Descolonizando a bibliografia – Resenha de “Ensino de História: fundamentos e métodos”, de Circe Maria Fernandes Bittencourt

Resenhado por Itamar Freitas (UFS) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214.

Circe Bittencourt | Imagem: BM Comunicação

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Ensino de História: fundamentos e métodos, escrito por Circe Bittencourt, é um livro que trata da atividade docente no Ensino Fundamental sob os pontos de vista histórico, epistemológico e metodológico (História e Pedagogia). Sua quinta edição foi lançada em 2018 e conserva o mesmo objetivo de 2004: subsidiar a formação inicial e continuada dos professores da escolarização básica e dos docentes do ensino superior, formadores dos futuros licenciados em História.

O livro faz sucesso desde a primeira edição. No site Resenha Crítica, a avaliação da obra é o post mais consultado neste ano de 2021, entre os, aproximadamente, 6.000 disponíveis (resenhas e apresentações de dossiês de artigo). São, em média, 50 acessos semanais (Bueno; Urban, 2019). No Google Acadêmico, a quinta edição já ultrapassou a marca das 2000 citações. É uma pena que depois de tantos ganhos empresariais, políticos e acadêmicos, essa versão, publicada em 2018, venha a público com as mesmas imperfeições detectadas há mais de uma década.

Para a nossa sorte, Bittencourt revelou as partes mais frágeis da obra, em entrevista recente a Diogo Roiz: a insuficiente discussão sobre a experiência do ensino de História nos anos iniciais do ensino fundamental, a ênfase na defesa da história temática como alternativa e, consequentemente, o abandono das outras variáveis de conteúdo substantivo  (Bittencourt, 2020, p.20-22).

Bittencourt também explicitou o contexto de produção. Tratava-se, em 2004, de uma demanda editorial da Editora Cortez, interessada no alinhamento das publicações do gênero com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). “A obra teve como eixo o Programa do curso de Metodologia de Ensino de História na FEUSP, acrescido de questões relativas ao ensino de História para as séries iniciais” (Bittencourt, 2020, p.21).

As insuficiências confessadas, porém, não foram comunicadas na segunda, terceira, quarta e quinta edições. O ideal seria apor uma apresentação a cada edição lançada, informando sobre eventuais mudanças de rotas nos domínios do Ensino de História nesse país.

São poucos e pontuais reparos. Na parte 1 (capítulo 2), o texto merece algumas linhas que informem sobre o avanço da pesquisa no tema. Desde 2009, o número de teses e dissertações, artigos, comunicações e de livros do tipo coletânea já deve ter ultrapassado a casa das centenas. Algumas dessas peças já destronaram, direta ou indiretamente, as teses da invenção do domínio supostamente ocorrida nos anos 80 do século passado e a predominância da experiência de Rio de Janeiro e de São Paulo como conteúdo substantivo para uma história do ensino de História no Brasil.

O capítulo três demonstra e comprova esse equívoco. Tratando de história nas “atuais propostas curriculares”, a autora reviu as referências aos anos 1980, inseriu qualificativos e blocos de texto, acrescentando alguns parágrafos sobre os debates em torno da Base Nacional Comum Curricular – BNCC e do projeto “Escola sem Partido” e os desdobramentos da BNCC no Ensino Médio. A autora também redigiu um tópico inteiramente dedicado à inclusão da temática “diversidade social e cultural” nos currículos. Qual a razão do tratamento diferenciado? Haveria interesse político-acadêmico em manter a tese-fundamento e interesse comercial em alterar a informação curricular?

No início da segunda parte, há conservação de posição fortemente contestada nos estudos que mapeiam e delimitam a pesquisa sobre ensino de História como domínio acadêmico. A autora afirma que “Ponto básico para o estabelecimento de um critério para a seleção de conteúdos é a concepção de história” (p.125). Pensamos ser necessário acrescentar (antes ou depois do tópico) a seguinte contextualização: “sob a perspectiva de formados em história que nunca experimentaram a educação básica”, a concepção de história é o ponto básico. Pensamos (inclusive com o apoio de um dos principais aportes empregados pela própria autora – André Chervel) que o “ponto básico” são as finalidades do ensino de História. Quem as prescreve: o professor, o Estado, o Mercado ou a família? E quando os fins já pressupõem uma filosofia especulativa da história e uma epistemologia da História, que deve fazer o professor com essas prescrições?

