Feminicídio, Transfeminicídio e Ensino de História: a construção de um conceito em cenários latinos, por Patricia Rosalba Salvador Moura Costa (UFS) e Lynna Gabriella Silva Unger (SEDUC-SE)

Foto: Arquivo/Fernando Frazão/Agência Brasil/Carta Capital

Resumo

Este artigo revisa a literatura recente sobre o conceito e o fenômeno do “feminicídio”, aponta para a reivindicação social da construção teórica, política e jurídica do conceito de transfeminicídio e sinaliza como esse debate se relaciona com o Ensino de História. Além disso, historiciza a construção da categoria, descreve a inserção do problema na legislação e informa sobre taxas de violência contra mulheres cisgênero transgênero na América Latina.

Palavras-chave: Conceito de Feminicídio, Feminicídio na América Latina, Ensino de História.


Introdução

O debate em torno do Feminicídio e Transfeminicídio envolve campos acadêmicos, político e jurídico e provoca, de um lado, a necessidade do reconhecimento e da consolidação de tais categorias em distintas áreas, e consequentemente, a construção de políticas públicas urgentes que deem conta de responder a esse problema social grave que é a morte de pessoas em função do gênero.

Por outro lado, a inciativa do firmamento de tal debate aciona uma reação conservadora por parte da sociedade que argumenta que o uso de tais termos, a instituição de ordenamento jurídico e a criação de políticas públicas estabelece privilégios para mulheres cisgênero (cis) e transgênero (trans)[1] que vivenciam diariamente episódios de violência de gênero que se consolida em atos de Feminicídio e Transfeminicídio.

Neste artigo, descrevemos a construção do conceito, apontamos que o termo transfeminícidio é reivindicado por grupos sociais em países da América Latina e apresentamos dados sobre o assassinato de mulheres cis e trans em contextos americanos, nas primeiras décadas do século XXI. Além disso, inventariamos sumariamente as teses e dissertações que tratam da temática da violência de gênero e Ensino de História.

Das reivindicações sociais, acadêmicas e jurídicas: a construção do conceito de Feminicídio

A nomenclatura Feminicídio[2], já reconhecida ao redor do mundo, trata-se do assassinato de mulheres por motivos de misoginia. Os agentes de Feminicídio, normalmente, são os companheiros/esposos/namorados/ex das vítimas, embora o crime possa ser causado por pessoas que não tenham parentesco com as mulheres, como é o caso de rejeição ou alguma outra razão, desde que possua estreita relação com a condição de gênero. Quando exploram a historicidade da palavra, algumas autoras remetem a Diana Russell, a primeira utilização da termo “Feminicídio”, que teria sido usada em 1976[3]. Contudo, a tipificação da coisa do feminicídio, ou seja, no âmbito jurídico, é algo recente, possui um pouco mais de uma década. O México, país condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações sistemáticas aos direitos das mulheres, foi somente o 7.º país, em 2012, a criar o tipo penal, enquanto que, em 2015, o Brasil se tornou o 16.º da América Latina e Caribe (VILLA; MACHADO, 2018).

Segundo Loureiro (2020), o termo Feminicídio é adotado nas legislações penais dos seguintes países: Bolívia (2013), Brasil (2015), Colômbia (2015), República Dominicana (2014), El Salvador (2011), México (2012), Paraguai (2016), Peru (2013) e Uruguai (2017). Portanto, o termo feminicídio foi adotado nas legislações criminais de Chile (2010), Costa Rica (2007), Equador (2014), Guatemala (2008), Honduras (2013), Nicarágua (2012) e Panamá (2013). Como mencionado, o termo Feminicídio ingressa no ordenamento jurídico brasileiro, em meados de março de 2015, quando da promulgação da Lei n.º 13.104/2015. A referida Lei aumentou a pena-base do crime de homicídio de 6 a 20 anos de reclusão para 12 a 30 anos, nos casos de homicídio em razão de sexo feminino[4], de sorte que figura como circunstância qualificadora do crime de homicídio simples, além de incluir o Feminicídio no rol de crimes hediondos. Houve uma atualização, em novembro de 2019, o Senado Federal ainda aprovou a Proposta de Emenda à Constituição n.º 755, tornando o Feminicídio crime imprescritível e inafiançável, tal qual o crime de racismo, possibilitando a investigação dos acusados a qualquer tempo.

Trata-se, portanto, de um fenômeno que abarca todas as esferas da vida de mulheres com o fim de preservar o domínio masculino nas sociedades patriarcais. Para Segato (2021), o sistema patriarcal se revela como a mais antiga e duradoura organização política. Organização que tem como norma, a superioridade masculina e a posse/controle sobre o corpo feminino. A autora ainda acrescenta que é a partir do patriarcado e na articulação com ele, que se estruturam as demais formas de desigualdade, como as desigualdades econômica, política, colonial e racial. Há uma espécie de hegemonia do patriarcado sobre os demais poderes.

Nesse sentido, ainda que não haja acordo sobre o feminicídio, existe um consenso mínimo acerca de algumas das suas características: a morte dessas mulheres pelo simples fato de serem mulheres é produto das relações de desigualdade, de exclusão, de poder e de submissão. O longo percurso de violência que antecede o feminicídio constitui a violação máxima dos direitos humanos, por desabilitar a dignidade, autonomia e liberdade das vítimas (GOMES, 2018). Portanto, é considerado um problema de ordem política, social, de saúde pública e de justiça criminal (CAMAN et al., 2017; FERNÁNDEZ-GONZÁLEZ; CALVETE; ORUE, 2017; MENEGHEL; PORTELLA, 2017; NAÇÕES UNIDAS, 2014).

