Elites em peregrinação – Resenha de Alícia de Brito Meneghetti Cunha (UFRN), sobre o livro “O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão”, de Magno Francisco de Jesus Santos

Magno Francisco de Jesus Santos | Imagem: Acervo do autor

Resumo: Neste texto, Alícia de Brito Meneghetti Cunha aborda O Prefácio dos Tempos: Caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão, livro de Magno Francisco de Jesus Santos. A obra explora a romaria sob perspectivas históricas e culturais, destacando-se pela profundidade da análise.

Palavras-chave: romaria do Senhor dos Passos; São Cristóvão-SE; história do Catolicismo.


O livro O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão, escrito por Magno Francisco de Jesus Santos e publicado pela Criação Editora em 2024, analisa a Romaria do Senhor dos Passos. Com foco na cidade histórica de São Cristóvão, a obra investiga como essa prática religiosa foi ressignificada por diferentes grupos e movimentos sociais. Beatriz Góis Dantas, no prefácio, valoriza o trabalho como resultado de uma pesquisa criteriosa, que combina uma gama de fontes com uma análise sofisticada, mantendo o equilíbrio entre uma escrita acadêmica e uma linguagem acessível.

Magno Francisco de Jesus Santos, o autor, é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2015). Possui ampla experiência nas áreas de Ensino de História, Patrimônio Cultural e Religiosidade Católica, com publicações sobre História da Educação e da Religiosidade. A publicação dessa obra surge de uma necessidade crescente de estudos que abordem a relação entre religião e sociedade no Brasil, destacando o papel da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão como uma prática simbólica e culturalmente rica, que reflete as transformações no catolicismo brasileiro dos séculos XIX e XX.

A Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão, como principal manifestação devocional católica em Sergipe, representa um legado cultural e religioso enraizado na história do estado. Essa romaria, tornou-se um espaço de expressão de fé e identidade, onde elementos da cultura local se entrelaçam com práticas religiosas, criando um rico mosaico de tradições. Durante a primeira metade do século XX, a romaria reafirmou-se como um símbolo da devoção popular e um ponto de confluência para a reflexão sobre a identidade sergipana. As ruas da cidade, tornaram-se o cenário de uma celebração que homenageava o Senhor dos Passos e promovia um reencontro com a tradição e a cultura local

A estrutura da obra, organizada como uma procissão simbólica, divide-se em três partes. Ao longo dos capítulos, o autor busca problematizar as diferentes leituras e interpretações da Romaria na primeira metade do século XX, analisando como essa celebração religiosa moldou a memória coletiva dos sergipanos e se tornou um importante ponto de convergência entre fé e identidade.

Na primeira parte “A Jerusalém de Sergipe”, destaca-se o papel dos intelectuais e suas interpretações acerca da Romaria dos Passos, ressaltando as disputas simbólicas e políticas que permeiam essa celebração religiosa. O foco é examinar a transformação da participação da elite política sergipana nas solenidades de São Cristóvão, em um período marcado por intensas mudanças sociais e políticas. Apesar dessas transformações, a romaria se manteve como uma cerimônia importante que agregava a diversidade social e revelava as desigualdades, reafirmando a posição social de seus devotos.

O argumento central sugere que, em pleno período republicano, a romaria se tornou um pilar na constituição de uma leitura simbólica da cidade de São Cristóvão. Em contraste com a nova capital, Aracaju, vista como moderna e progressista, São Cristóvão era associada à tradição e ao passado. A romaria serviu como um palco para reafirmações identitárias e disputas políticas, como evidenciado pela utilização da celebração pela elite local para construir uma narrativa glorificada do passado.

A relevância da obra reside na crítica às leituras tradicionais da história sergipana, que por muito tempo excluíram o papel das camadas populares. Destaca como a romaria se tornou um importante espaço para a reivindicação de identidades e memórias coletivas, enquanto figuras como Serafim Santiago foram fundamentais para preservar as tradições da cidade, registrando minuciosamente as festas e celebrações. Esse enfoque contribui para uma compreensão mais ampla das dinâmicas sociais e políticas presentes na memória histórica da cidade de São Cristóvão, permitindo uma releitura inclusiva e plural do passado.