Coerente com a sua perspectiva, a autora expõe “algumas das tendências historiográficas” relacionadas à “produção escolar” (narrativa, econômica, social, cultural e do tempo presente). Ela declara que a “história narrativa” está associada a Ranke, que “passou a ser denominada de historicismo”, gerando uma “metodologia conhecida como positivista”, cujos praticantes “dedicaram-se ao estudo da individualidade irreproduzível e única, destacando figuras das elites e suas biografias” etc. Assim, um mesmo personagem e uma rubrica condensam todos os supostos males presentes no ensino de História, no passado e no presente, nos estados alemães e nos rincões do Brasil, sem distinção: ênfase no político, individualismo, elitismo, neutralidade e na objetividade. Essa posição (embora não tenha sido inventada por Bittencourt) é ruim para a formação do professor. Ela não dá a conhecer criticamente a história da historiografia e fornece um (falso) caminho para os que querem identificar o princípio do mal ensino sem nenhum esforço cognitivo e ético.

A eleição do “ponto básico” provoca imprecisão no capítulo seguinte. Se o princípio orientador “é a concepção de história”, por que os historiadores de ofício não contribuem com ideias sobre aprendizagem histórica? Estaria a autora a sugerir que os historiadores entram com o conteúdo substantivo, e os psicólogos, com a teoria da aprendizagem?

No capítulo terceiro, o problema é de definição. A autora não informa o seu entendimento sobre “método”, embora empregue, de modo categórico, as expressões “métodos tradicionais” e “métodos conservadores”. Pensamos que todo “tradicional” é cunhado dentro de uma dada situação comunicativa. Ele é definido em meio à formação inicial do professor, à demanda imediata da escola, ao recurso material no interior da sala de aula e, principalmente, aos fins prescritos ou implícitos do componente curricular história em determinado contexto. Esse princípio torna sem efeito a caracterização do tradicional como o autoritário, o expositivo, o narrativo e o político. Quantos de nós sobrariam em sala de aula, caso tal classificação fosse transformada em lei? Deveríamos, então, concluir que – considerando do contexto majoritário de trabalho dos docentes da educação básica – elementos desse tradicional são, ao fim e ao cabo, em determinadas situações, virtudes do profissional contemporâneo?

Esse problema conceitual se repete na parte três, quando a autora trata do livro didático como “um objeto cultural complexo”. O problema aqui é a recusa em definir. Livro didático (qualquer outro objeto) não é coisa de “difícil definição”. Basta eleger os critérios – é o que a autora faz em seguida, implicitamente, ao citar a “familiaridade do uso”. Logo depois, infelizmente, volta à carga da dificuldade, apresentando diferentes formas pelas quais o artefato pode ser abordado em sala de aula e fora dela: “produto cultural”, “suporte de conhecimentos”, “suporte de métodos pedagógicos”, “veículo de um sistema de valores” etc. (p.301-302).

No capítulo segundo, da parte três, apresentamos uma divergência de princípio. A autora reproduz a frase do senso comum de que o professor não pode usar os documentos em sala de aula para formar um “pequeno historiador”. Justifica a tese com a diferenciação de fins de uso (para o aluno da educação básica e para o professor). Isso é um equívoco. Os fins de uso, refletidos com base em princípios, são idênticos. Ao empregar procedimentos de crítica documental, um historiador e um aluno dos anos iniciais do Ensino Fundamental estão mobilizando/desenvolvendo/conservando/ampliando habilidades mentais reunidas na expressão que atravessa diferentes concepções de aprendizagem histórica: “pensar historicamente”. Para a sorte da boa formação, a autora se contradiz na página seguinte ao sugerir os procedimentos empregados por Adalberto Marson (p.301-302).