A antropóloga e feminista mexicana, Marcela Lagarde, esclarece que “feminicídio” significa o assassinato de mulheres “(termo homólogo ao homicídio), mas acrescentando a ele uma significação política: a de genocídio contra as mulheres. O Feminicídio, portanto, pode ser caracterizado como o assassinato misógino de mulheres, que na grande maioria das vezes é realizado por homens e pode ser considerado como a forma mais extremada de violência cometida contra as mulheres. (LAGARDE, 2006, p. 218).

O reconhecimento da violência contra a mulher como atos ou condutas baseados no gênero, que venham a causar morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, seja em qualquer esfera, pública ou privada, foi fruto de esforços contínuos no âmbito internacional, latino americano e nacional, como aponta Mendes (2011). Foram décadas de lutas pelo mundo inteiro para que se reconhecesse e nomeasse o fenômeno da violência de gênero, visando retirar dela o status de violência menor ou relegada ao âmbito privado, onde o Estado não poderia intervir. Todavia, desde a promulgação da Lei, até os dias de hoje, é um dispositivo legal que recebeu e recebe críticas de parte da doutrina e da academia, começando com a polêmica acerca da alteração do texto do Projeto de Lei do Feminicídio (PL n. 8.304/2014) para que viesse a ser promulgada no ano seguinte, até a forma com que lida com a problemática dos Feminicídios que ocorrem em números alarmantes no Brasil.

No mundo, estima-se a ocorrência de 66.000 homicídios intencionais de mulheres ao ano, equivalente a 17% do total de mortes por agressão com concentração nas regiões do Caribe, América Central e na América do Sul (MARGARITES; MENEGHEL; CECCON, 2017). O Brasil ocupa o 5.º lugar no ranking de 83 países nos homicídios de mulheres (BRASIL, 2019; WAISELFISZ, 2015). Em 2019, 3.737 residentes foram assassinadas no Brasil, o que equivale a uma taxa de homicídio de 3,5 casos por 100 mil mulheres. Apesar da redução da taxa em 17,9% em comparação com o ano anterior (4,3 casos por 100 mil mulheres), esta avaliação deve ser ponderada, pois, no mesmo período, houve o aumento de 21,6% dos registros de mortes violentas de mulheres por causa indeterminada, passando de 3.090 para 3.756, o que compromete análises de evolução e pode revelar a subnotificação de homicídios (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2021).

No cenário apresentado acima, as taxas mais elevadas concentraram-se nas regiões Norte e Nordeste do país e, o estado de Pernambuco alcançou uma taxa de homicídios de 4,1 casos por 100 mil mulheres, superior ao âmbito nacional. Aspectos histórico-culturais permeados pelo conservadorismo e patriarcalismo são acionados para explicar tais taxas (ARBOIT et al., 2018; PIMENTEL et al., 2020). As relações tradicionais que assumem controle e domínio da figura feminina e maior normalização da violência, influenciam o ciclo reprovável e discriminatório que vulnerabiliza a vida das vítimas (COSTA et al., 2017; JOHNSON et al., 2019; SÁ et al., 2021).

Apesar de o feminicídio ser uma prática perversamente cosmopolita, o perfil das vítimas expõe uma população vulnerável em grande parte dos países: jovens, negras, com baixos níveis de escolaridade e que estão inseridas em contextos de desigualdades socioeconômicas (FRANÇA et al., 2017; PETROSKY et al., 2017). Adicionalmente, o contexto brasileiro é marcado por expressivas desigualdades espaciais, fato que reflete em vazios assistenciais e fragilidades nas redes de apoio especializada no enfrentamento da violência contra a mulher (INGRAM; COSTA, 2016). Outrossim, a desigualdade de gênero desempenha papel preponderante no que tange a essa violência.

Na sociedade normalizadora na qual vivemos, o poder sob o corpo e a conduta das mulheres incidem das mais diversas e variadas formas, circundando o cotidiano em suas mais diferentes vertentes e intensidades e está condensada em macro e micro poderes. No entanto, a interface da discussão por razões de gênero ainda é recente na comunidade científica e judiciária, fato que contribui para o dimensionamento ser desacorde diante da realidade.

Em paralelo, tendo em vista os casos de assassinatos de pessoas trans no Brasil, a socióloga Berenice Bento afirma: “Sabemos que a vida de um negro vale menos que a de um branco no Brasil. Não é novidade que os ricos não são presos. Mas talvez ainda não se saiba o suficiente sobre a natureza da violência que as pessoas trans sofrem no Brasil” (BENTO, 2016, p.45).

No Brasil e em outros países da América Latina, há um processo intenso de subnotificação de casos de assassinatos de pessoas trans, por parte de instituições estatais, que reverbera direto na ausência de cifras que evidenciem o problema e contribuam para a reflexão e construção de políticas públicas direcionadas às mulheres trans.