Na segunda parte, “Impasses da reforma devocional em Sergipe”, o enredo centraliza-se nas interações entre os frades franciscanos e os irmãos terceiros do Carmo. No quinto capítulo são explorados os conflitos entre os herdeiros das antigas irmandades e os religiosos franciscanos da Saxônia durante o processo de implementação da reforma devocional católica em São Cristóvão no início do século XX. Essa seção discute como a introdução de novas ordens religiosas estrangeiras no Brasil, e em especial em Sergipe, tensionou a relação entre o clero local e as irmandades leigas.

A narrativa segue em: “A quadrilha de irmãos: a reforma devocional e os bastidores da romaria”, que aprofunda as tensões e conflitos entre os diversos atores sociais envolvidos na romaria do Senhor dos Passos. Nessa análise, são examinados os embates entre os frades franciscanos de origem alemã e os leigos da Ordem Terceira do Carmo, que disputavam o controle sobre a realização da romaria e sua solenidade.

O foco está nas transformações no catolicismo sergipano entre o final do século XIX e o início do XX, com ênfase nas dinâmicas sociais e religiosas associadas à reforma devocional católica. O estudo evidencia como o clero brasileiro, em colaboração com ordens religiosas estrangeiras, tentou modernizar as práticas devocionais e reforçar o controle sobre as devoções populares. Contudo, as irmandades leigas, resistiam a essa intervenção, mantendo práticas devocionais que eram vistas pelo clero como atrasadas ou supersticiosas. Essa luta pelo poder religioso e simbólico reflete um conflito mais amplo entre o catolicismo reformador, mais clerical e alinhado às diretrizes de Roma, e o catolicismo popular, fortemente associado às antigas irmandades e às práticas devocionais que envolviam a população de camadas mais humildes.

A contribuição dessa parte está na problematização do conceito de reforma devocional no Brasil, desafiando interpretações anteriores que enfatizam apenas a europeização do clero e a imposição de um catolicismo mais ortodoxo explorar a relação complexa entre leigos e clero, o estudo propõe uma visão dialógica do processo, na qual alianças e resistências eram tecidas entre os diferentes grupos sociais. A documentação apresentada, como os livros de tombo e ofícios paroquiais, reforça a importância de São Cristóvão como centro de romarias e palco de embates religiosos. Também destaca a contribuição fundamental de figuras como Serafim Santiago, que, com o apoio de notáveis da comunidade local, como Horácio Pio Monteiro, liderou campanhas para a reforma das igrejas. Esses esforços de reconstrução, entretanto, geraram novas disputas sobre quem deveria controlar as devoções e o patrimônio religioso.

Ao abordar a romanização e o ultramontanismo no contexto sergipano, a obra ilumina as complexidades do processo de reforma devocional, mostrando como a Igreja buscou redefinir sua posição na sociedade brasileira, especialmente após a proclamação da República. A Igreja passou a ter mais liberdade para implementar suas reformas, intensificando a luta pelo controle das devoções e das irmandades, que até então mantinham uma relativa autonomia em relação ao clero. A entrada de ordens religiosas estrangeiras, como os franciscanos da Saxônia, reforçou esse processo de reestruturação e sua atuação em Sergipe se deu, especialmente, no controle da romaria do Senhor dos Passos.

Em contrapartida, a resistência das irmandades leigas também é um tema de destaque. A luta pelo controle dos santuários e romarias revela a tensão entre a tentativa de modernização e controle clerical e o desejo das camadas populares de manter suas práticas.

As irmandades, que por séculos foram guardiãs de tradições locais, como a romaria do Senhor dos Passos, passaram a ser vistas como arcaicas e alvos de críticas por parte do clero reformador. Esse processo culminou na exclusão das irmandades do comando das celebrações e no controle clerical.