No último capítulo do livro, a ausência de princípio historiador também é a ponta solta. Defendemos que professores de história não devem copiar acriticamente os procedimentos dos especialistas, por exemplo, da cultura material e da cultura do audiovisual. Nós progredimos pouco no ensino de História quando importamos procedimentos sem convicção de princípios da ciência histórica adequados à formação de pessoas. O fazer do museólogo e do cineasta, por exemplo, para representar o passado de nada vale se não estiver enquadrado em um princípio básico (também, por exemplo) do século XIX: deve-se afirmar sobre o passado apenas a partir de fontes criticadas por meios abonados em uma comunidade historiadora. Com isso, queremos reiterar que o ensino de História não pode ser uma coleção de metodologias de Educação Patrimonial, da Análise de Filmes ou das práticas de Musealização, alienada, por exemplo, do princípio de que a declaração historiadora deve ser apoiada em evidências refutáveis.

Uma apreciação da obra, tal qual fizemos aqui, não é um convite a excluí-la das bibliografias especializadas. Trata-se de uma iniciativa de redução de danos, efetuada por pessoas que leem e conhecem e (o mais importante) manifestam publicamente o seu amor ao saber de referência e de atuação. Estamos convictos de que as escolhas dos alunos são mediadas por sentimentos vários. Se são apaixonados por Fundamentos e Métodos, como somos apaixonados pela Ideologia alemã, de Karl Marx, por exemplo, se fazem todo o esforço para citá-lo até onde não há necessidade ou onde poderiam empregar bibliografia mais substantiva e atualizada, devemos contribuir para que essa ferramenta seja aperfeiçoada. Essa é a nossa intenção.

Se os editores quiserem também manifestar o seu amor ao saber, sem diminuir um centavo nos lucros auferidos com as vendas, certamente providenciarão um prefácio ou um posfácio para iminente sexta edição, fornecendo bibliografia atualizada em forma de apêndices, alertando aos leitores antigos e novos sobre as passagens datadas e as passagens modificadas dessa obra monumental e anexando a autocrítica da autora, publicada recentemente.

Referências

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 5ed. São Paulo: Cortez, 2018. Resenha de: BUENO, Dioury de Andrade; URBAN, Ana Claudia. Revista de Educação Histórica, Curitiba, n. 19, p.83-87, jul./dez., 2019. Link

ROIZ, Diogo da Silva. Entrevista com Circe Bittencourt. Educação: Teoria e Prática. Rio Claro, v.30, n.63, p.1-25, jun. 2020. Link


Sumário de Ensino de História: fundamentos e métodos

  • Introdução
  • Parte I. História escolar: perfil de uma disciplina
      1. O que é disciplina escolar?
      2. Conteúdos e métodos do Ensino de História: breve abordagem histórica
      3. História nas atuais propostas curriculares
  • Parte II. Métodos e conteúdos escolares: uma relação necessária
      1. Conteúdos históricos: como selecionar?
      2. Aprendizagens em História
      3. Procedimentos metodológicos no Ensino de História
      4. Procedimentos metodológicos em práticas interdisciplinares
  • Parte III. Materiais didáticos: concepções e usos
      1. Livros e materiais didáticos de História
      2. Usos didáticos de documentos
      3. Documentos não escritos na sala de aula

Resenhistas

Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), Professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe, e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Piragibe da Fonseca (1903-1986)”. Email: itamarfreitas@gmail.com.

 

 

Margarida Maria Dias de Oliveira – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN. Publicou, entre outros trabalhos, Dicionário do Ensino de História (2020), em coautoria com Marieta e Morais Ferreira, e Formação dos professores de História: os desafios de uma profissão em processo de reinvenção. E-mail: margaridahistoria@yahoo.com.br.