Transfeminicídio: um debate em construção

Convém ressaltar o entendimento que a violência que acomete pessoas transgênero não se resume ao Feminicídio, pois se sabe que esses grupos são violentados de modos distintos daqueles aos quais são submetidas as mulheres cis. Todavia, o que se advoga aqui é a perspectiva de que restringir a aplicação da Lei do Feminicídio apenas para o sexo feminino biológico resulta no silenciamento e na negação da identidade de gênero das mulheres transgêneros, o que revebera como uma forma de violentar a existência dessas pessoas, haja vista que também estão sujeitas ao Feminicídio. Destarte, o alcance dos casos de assassinatos de travestis e mulheres transexuais brasileiras e de países da América Latina, desloca-se de uma mera condição individual de violências e passa a requerer um esforço analítico de compreensão estrutural, que envolve a conjugação de diversos marcadores, como lembrou Bento (2016). Aliás, é da socióloga a definição que tipifica a natureza dos casos de assassinatos específicos a esta população enquanto transfeminicídio: “Ao acrescentar ‘trans” ao “feminicídio”, por um lado, reafirmo que a natureza da violência contra travestis, mulheres trans e mulheres transexuais é da ordem do gênero, por outro, reconheço que há singularidades nesses crimes” (BENTO, 2016, p.45 – 46).

A inseparabilidade entre essas vivências e o encontro delas com a categoria “violência” reflete uma carência circunstancial de se debater um tipo de violação específica, representada pelo modo como essa população passou a ser eliminada reiteradamente nos marcos do Estado-Nação. Essa carência tornou-se ainda mais evidente no período que compreende as duas primeiras décadas do século XXI, a partir dos esforços e das mobilizações dos movimentos sociais voltados às dissidências sexuais e de gênero, sobretudo os ativismos políticos referentes às causas e demandas das pessoas trans. É devido ao trabalho de Organizações Não Governamentais brasileiras e do diálogo delas com organizações internacionais que passamos a ter ciência da informação que o Brasil é o país recordista nos casos de assassinatos de travestis e mulheres transexuais, em escala mundial (BENEVIDES, 2023).

Em Dossiê organizado e publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuaisas do Brasil (ANTRA), evidencia-se que a maior concentração dos assassinatos contra travestis e transexuais brasileiras é observada na Região Nordeste, com 52 assassinatos (40,5% dos casos); Em seguida, vemos a Região Sudeste com 35 casos (27%) casos; A região Centro-Oeste com 17 (13%) assassinatos; o Norte, com 16 (12,5%) casos; e o Sul com 9 (7%) assassinatos. Em 2022, foi observado aumento no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste, enquanto o Sudeste teve sua primeira queda nos últimos 6 anos e o Sul também apresentou diminuição (BENEVIDES, 2023, p. 31).

Burgueño-Durarte e Sández-González (2023), consideram que se o feminicídio é entendido como a privação da vida das mulheres por razões de gênero, então é válido perguntar: o feminicídio considera as mulheres trans quando estas são privadas da vida? A vida das mulheres trans por razões de gênero deve ser compreendida sob uma abordagem interseccional, a situação de discriminação que enfrentam não é alheia ao contexto sociocultural onde a atribuição de estereótipos produz generalizações ou preconceitos sobre atributos, características ou papéis das pessoas atentando a identidade e dignidade humana como ser único e independente.

A inseparabilidade entre essas vivências e o encontro delas com a categoria “violência” reflete uma carência circunstancial de se debater um tipo de violação específica, representada pelo modo como essa população passou a ser eliminada reiteradamente nos marcos do Estado-Nação. Essa carência tornou-se ainda mais evidente no período que compreende as duas primeiras décadas do século XXI, a partir dos esforços e das mobilizações dos movimentos sociais voltados às dissidências sexuais e de gênero, sobretudo os ativismos políticos referentes às causas e demandas das pessoas trans.

Feminicídio e Ensino de História

Chegamos, enfim, à temática do feminicídio em sua relação com o Ensino de História. O que diz a literatura a respeito? Considerando a especialização da relação, é compreensível que a temática seja rara e esteja alojada na rubrica da violência contra a mulher. Ela é praticamente inexistente, quando consideramos a relação “feminicídio e ensino de história” nos títulos e subtítulos de artigos, publicados nos últimos cinco anos em revistas de História. Foram uma dezena e meia de textos publicados no universo de quase duas centenas de revistas com o escopo identificado por “História”: História & Ciências Sociais (2022), Antígona (2022), Estudos Feministas (2018, 2020 e 2022), Crítica Histórica (2020), Mnemosine (2020), Outros tempos (2020), Cadernos Pagu (2018 e 2020).

Mais frutuosa foi a consulta ao lugar acadêmico mais propício à pesquisa original, isto é, a pesquisa em nível de pós-graduação. Ali, identificamos, aproximadamente cinco centenas de teses e dissertações nacionais que exploram a experiência da mulher como vítima em diferentes situações.

A maior parte das teses e dissertações defendidas nos últimos cinco anos denuncia o crime e narra a vivência de mulheres de diferentes proveniências (brasileiras e norte-americanas), configurações identitárias, raciais, étnicas e de gênero (negra, indígena, quilombola, trans, ativista) e condições socio-jurídicas e de saúde (presidiária, viciada em drogas, contaminadas com o HIV, com deficiência mental, vitimizadas, culpabilizadas e traumatizadas). A violência contra a mulher é abordada do ponto de vista da memória e da história de vida, das representações entre enfermeiros, médicos, trabalhadores em geral e educadores, veiculadas em jogos, novelas e nos livros didáticos. Diversos atores e facetas do fenômeno são discutidos, como os perpetradores da violência, as redes de proteção, os cuidados com a saúde e as políticas de combate ao crime.