Detalhe do olhar da imagem do Senhor dos Passos | Foto: Magno Santos, 2013 (Santos, 2024, p.363)

O estudo tece críticas à historiografia sobre o catolicismo brasileiro, apontando que os conceitos de romanização e ultramontanismo, nem sempre capturam a totalidade das transformações ocorridas no campo religioso. Ao tratar o catolicismo popular como uma categoria erudita, a obra destaca a necessidade de uma abordagem mais sutil e inclusiva, que reconheça a riqueza e a diversidade das práticas devocionais.

Na terceira parte, “A festa do Senhor dos Passos: entre o culto e o devocional”, o autor analisa as transformações nas práticas devocionais associadas à romaria ao longo da primeira metade do século XX. A festa do Senhor dos Passos, representa uma interseção entre o sagrado e o profano, onde a devoção popular se expressa em rituais, cantos, danças e outras manifestações culturais. Santos observa que, apesar das tentativas de controle e modificação por parte do clero, a festa se manteve como um espaço de resistência cultural e de afirmação identitária.

O autor declara a importância da memória coletiva na construção das identidades religiosas e sociais em São Cristóvão e propõe que a romaria do Senhor dos Passos tornou-se um espaço de devoção e verdadeiro símbolo da luta por reconhecimento e valorização das tradições locais. Ele entende que as práticas religiosas, ao serem ressignificadas, podem contribuir para a construção de identidades culturais em contextos de transformação social.

O Prefácio dos Tempos, enfim, convida o leitor a uma imersão na história da Romaria do Senhor dos Passos. A obra cumpre os objetivos propostos e contribui para os estudos sobre religiosidade popular no Brasil, permitindo uma compreensão mais profunda da complexidade das relações entre fé, cultura e identidade. Por meio de uma pesquisa rigorosa, o autor apresenta um panorama da Romaria, fato que, muito provavelmente instigará reflexões dos estudiosos sobre o papel da religiosidade na constituição da sociedade e da memória coletiva sergipana.

Sumário de O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão

  • Um prefácio para o prefácio dos tempos | Beatriz Góis Dantas
  • Apresentação
  • Introdução
  • Primeira Parte: a Jerusalém de Sergipe
    • 1. O encontro dos tempos do Império e da República
    • 2. A cidade do passado
    • 3. Os tempos da cidade
    • 4. Um Cirineu pensando a História; Serafim Santiago e as memórias da Romaria
  • Segunda parte: Impasses da reforma devocional católica em Sergipe
    • 5. “As ciladas dos frades franciscanos”: a reforma devocional católica e a luta pelas alfaias
    • 6. “A Quadrilha de Irmãos”: a reforma devocional católica e os bastidores da romaria
    • 7. Terceira Parte: a memória da tragédia – patrimonialização da romaria
    • 8. As ruas das amarguras: O patrimônio de pedra e cal
    • 9. “A formosa filha de Sião e seu unigênito Filho”
    • 10. “A rememoração da tragédia”: a imaterialidade do patrimônio
  • Considerações finais
  • Referências

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Resenhista

Alícia de Brito Meneghetti Cunha é graduanda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Publicou, entre outros trabalhos, “Com enthusiasmo, nessas manifestações de patriotismo”: o IHGRN e as comemorações do Centenário da Independência em 1922. É bolsista do projeto: Um passado a ser celebrado: comemorações e efemérides no IHGRN (1917-1922). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/3036159312199493; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0005-9408-7497; E-mail: aliciabmeneghetti@gmail.com.

 


Para citar esta resenha

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão. Aracaju: Criação, 2024. 430p. Prefácio de Beatriz Góis Dantas. Resenha de: CUNHA, Alícia de Brito Meneghetti. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.18, jul./ago., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/elites-em-peregrinacao-resenha-de-alicia-de-brito-meneghetti-ufrn-sobre-o-livro-o-prefacio-dos-tempos-caminhos-da-romaria-do-senhor-dos-passos-em-sao-cristovao/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 18, jul./ago., 2024 | ISSN 2764-2666

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Magno Francisco de Jesus Santos | Imagem: Acervo do autor

Resumo: Neste texto, Alícia de Brito Meneghetti Cunha aborda O Prefácio dos Tempos: Caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão, livro de Magno Francisco de Jesus Santos. A obra explora a romaria sob perspectivas históricas e culturais, destacando-se pela profundidade da análise.