 


Para citar esta resenha

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos  5 ed. São Paulo: Cortez: 2018. 354p. E-book. Descolonizando a bibliografia. Resenha de: FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.3, jan./fev. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/1858/


Consultar outras resenhas sobre Ensino de História: fundamentos e métodos

Dioury de Andrade Bueno e Ana Claudia Urban – Revista de Educação Histórica (2019)


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

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Descolonizando a bibliografia – Resenha de “Ensino de História: fundamentos e métodos”, de Circe Maria Fernandes Bittencourt

Resenhado por Itamar Freitas (UFS) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214.

Circe Bittencourt | Imagem: BM Comunicação

English version available

Ensino de História: fundamentos e métodos, escrito por Circe Bittencourt, é um livro que trata da atividade docente no Ensino Fundamental sob os pontos de vista histórico, epistemológico e metodológico (História e Pedagogia). Sua quinta edição foi lançada em 2018 e conserva o mesmo objetivo de 2004: subsidiar a formação inicial e continuada dos professores da escolarização básica e dos docentes do ensino superior, formadores dos futuros licenciados em História.

O livro faz sucesso desde a primeira edição. No site Resenha Crítica, a avaliação da obra é o post mais consultado neste ano de 2021, entre os, aproximadamente, 6.000 disponíveis (resenhas e apresentações de dossiês de artigo). São, em média, 50 acessos semanais (Bueno; Urban, 2019). No Google Acadêmico, a quinta edição já ultrapassou a marca das 2000 citações. É uma pena que depois de tantos ganhos empresariais, políticos e acadêmicos, essa versão, publicada em 2018, venha a público com as mesmas imperfeições detectadas há mais de uma década.

Para a nossa sorte, Bittencourt revelou as partes mais frágeis da obra, em entrevista recente a Diogo Roiz: a insuficiente discussão sobre a experiência do ensino de História nos anos iniciais do ensino fundamental, a ênfase na defesa da história temática como alternativa e, consequentemente, o abandono das outras variáveis de conteúdo substantivo  (Bittencourt, 2020, p.20-22).

Bittencourt também explicitou o contexto de produção. Tratava-se, em 2004, de uma demanda editorial da Editora Cortez, interessada no alinhamento das publicações do gênero com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). “A obra teve como eixo o Programa do curso de Metodologia de Ensino de História na FEUSP, acrescido de questões relativas ao ensino de História para as séries iniciais” (Bittencourt, 2020, p.21).

As insuficiências confessadas, porém, não foram comunicadas na segunda, terceira, quarta e quinta edições. O ideal seria apor uma apresentação a cada edição lançada, informando sobre eventuais mudanças de rotas nos domínios do Ensino de História nesse país.

São poucos e pontuais reparos. Na parte 1 (capítulo 2), o texto merece algumas linhas que informem sobre o avanço da pesquisa no tema. Desde 2009, o número de teses e dissertações, artigos, comunicações e de livros do tipo coletânea já deve ter ultrapassado a casa das centenas. Algumas dessas peças já destronaram, direta ou indiretamente, as teses da invenção do domínio supostamente ocorrida nos anos 80 do século passado e a predominância da experiência de Rio de Janeiro e de São Paulo como conteúdo substantivo para uma história do ensino de História no Brasil.

O capítulo três demonstra e comprova esse equívoco. Tratando de história nas “atuais propostas curriculares”, a autora reviu as referências aos anos 1980, inseriu qualificativos e blocos de texto, acrescentando alguns parágrafos sobre os debates em torno da Base Nacional Comum Curricular – BNCC e do projeto “Escola sem Partido” e os desdobramentos da BNCC no Ensino Médio. A autora também redigiu um tópico inteiramente dedicado à inclusão da temática “diversidade social e cultural” nos currículos. Qual a razão do tratamento diferenciado? Haveria interesse político-acadêmico em manter a tese-fundamento e interesse comercial em alterar a informação curricular?