Textos do gênero, que relacionam violência contra a mulher e educação formal, contudo, são residuais, não chegando à 8% do total discriminado acima. Estudantes e professoras estão neste rol, embora raramente sejam exploradas as suas experiências com o Ensino de História. Nesse sentido, encontramos, sobretudo, nos programas de Pós-graduação em Ensino de História, trabalhos que exploram a descoberta, a historicidade, a conscientização e a denúncia, mediante inventários e criação de estratégias didático-pedagógicas, implantáveis no Ensino de História.

São os casos, portanto, os trabalhos que exploram depoimentos tangenciais sobre o nível de consciência histórica de mulheres estudantes da Educação de Jovens e adultos (SANTOS, 2021), que fazem mapeamentos sobre a presença de misoginia e feminicídio nas escolas em Apucarana-PR (SIMÃO, 2021) e que estudam de representações de protesto, incluso o combate à violência contra a mulher e a relação corpo/poder, via grafites (FREITAS, 2019).

Mais comuns, contudo, são os trabalhos que se esmeram na criação de estratégias de conscientização e de mobilização para o combate à violência contra a mulher e, em especial, ao feminicídio. Dentre os localizados, destacamos o desenvolvimento de oficinas de informação e conscientização, nos domínios da História das Mulheres para uma escola do ensino fundamental em São Bernardo do Campo-SP (SILVA, 2020), de sequências didáticas centradas no combate ao androcentrismo e no estímulo ao empoderamento feminino no ensino de História, em escola do Ensino Médio, no Rio Grande do Norte (BARBALHO, 2019) e de unidades temáticas para promover a “reconciliação” entre “vítimas e perpetradores”, com base em domínios da Educação Histórica, sob a abordagem das “histórias difíceis” (GONÇALVES, 2020). Outros textos no mesmo sentido promovem estratégias de uso da música como fonte histórica para a problematização e o combate à violência contra a mulher no interior da escola (BRUM, 2020). O mais significativo texto, por fim, investiga as demandas de professores de História para dar conta do combate à violência de gênero, em especial à violência contra a mulher, e constrói cartilhas mediadoras da aprendizagem de conceitos e proposições que envolvem “gênero” e “História das mulheres” (NUVENS, 2020).

Conclusões

Neste artigo, propusemo-nos a revisar a literatura recente sobre feminicídio e transfeminicídio em contextos brasileiro e latino americano. Constatamos, portanto que, embora em alguns países haja a consolidação jurídica do conceito de Feminicídio, especialmente, nos ordenamentos legais, os embates sobre a categoria gênero continuam sendo tensionados, na tentativa da consolidação das relações de poder que definem uma sociedade patriarcal e da negação da diversidade das identidades de gênero. Averiguamos, portanto, que o debate sobre a construção do conceito de transfeminicídio encontra entraves no cenário internacional, estando, atualmente, na fase da reivindicação por parte de grupos sociais vulnerabilizados e representados pelas pessoas trans.

Os dados sobre assassinatos de mulheres cis e trans são assustadores e alarmantes, expõe os desafios para desconstruirmos o olhar naturalizante e banalizador dessas violências que atingem mulheres, o que exige a restruturação de políticas de gênero, a consolidação do conceito no âmbito jurídico a acadêmico, a integração intersetorial e fortalecimento da proteção social, sobretudo em cenários de recorrentes medidas de austeridades, o que prejudica fortemente a garantia de direitos fundamentais.

Sobre a relação “Feminicídio/Ensino de História”, constatamos uma ausência de literatura específica que dê conta da importância da temática para o debate no ambiente escolar, sendo assim, é mais que urgente o desenvolvimento do tema em programas de pós-graduação, especialmente, àqueles voltados à formação de professores/as. Ações como essas, consubstanciam-se em medidas que podem efetivar a reflexão sobre o tema da violência contra mulher na comunidade escolar, e, consequentemente, o surgimento de atividades didáticas que multipliquem a importância do respeito a diversidades e contra todas as formas de violência de gênero.

Notas

[1] Cisgênero é um termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu “gênero de nascença”; transgênero designa pessoas que não se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram.

[2] Faremos uso da nomenclatura Feminicídio, apesar da existência da nomenclatura Femicídio por duas razões: a primeira, por estar inclusa no Brasil na letra da Lei como Feminicídio; e a segunda, pois Femicídio implica na literalidade da palavra: praticar Homicídio contra mulher – não havendo a incidência do motivo gênero para a prática do crime, que consideramos o fator-chave para a importância de nomear o assassinato de mulheres por motivos de gênero.

[3] Para maiores detalhes, ver: Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH). Informe regional. Situación y análisis del femicidio en la región centroamericana. Consejo Centroamericano de Procuradores de Derechos Humanos, 2006. Disponível em: http://apps.who. int/iris/bitstream/10665/77421/1/WHO_RHR_12.38_ eng.pdf, acessado em agosto de 2023

[4] A palavra gênero foi eliminada da versão final da nova lei, sendo substituída por condição de sexo feminino, pois havia o temor de que tal vocábulo pudesse suscitar dúvidas e ambiguidades. Cabe salientar que tal ação foi orquestrada por parlamentares conservadores.

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Para ampliar a sua revisão da literatura


Autora

Patricia Rosalba Salvador Moura Costa é doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Mestrado em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe e coordenadora do XiqueXiq; ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/0525576563038902; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8320-9093; Email: patriciarosalba@gmail.com.