Palavras-chave: romaria do Senhor dos Passos; São Cristóvão-SE; história do Catolicismo.


O livro O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão, escrito por Magno Francisco de Jesus Santos e publicado pela Criação Editora em 2024, analisa a Romaria do Senhor dos Passos. Com foco na cidade histórica de São Cristóvão, a obra investiga como essa prática religiosa foi ressignificada por diferentes grupos e movimentos sociais. Beatriz Góis Dantas, no prefácio, valoriza o trabalho como resultado de uma pesquisa criteriosa, que combina uma gama de fontes com uma análise sofisticada, mantendo o equilíbrio entre uma escrita acadêmica e uma linguagem acessível.

Magno Francisco de Jesus Santos, o autor, é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2015). Possui ampla experiência nas áreas de Ensino de História, Patrimônio Cultural e Religiosidade Católica, com publicações sobre História da Educação e da Religiosidade. A publicação dessa obra surge de uma necessidade crescente de estudos que abordem a relação entre religião e sociedade no Brasil, destacando o papel da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão como uma prática simbólica e culturalmente rica, que reflete as transformações no catolicismo brasileiro dos séculos XIX e XX.

A Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão, como principal manifestação devocional católica em Sergipe, representa um legado cultural e religioso enraizado na história do estado. Essa romaria, tornou-se um espaço de expressão de fé e identidade, onde elementos da cultura local se entrelaçam com práticas religiosas, criando um rico mosaico de tradições. Durante a primeira metade do século XX, a romaria reafirmou-se como um símbolo da devoção popular e um ponto de confluência para a reflexão sobre a identidade sergipana. As ruas da cidade, tornaram-se o cenário de uma celebração que homenageava o Senhor dos Passos e promovia um reencontro com a tradição e a cultura local

A estrutura da obra, organizada como uma procissão simbólica, divide-se em três partes. Ao longo dos capítulos, o autor busca problematizar as diferentes leituras e interpretações da Romaria na primeira metade do século XX, analisando como essa celebração religiosa moldou a memória coletiva dos sergipanos e se tornou um importante ponto de convergência entre fé e identidade.

Na primeira parte “A Jerusalém de Sergipe”, destaca-se o papel dos intelectuais e suas interpretações acerca da Romaria dos Passos, ressaltando as disputas simbólicas e políticas que permeiam essa celebração religiosa. O foco é examinar a transformação da participação da elite política sergipana nas solenidades de São Cristóvão, em um período marcado por intensas mudanças sociais e políticas. Apesar dessas transformações, a romaria se manteve como uma cerimônia importante que agregava a diversidade social e revelava as desigualdades, reafirmando a posição social de seus devotos.

O argumento central sugere que, em pleno período republicano, a romaria se tornou um pilar na constituição de uma leitura simbólica da cidade de São Cristóvão. Em contraste com a nova capital, Aracaju, vista como moderna e progressista, São Cristóvão era associada à tradição e ao passado. A romaria serviu como um palco para reafirmações identitárias e disputas políticas, como evidenciado pela utilização da celebração pela elite local para construir uma narrativa glorificada do passado.

A relevância da obra reside na crítica às leituras tradicionais da história sergipana, que por muito tempo excluíram o papel das camadas populares. Destaca como a romaria se tornou um importante espaço para a reivindicação de identidades e memórias coletivas, enquanto figuras como Serafim Santiago foram fundamentais para preservar as tradições da cidade, registrando minuciosamente as festas e celebrações. Esse enfoque contribui para uma compreensão mais ampla das dinâmicas sociais e políticas presentes na memória histórica da cidade de São Cristóvão, permitindo uma releitura inclusiva e plural do passado.