No início da segunda parte, há conservação de posição fortemente contestada nos estudos que mapeiam e delimitam a pesquisa sobre ensino de História como domínio acadêmico. A autora afirma que “Ponto básico para o estabelecimento de um critério para a seleção de conteúdos é a concepção de história” (p.125). Pensamos ser necessário acrescentar (antes ou depois do tópico) a seguinte contextualização: “sob a perspectiva de formados em história que nunca experimentaram a educação básica”, a concepção de história é o ponto básico. Pensamos (inclusive com o apoio de um dos principais aportes empregados pela própria autora – André Chervel) que o “ponto básico” são as finalidades do ensino de História. Quem as prescreve: o professor, o Estado, o Mercado ou a família? E quando os fins já pressupõem uma filosofia especulativa da história e uma epistemologia da História, que deve fazer o professor com essas prescrições?

Coerente com a sua perspectiva, a autora expõe “algumas das tendências historiográficas” relacionadas à “produção escolar” (narrativa, econômica, social, cultural e do tempo presente). Ela declara que a “história narrativa” está associada a Ranke, que “passou a ser denominada de historicismo”, gerando uma “metodologia conhecida como positivista”, cujos praticantes “dedicaram-se ao estudo da individualidade irreproduzível e única, destacando figuras das elites e suas biografias” etc. Assim, um mesmo personagem e uma rubrica condensam todos os supostos males presentes no ensino de História, no passado e no presente, nos estados alemães e nos rincões do Brasil, sem distinção: ênfase no político, individualismo, elitismo, neutralidade e na objetividade. Essa posição (embora não tenha sido inventada por Bittencourt) é ruim para a formação do professor. Ela não dá a conhecer criticamente a história da historiografia e fornece um (falso) caminho para os que querem identificar o princípio do mal ensino sem nenhum esforço cognitivo e ético.

A eleição do “ponto básico” provoca imprecisão no capítulo seguinte. Se o princípio orientador “é a concepção de história”, por que os historiadores de ofício não contribuem com ideias sobre aprendizagem histórica? Estaria a autora a sugerir que os historiadores entram com o conteúdo substantivo, e os psicólogos, com a teoria da aprendizagem?

No capítulo terceiro, o problema é de definição. A autora não informa o seu entendimento sobre “método”, embora empregue, de modo categórico, as expressões “métodos tradicionais” e “métodos conservadores”. Pensamos que todo “tradicional” é cunhado dentro de uma dada situação comunicativa. Ele é definido em meio à formação inicial do professor, à demanda imediata da escola, ao recurso material no interior da sala de aula e, principalmente, aos fins prescritos ou implícitos do componente curricular história em determinado contexto. Esse princípio torna sem efeito a caracterização do tradicional como o autoritário, o expositivo, o narrativo e o político. Quantos de nós sobrariam em sala de aula, caso tal classificação fosse transformada em lei? Deveríamos, então, concluir que – considerando do contexto majoritário de trabalho dos docentes da educação básica – elementos desse tradicional são, ao fim e ao cabo, em determinadas situações, virtudes do profissional contemporâneo?

Esse problema conceitual se repete na parte três, quando a autora trata do livro didático como “um objeto cultural complexo”. O problema aqui é a recusa em definir. Livro didático (qualquer outro objeto) não é coisa de “difícil definição”. Basta eleger os critérios – é o que a autora faz em seguida, implicitamente, ao citar a “familiaridade do uso”. Logo depois, infelizmente, volta à carga da dificuldade, apresentando diferentes formas pelas quais o artefato pode ser abordado em sala de aula e fora dela: “produto cultural”, “suporte de conhecimentos”, “suporte de métodos pedagógicos”, “veículo de um sistema de valores” etc. (p.301-302).

No capítulo segundo, da parte três, apresentamos uma divergência de princípio. A autora reproduz a frase do senso comum de que o professor não pode usar os documentos em sala de aula para formar um “pequeno historiador”. Justifica a tese com a diferenciação de fins de uso (para o aluno da educação básica e para o professor). Isso é um equívoco. Os fins de uso, refletidos com base em princípios, são idênticos. Ao empregar procedimentos de crítica documental, um historiador e um aluno dos anos iniciais do Ensino Fundamental estão mobilizando/desenvolvendo/conservando/ampliando habilidades mentais reunidas na expressão que atravessa diferentes concepções de aprendizagem histórica: “pensar historicamente”. Para a sorte da boa formação, a autora se contradiz na página seguinte ao sugerir os procedimentos empregados por Adalberto Marson (p.301-302).