 

Lynna Gabriella Silva Unger é doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Atualmente é Professora da Educação Básica da Rede Estadual de Ensino/Seduc-SE. Integrante do XiqueXique: grupo de Pesquisa sobre Gênero e Sexualidades (Xique-Xique/UFS/CNPq) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Científica (GEPEC/UFS/CNPq) ID LATTES: https://lattes.cnpq.br/4245762170027681; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0207-157X; Email: lgabiunger@gmail.com.


Para citar este texto

COSTA, Patricia Rosalba Salvador Moura; UNGER, Lynna Gabriella Silva. Feminicídio, Transfeminicídio e Ensino de História: a construção de um conceito em cenários latinos, por ROCHA, Taíse Santos. Maes de umbigo: saberes e vivências históricas das parteiras em periódicos acadêmicos brasileiros (Séculos XIX e XX). Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.11, maio/jun., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/feminicidio-transfeminicidio-e-ensino-de-historia-a-construcao-de-um-conceito-em-cenarios-latinos-por-patricia-rosalba-salvador-moura-costa-ufs-e-lynna-gabriella-silva-unger-seduc-se/>.


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Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 11, maio/jun., 2023 | ISSN 2764-2666

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Alertas/Alerts

Feminicídio, Transfeminicídio e Ensino de História: a construção de um conceito em cenários latinos, por Patricia Rosalba Salvador Moura Costa (UFS) e Lynna Gabriella Silva Unger (SEDUC-SE)

Foto: Arquivo/Fernando Frazão/Agência Brasil/Carta Capital

Resumo

Este artigo revisa a literatura recente sobre o conceito e o fenômeno do “feminicídio”, aponta para a reivindicação social da construção teórica, política e jurídica do conceito de transfeminicídio e sinaliza como esse debate se relaciona com o Ensino de História. Além disso, historiciza a construção da categoria, descreve a inserção do problema na legislação e informa sobre taxas de violência contra mulheres cisgênero transgênero na América Latina.

Palavras-chave: Conceito de Feminicídio, Feminicídio na América Latina, Ensino de História.


Introdução

O debate em torno do Feminicídio e Transfeminicídio envolve campos acadêmicos, político e jurídico e provoca, de um lado, a necessidade do reconhecimento e da consolidação de tais categorias em distintas áreas, e consequentemente, a construção de políticas públicas urgentes que deem conta de responder a esse problema social grave que é a morte de pessoas em função do gênero.

Por outro lado, a inciativa do firmamento de tal debate aciona uma reação conservadora por parte da sociedade que argumenta que o uso de tais termos, a instituição de ordenamento jurídico e a criação de políticas públicas estabelece privilégios para mulheres cisgênero (cis) e transgênero (trans)[1] que vivenciam diariamente episódios de violência de gênero que se consolida em atos de Feminicídio e Transfeminicídio.

Neste artigo, descrevemos a construção do conceito, apontamos que o termo transfeminícidio é reivindicado por grupos sociais em países da América Latina e apresentamos dados sobre o assassinato de mulheres cis e trans em contextos americanos, nas primeiras décadas do século XXI. Além disso, inventariamos sumariamente as teses e dissertações que tratam da temática da violência de gênero e Ensino de História.

Das reivindicações sociais, acadêmicas e jurídicas: a construção do conceito de Feminicídio

A nomenclatura Feminicídio[2], já reconhecida ao redor do mundo, trata-se do assassinato de mulheres por motivos de misoginia. Os agentes de Feminicídio, normalmente, são os companheiros/esposos/namorados/ex das vítimas, embora o crime possa ser causado por pessoas que não tenham parentesco com as mulheres, como é o caso de rejeição ou alguma outra razão, desde que possua estreita relação com a condição de gênero. Quando exploram a historicidade da palavra, algumas autoras remetem a Diana Russell, a primeira utilização da termo “Feminicídio”, que teria sido usada em 1976[3]. Contudo, a tipificação da coisa do feminicídio, ou seja, no âmbito jurídico, é algo recente, possui um pouco mais de uma década. O México, país condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações sistemáticas aos direitos das mulheres, foi somente o 7.º país, em 2012, a criar o tipo penal, enquanto que, em 2015, o Brasil se tornou o 16.º da América Latina e Caribe (VILLA; MACHADO, 2018).

Segundo Loureiro (2020), o termo Feminicídio é adotado nas legislações penais dos seguintes países: Bolívia (2013), Brasil (2015), Colômbia (2015), República Dominicana (2014), El Salvador (2011), México (2012), Paraguai (2016), Peru (2013) e Uruguai (2017). Portanto, o termo feminicídio foi adotado nas legislações criminais de Chile (2010), Costa Rica (2007), Equador (2014), Guatemala (2008), Honduras (2013), Nicarágua (2012) e Panamá (2013). Como mencionado, o termo Feminicídio ingressa no ordenamento jurídico brasileiro, em meados de março de 2015, quando da promulgação da Lei n.º 13.104/2015. A referida Lei aumentou a pena-base do crime de homicídio de 6 a 20 anos de reclusão para 12 a 30 anos, nos casos de homicídio em razão de sexo feminino[4], de sorte que figura como circunstância qualificadora do crime de homicídio simples, além de incluir o Feminicídio no rol de crimes hediondos. Houve uma atualização, em novembro de 2019, o Senado Federal ainda aprovou a Proposta de Emenda à Constituição n.º 755, tornando o Feminicídio crime imprescritível e inafiançável, tal qual o crime de racismo, possibilitando a investigação dos acusados a qualquer tempo.