Na segunda parte, “Impasses da reforma devocional em Sergipe”, o enredo centraliza-se nas interações entre os frades franciscanos e os irmãos terceiros do Carmo. No quinto capítulo são explorados os conflitos entre os herdeiros das antigas irmandades e os religiosos franciscanos da Saxônia durante o processo de implementação da reforma devocional católica em São Cristóvão no início do século XX. Essa seção discute como a introdução de novas ordens religiosas estrangeiras no Brasil, e em especial em Sergipe, tensionou a relação entre o clero local e as irmandades leigas.

A narrativa segue em: “A quadrilha de irmãos: a reforma devocional e os bastidores da romaria”, que aprofunda as tensões e conflitos entre os diversos atores sociais envolvidos na romaria do Senhor dos Passos. Nessa análise, são examinados os embates entre os frades franciscanos de origem alemã e os leigos da Ordem Terceira do Carmo, que disputavam o controle sobre a realização da romaria e sua solenidade.

O foco está nas transformações no catolicismo sergipano entre o final do século XIX e o início do XX, com ênfase nas dinâmicas sociais e religiosas associadas à reforma devocional católica. O estudo evidencia como o clero brasileiro, em colaboração com ordens religiosas estrangeiras, tentou modernizar as práticas devocionais e reforçar o controle sobre as devoções populares. Contudo, as irmandades leigas, resistiam a essa intervenção, mantendo práticas devocionais que eram vistas pelo clero como atrasadas ou supersticiosas. Essa luta pelo poder religioso e simbólico reflete um conflito mais amplo entre o catolicismo reformador, mais clerical e alinhado às diretrizes de Roma, e o catolicismo popular, fortemente associado às antigas irmandades e às práticas devocionais que envolviam a população de camadas mais humildes.

A contribuição dessa parte está na problematização do conceito de reforma devocional no Brasil, desafiando interpretações anteriores que enfatizam apenas a europeização do clero e a imposição de um catolicismo mais ortodoxo explorar a relação complexa entre leigos e clero, o estudo propõe uma visão dialógica do processo, na qual alianças e resistências eram tecidas entre os diferentes grupos sociais. A documentação apresentada, como os livros de tombo e ofícios paroquiais, reforça a importância de São Cristóvão como centro de romarias e palco de embates religiosos. Também destaca a contribuição fundamental de figuras como Serafim Santiago, que, com o apoio de notáveis da comunidade local, como Horácio Pio Monteiro, liderou campanhas para a reforma das igrejas. Esses esforços de reconstrução, entretanto, geraram novas disputas sobre quem deveria controlar as devoções e o patrimônio religioso.

Ao abordar a romanização e o ultramontanismo no contexto sergipano, a obra ilumina as complexidades do processo de reforma devocional, mostrando como a Igreja buscou redefinir sua posição na sociedade brasileira, especialmente após a proclamação da República. A Igreja passou a ter mais liberdade para implementar suas reformas, intensificando a luta pelo controle das devoções e das irmandades, que até então mantinham uma relativa autonomia em relação ao clero. A entrada de ordens religiosas estrangeiras, como os franciscanos da Saxônia, reforçou esse processo de reestruturação e sua atuação em Sergipe se deu, especialmente, no controle da romaria do Senhor dos Passos.

Em contrapartida, a resistência das irmandades leigas também é um tema de destaque. A luta pelo controle dos santuários e romarias revela a tensão entre a tentativa de modernização e controle clerical e o desejo das camadas populares de manter suas práticas.

As irmandades, que por séculos foram guardiãs de tradições locais, como a romaria do Senhor dos Passos, passaram a ser vistas como arcaicas e alvos de críticas por parte do clero reformador. Esse processo culminou na exclusão das irmandades do comando das celebrações e no controle clerical.