No último capítulo do livro, a ausência de princípio historiador também é a ponta solta. Defendemos que professores de história não devem copiar acriticamente os procedimentos dos especialistas, por exemplo, da cultura material e da cultura do audiovisual. Nós progredimos pouco no ensino de História quando importamos procedimentos sem convicção de princípios da ciência histórica adequados à formação de pessoas. O fazer do museólogo e do cineasta, por exemplo, para representar o passado de nada vale se não estiver enquadrado em um princípio básico (também, por exemplo) do século XIX: deve-se afirmar sobre o passado apenas a partir de fontes criticadas por meios abonados em uma comunidade historiadora. Com isso, queremos reiterar que o ensino de História não pode ser uma coleção de metodologias de Educação Patrimonial, da Análise de Filmes ou das práticas de Musealização, alienada, por exemplo, do princípio de que a declaração historiadora deve ser apoiada em evidências refutáveis.

Uma apreciação da obra, tal qual fizemos aqui, não é um convite a excluí-la das bibliografias especializadas. Trata-se de uma iniciativa de redução de danos, efetuada por pessoas que leem e conhecem e (o mais importante) manifestam publicamente o seu amor ao saber de referência e de atuação. Estamos convictos de que as escolhas dos alunos são mediadas por sentimentos vários. Se são apaixonados por Fundamentos e Métodos, como somos apaixonados pela Ideologia alemã, de Karl Marx, por exemplo, se fazem todo o esforço para citá-lo até onde não há necessidade ou onde poderiam empregar bibliografia mais substantiva e atualizada, devemos contribuir para que essa ferramenta seja aperfeiçoada. Essa é a nossa intenção.

Se os editores quiserem também manifestar o seu amor ao saber, sem diminuir um centavo nos lucros auferidos com as vendas, certamente providenciarão um prefácio ou um posfácio para iminente sexta edição, fornecendo bibliografia atualizada em forma de apêndices, alertando aos leitores antigos e novos sobre as passagens datadas e as passagens modificadas dessa obra monumental e anexando a autocrítica da autora, publicada recentemente.

Referências

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 5ed. São Paulo: Cortez, 2018. Resenha de: BUENO, Dioury de Andrade; URBAN, Ana Claudia. Revista de Educação Histórica, Curitiba, n. 19, p.83-87, jul./dez., 2019. Link

ROIZ, Diogo da Silva. Entrevista com Circe Bittencourt. Educação: Teoria e Prática. Rio Claro, v.30, n.63, p.1-25, jun. 2020. Link


Sumário de Ensino de História: fundamentos e métodos

  • Introdução
  • Parte I. História escolar: perfil de uma disciplina
      1. O que é disciplina escolar?
      2. Conteúdos e métodos do Ensino de História: breve abordagem histórica
      3. História nas atuais propostas curriculares
  • Parte II. Métodos e conteúdos escolares: uma relação necessária
      1. Conteúdos históricos: como selecionar?
      2. Aprendizagens em História
      3. Procedimentos metodológicos no Ensino de História
      4. Procedimentos metodológicos em práticas interdisciplinares
  • Parte III. Materiais didáticos: concepções e usos
      1. Livros e materiais didáticos de História
      2. Usos didáticos de documentos
      3. Documentos não escritos na sala de aula

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Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), Professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe, e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Piragibe da Fonseca (1903-1986)”. Email: itamarfreitas@gmail.com.

 

 

Margarida Maria Dias de Oliveira – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN. Publicou, entre outros trabalhos, Dicionário do Ensino de História (2020), em coautoria com Marieta e Morais Ferreira, e Formação dos professores de História: os desafios de uma profissão em processo de reinvenção. E-mail: margaridahistoria@yahoo.com.br.

 


Para citar esta resenha

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos  5 ed. São Paulo: Cortez: 2018. 354p. E-book. Descolonizando a bibliografia. Resenha de: FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.3, jan./fev. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/1858/


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