Trata-se, portanto, de um fenômeno que abarca todas as esferas da vida de mulheres com o fim de preservar o domínio masculino nas sociedades patriarcais. Para Segato (2021), o sistema patriarcal se revela como a mais antiga e duradoura organização política. Organização que tem como norma, a superioridade masculina e a posse/controle sobre o corpo feminino. A autora ainda acrescenta que é a partir do patriarcado e na articulação com ele, que se estruturam as demais formas de desigualdade, como as desigualdades econômica, política, colonial e racial. Há uma espécie de hegemonia do patriarcado sobre os demais poderes.

Nesse sentido, ainda que não haja acordo sobre o feminicídio, existe um consenso mínimo acerca de algumas das suas características: a morte dessas mulheres pelo simples fato de serem mulheres é produto das relações de desigualdade, de exclusão, de poder e de submissão. O longo percurso de violência que antecede o feminicídio constitui a violação máxima dos direitos humanos, por desabilitar a dignidade, autonomia e liberdade das vítimas (GOMES, 2018). Portanto, é considerado um problema de ordem política, social, de saúde pública e de justiça criminal (CAMAN et al., 2017; FERNÁNDEZ-GONZÁLEZ; CALVETE; ORUE, 2017; MENEGHEL; PORTELLA, 2017; NAÇÕES UNIDAS, 2014).

A antropóloga e feminista mexicana, Marcela Lagarde, esclarece que “feminicídio” significa o assassinato de mulheres “(termo homólogo ao homicídio), mas acrescentando a ele uma significação política: a de genocídio contra as mulheres. O Feminicídio, portanto, pode ser caracterizado como o assassinato misógino de mulheres, que na grande maioria das vezes é realizado por homens e pode ser considerado como a forma mais extremada de violência cometida contra as mulheres. (LAGARDE, 2006, p. 218).

O reconhecimento da violência contra a mulher como atos ou condutas baseados no gênero, que venham a causar morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, seja em qualquer esfera, pública ou privada, foi fruto de esforços contínuos no âmbito internacional, latino americano e nacional, como aponta Mendes (2011). Foram décadas de lutas pelo mundo inteiro para que se reconhecesse e nomeasse o fenômeno da violência de gênero, visando retirar dela o status de violência menor ou relegada ao âmbito privado, onde o Estado não poderia intervir. Todavia, desde a promulgação da Lei, até os dias de hoje, é um dispositivo legal que recebeu e recebe críticas de parte da doutrina e da academia, começando com a polêmica acerca da alteração do texto do Projeto de Lei do Feminicídio (PL n. 8.304/2014) para que viesse a ser promulgada no ano seguinte, até a forma com que lida com a problemática dos Feminicídios que ocorrem em números alarmantes no Brasil.

No mundo, estima-se a ocorrência de 66.000 homicídios intencionais de mulheres ao ano, equivalente a 17% do total de mortes por agressão com concentração nas regiões do Caribe, América Central e na América do Sul (MARGARITES; MENEGHEL; CECCON, 2017). O Brasil ocupa o 5.º lugar no ranking de 83 países nos homicídios de mulheres (BRASIL, 2019; WAISELFISZ, 2015). Em 2019, 3.737 residentes foram assassinadas no Brasil, o que equivale a uma taxa de homicídio de 3,5 casos por 100 mil mulheres. Apesar da redução da taxa em 17,9% em comparação com o ano anterior (4,3 casos por 100 mil mulheres), esta avaliação deve ser ponderada, pois, no mesmo período, houve o aumento de 21,6% dos registros de mortes violentas de mulheres por causa indeterminada, passando de 3.090 para 3.756, o que compromete análises de evolução e pode revelar a subnotificação de homicídios (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2021).

No cenário apresentado acima, as taxas mais elevadas concentraram-se nas regiões Norte e Nordeste do país e, o estado de Pernambuco alcançou uma taxa de homicídios de 4,1 casos por 100 mil mulheres, superior ao âmbito nacional. Aspectos histórico-culturais permeados pelo conservadorismo e patriarcalismo são acionados para explicar tais taxas (ARBOIT et al., 2018; PIMENTEL et al., 2020). As relações tradicionais que assumem controle e domínio da figura feminina e maior normalização da violência, influenciam o ciclo reprovável e discriminatório que vulnerabiliza a vida das vítimas (COSTA et al., 2017; JOHNSON et al., 2019; SÁ et al., 2021).

Apesar de o feminicídio ser uma prática perversamente cosmopolita, o perfil das vítimas expõe uma população vulnerável em grande parte dos países: jovens, negras, com baixos níveis de escolaridade e que estão inseridas em contextos de desigualdades socioeconômicas (FRANÇA et al., 2017; PETROSKY et al., 2017). Adicionalmente, o contexto brasileiro é marcado por expressivas desigualdades espaciais, fato que reflete em vazios assistenciais e fragilidades nas redes de apoio especializada no enfrentamento da violência contra a mulher (INGRAM; COSTA, 2016). Outrossim, a desigualdade de gênero desempenha papel preponderante no que tange a essa violência.

Na sociedade normalizadora na qual vivemos, o poder sob o corpo e a conduta das mulheres incidem das mais diversas e variadas formas, circundando o cotidiano em suas mais diferentes vertentes e intensidades e está condensada em macro e micro poderes. No entanto, a interface da discussão por razões de gênero ainda é recente na comunidade científica e judiciária, fato que contribui para o dimensionamento ser desacorde diante da realidade.