Detalhe do olhar da imagem do Senhor dos Passos | Foto: Magno Santos, 2013 (Santos, 2024, p.363)

O estudo tece críticas à historiografia sobre o catolicismo brasileiro, apontando que os conceitos de romanização e ultramontanismo, nem sempre capturam a totalidade das transformações ocorridas no campo religioso. Ao tratar o catolicismo popular como uma categoria erudita, a obra destaca a necessidade de uma abordagem mais sutil e inclusiva, que reconheça a riqueza e a diversidade das práticas devocionais.

Na terceira parte, “A festa do Senhor dos Passos: entre o culto e o devocional”, o autor analisa as transformações nas práticas devocionais associadas à romaria ao longo da primeira metade do século XX. A festa do Senhor dos Passos, representa uma interseção entre o sagrado e o profano, onde a devoção popular se expressa em rituais, cantos, danças e outras manifestações culturais. Santos observa que, apesar das tentativas de controle e modificação por parte do clero, a festa se manteve como um espaço de resistência cultural e de afirmação identitária.

O autor declara a importância da memória coletiva na construção das identidades religiosas e sociais em São Cristóvão e propõe que a romaria do Senhor dos Passos tornou-se um espaço de devoção e verdadeiro símbolo da luta por reconhecimento e valorização das tradições locais. Ele entende que as práticas religiosas, ao serem ressignificadas, podem contribuir para a construção de identidades culturais em contextos de transformação social.

O Prefácio dos Tempos, enfim, convida o leitor a uma imersão na história da Romaria do Senhor dos Passos. A obra cumpre os objetivos propostos e contribui para os estudos sobre religiosidade popular no Brasil, permitindo uma compreensão mais profunda da complexidade das relações entre fé, cultura e identidade. Por meio de uma pesquisa rigorosa, o autor apresenta um panorama da Romaria, fato que, muito provavelmente instigará reflexões dos estudiosos sobre o papel da religiosidade na constituição da sociedade e da memória coletiva sergipana.

Sumário de O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão

  • Um prefácio para o prefácio dos tempos | Beatriz Góis Dantas
  • Apresentação
  • Introdução
  • Primeira Parte: a Jerusalém de Sergipe
    • 1. O encontro dos tempos do Império e da República
    • 2. A cidade do passado
    • 3. Os tempos da cidade
    • 4. Um Cirineu pensando a História; Serafim Santiago e as memórias da Romaria
  • Segunda parte: Impasses da reforma devocional católica em Sergipe
    • 5. “As ciladas dos frades franciscanos”: a reforma devocional católica e a luta pelas alfaias
    • 6. “A Quadrilha de Irmãos”: a reforma devocional católica e os bastidores da romaria
    • 7. Terceira Parte: a memória da tragédia – patrimonialização da romaria
    • 8. As ruas das amarguras: O patrimônio de pedra e cal
    • 9. “A formosa filha de Sião e seu unigênito Filho”
    • 10. “A rememoração da tragédia”: a imaterialidade do patrimônio
  • Considerações finais
  • Referências

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Resenhista

Alícia de Brito Meneghetti Cunha é graduanda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Publicou, entre outros trabalhos, “Com enthusiasmo, nessas manifestações de patriotismo”: o IHGRN e as comemorações do Centenário da Independência em 1922. É bolsista do projeto: Um passado a ser celebrado: comemorações e efemérides no IHGRN (1917-1922). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/3036159312199493; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0005-9408-7497; E-mail: aliciabmeneghetti@gmail.com.

 


Para citar esta resenha

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. O Prefácio dos Tempos: caminhos da Romaria do Senhor dos Passos em São Cristóvão. Aracaju: Criação, 2024. 430p. Prefácio de Beatriz Góis Dantas. Resenha de: CUNHA, Alícia de Brito Meneghetti. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.18, jul./ago., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/elites-em-peregrinacao-resenha-de-alicia-de-brito-meneghetti-ufrn-sobre-o-livro-o-prefacio-dos-tempos-caminhos-da-romaria-do-senhor-dos-passos-em-sao-cristovao/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 18, jul./ago., 2024 | ISSN 2764-2666

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