goiás.
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Resenhista
Juliana Silva Santana é doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professora do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Coordenadora do grupo de leitura e estudos de intelectuais negras “Coletivo Mapinduzi” (CED/UECE). Entre outros trabalhos, publicou Narrativas autobiográficas de professoras da educação básica: a constituição da identidade docente como processo permanente (2019) e A trajetória da didática no Brasil: entre avanços e retrocessos (2020). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/7218143551127362; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5234-4521; E-mail: juliana.santana@uece.br.
Para citar esta resenha
JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014. 200p. Resenha de: SANTANA, Juliana Silva. Crua memória da periferia. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.14, nov./dez., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/crua-memoria-da-periferia-resenha-de-juliana-silva-santana-uece-sobre-o-livro-quarto-de-despejo-diario-de-uma-favelada-de-carolina-maria-de-jesus/>.
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