Em paralelo, tendo em vista os casos de assassinatos de pessoas trans no Brasil, a socióloga Berenice Bento afirma: “Sabemos que a vida de um negro vale menos que a de um branco no Brasil. Não é novidade que os ricos não são presos. Mas talvez ainda não se saiba o suficiente sobre a natureza da violência que as pessoas trans sofrem no Brasil” (BENTO, 2016, p.45).

No Brasil e em outros países da América Latina, há um processo intenso de subnotificação de casos de assassinatos de pessoas trans, por parte de instituições estatais, que reverbera direto na ausência de cifras que evidenciem o problema e contribuam para a reflexão e construção de políticas públicas direcionadas às mulheres trans.

Transfeminicídio: um debate em construção

Convém ressaltar o entendimento que a violência que acomete pessoas transgênero não se resume ao Feminicídio, pois se sabe que esses grupos são violentados de modos distintos daqueles aos quais são submetidas as mulheres cis. Todavia, o que se advoga aqui é a perspectiva de que restringir a aplicação da Lei do Feminicídio apenas para o sexo feminino biológico resulta no silenciamento e na negação da identidade de gênero das mulheres transgêneros, o que revebera como uma forma de violentar a existência dessas pessoas, haja vista que também estão sujeitas ao Feminicídio. Destarte, o alcance dos casos de assassinatos de travestis e mulheres transexuais brasileiras e de países da América Latina, desloca-se de uma mera condição individual de violências e passa a requerer um esforço analítico de compreensão estrutural, que envolve a conjugação de diversos marcadores, como lembrou Bento (2016). Aliás, é da socióloga a definição que tipifica a natureza dos casos de assassinatos específicos a esta população enquanto transfeminicídio: “Ao acrescentar ‘trans” ao “feminicídio”, por um lado, reafirmo que a natureza da violência contra travestis, mulheres trans e mulheres transexuais é da ordem do gênero, por outro, reconheço que há singularidades nesses crimes” (BENTO, 2016, p.45 – 46).

A inseparabilidade entre essas vivências e o encontro delas com a categoria “violência” reflete uma carência circunstancial de se debater um tipo de violação específica, representada pelo modo como essa população passou a ser eliminada reiteradamente nos marcos do Estado-Nação. Essa carência tornou-se ainda mais evidente no período que compreende as duas primeiras décadas do século XXI, a partir dos esforços e das mobilizações dos movimentos sociais voltados às dissidências sexuais e de gênero, sobretudo os ativismos políticos referentes às causas e demandas das pessoas trans. É devido ao trabalho de Organizações Não Governamentais brasileiras e do diálogo delas com organizações internacionais que passamos a ter ciência da informação que o Brasil é o país recordista nos casos de assassinatos de travestis e mulheres transexuais, em escala mundial (BENEVIDES, 2023).

Em Dossiê organizado e publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuaisas do Brasil (ANTRA), evidencia-se que a maior concentração dos assassinatos contra travestis e transexuais brasileiras é observada na Região Nordeste, com 52 assassinatos (40,5% dos casos); Em seguida, vemos a Região Sudeste com 35 casos (27%) casos; A região Centro-Oeste com 17 (13%) assassinatos; o Norte, com 16 (12,5%) casos; e o Sul com 9 (7%) assassinatos. Em 2022, foi observado aumento no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste, enquanto o Sudeste teve sua primeira queda nos últimos 6 anos e o Sul também apresentou diminuição (BENEVIDES, 2023, p. 31).

Burgueño-Durarte e Sández-González (2023), consideram que se o feminicídio é entendido como a privação da vida das mulheres por razões de gênero, então é válido perguntar: o feminicídio considera as mulheres trans quando estas são privadas da vida? A vida das mulheres trans por razões de gênero deve ser compreendida sob uma abordagem interseccional, a situação de discriminação que enfrentam não é alheia ao contexto sociocultural onde a atribuição de estereótipos produz generalizações ou preconceitos sobre atributos, características ou papéis das pessoas atentando a identidade e dignidade humana como ser único e independente.

A inseparabilidade entre essas vivências e o encontro delas com a categoria “violência” reflete uma carência circunstancial de se debater um tipo de violação específica, representada pelo modo como essa população passou a ser eliminada reiteradamente nos marcos do Estado-Nação. Essa carência tornou-se ainda mais evidente no período que compreende as duas primeiras décadas do século XXI, a partir dos esforços e das mobilizações dos movimentos sociais voltados às dissidências sexuais e de gênero, sobretudo os ativismos políticos referentes às causas e demandas das pessoas trans.

Feminicídio e Ensino de História

Chegamos, enfim, à temática do feminicídio em sua relação com o Ensino de História. O que diz a literatura a respeito? Considerando a especialização da relação, é compreensível que a temática seja rara e esteja alojada na rubrica da violência contra a mulher. Ela é praticamente inexistente, quando consideramos a relação “feminicídio e ensino de história” nos títulos e subtítulos de artigos, publicados nos últimos cinco anos em revistas de História. Foram uma dezena e meia de textos publicados no universo de quase duas centenas de revistas com o escopo identificado por “História”: História & Ciências Sociais (2022), Antígona (2022), Estudos Feministas (2018, 2020 e 2022), Crítica Histórica (2020), Mnemosine (2020), Outros tempos (2020), Cadernos Pagu (2018 e 2020).

Mais frutuosa foi a consulta ao lugar acadêmico mais propício à pesquisa original, isto é, a pesquisa em nível de pós-graduação. Ali, identificamos, aproximadamente cinco centenas de teses e dissertações nacionais que exploram a experiência da mulher como vítima em diferentes situações.

A maior parte das teses e dissertações defendidas nos últimos cinco anos denuncia o crime e narra a vivência de mulheres de diferentes proveniências (brasileiras e norte-americanas), configurações identitárias, raciais, étnicas e de gênero (negra, indígena, quilombola, trans, ativista) e condições socio-jurídicas e de saúde (presidiária, viciada em drogas, contaminadas com o HIV, com deficiência mental, vitimizadas, culpabilizadas e traumatizadas). A violência contra a mulher é abordada do ponto de vista da memória e da história de vida, das representações entre enfermeiros, médicos, trabalhadores em geral e educadores, veiculadas em jogos, novelas e nos livros didáticos. Diversos atores e facetas do fenômeno são discutidos, como os perpetradores da violência, as redes de proteção, os cuidados com a saúde e as políticas de combate ao crime.

Textos do gênero, que relacionam violência contra a mulher e educação formal, contudo, são residuais, não chegando à 8% do total discriminado acima. Estudantes e professoras estão neste rol, embora raramente sejam exploradas as suas experiências com o Ensino de História. Nesse sentido, encontramos, sobretudo, nos programas de Pós-graduação em Ensino de História, trabalhos que exploram a descoberta, a historicidade, a conscientização e a denúncia, mediante inventários e criação de estratégias didático-pedagógicas, implantáveis no Ensino de História.

São os casos, portanto, os trabalhos que exploram depoimentos tangenciais sobre o nível de consciência histórica de mulheres estudantes da Educação de Jovens e adultos (SANTOS, 2021), que fazem mapeamentos sobre a presença de misoginia e feminicídio nas escolas em Apucarana-PR (SIMÃO, 2021) e que estudam de representações de protesto, incluso o combate à violência contra a mulher e a relação corpo/poder, via grafites (FREITAS, 2019).

Mais comuns, contudo, são os trabalhos que se esmeram na criação de estratégias de conscientização e de mobilização para o combate à violência contra a mulher e, em especial, ao feminicídio. Dentre os localizados, destacamos o desenvolvimento de oficinas de informação e conscientização, nos domínios da História das Mulheres para uma escola do ensino fundamental em São Bernardo do Campo-SP (SILVA, 2020), de sequências didáticas centradas no combate ao androcentrismo e no estímulo ao empoderamento feminino no ensino de História, em escola do Ensino Médio, no Rio Grande do Norte (BARBALHO, 2019) e de unidades temáticas para promover a “reconciliação” entre “vítimas e perpetradores”, com base em domínios da Educação Histórica, sob a abordagem das “histórias difíceis” (GONÇALVES, 2020). Outros textos no mesmo sentido promovem estratégias de uso da música como fonte histórica para a problematização e o combate à violência contra a mulher no interior da escola (BRUM, 2020). O mais significativo texto, por fim, investiga as demandas de professores de História para dar conta do combate à violência de gênero, em especial à violência contra a mulher, e constrói cartilhas mediadoras da aprendizagem de conceitos e proposições que envolvem “gênero” e “História das mulheres” (NUVENS, 2020).

Conclusões

Neste artigo, propusemo-nos a revisar a literatura recente sobre feminicídio e transfeminicídio em contextos brasileiro e latino americano. Constatamos, portanto que, embora em alguns países haja a consolidação jurídica do conceito de Feminicídio, especialmente, nos ordenamentos legais, os embates sobre a categoria gênero continuam sendo tensionados, na tentativa da consolidação das relações de poder que definem uma sociedade patriarcal e da negação da diversidade das identidades de gênero. Averiguamos, portanto, que o debate sobre a construção do conceito de transfeminicídio encontra entraves no cenário internacional, estando, atualmente, na fase da reivindicação por parte de grupos sociais vulnerabilizados e representados pelas pessoas trans.

Os dados sobre assassinatos de mulheres cis e trans são assustadores e alarmantes, expõe os desafios para desconstruirmos o olhar naturalizante e banalizador dessas violências que atingem mulheres, o que exige a restruturação de políticas de gênero, a consolidação do conceito no âmbito jurídico a acadêmico, a integração intersetorial e fortalecimento da proteção social, sobretudo em cenários de recorrentes medidas de austeridades, o que prejudica fortemente a garantia de direitos fundamentais.

Sobre a relação “Feminicídio/Ensino de História”, constatamos uma ausência de literatura específica que dê conta da importância da temática para o debate no ambiente escolar, sendo assim, é mais que urgente o desenvolvimento do tema em programas de pós-graduação, especialmente, àqueles voltados à formação de professores/as. Ações como essas, consubstanciam-se em medidas que podem efetivar a reflexão sobre o tema da violência contra mulher na comunidade escolar, e, consequentemente, o surgimento de atividades didáticas que multipliquem a importância do respeito a diversidades e contra todas as formas de violência de gênero.

Notas

[1] Cisgênero é um termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu “gênero de nascença”; transgênero designa pessoas que não se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram.

[2] Faremos uso da nomenclatura Feminicídio, apesar da existência da nomenclatura Femicídio por duas razões: a primeira, por estar inclusa no Brasil na letra da Lei como Feminicídio; e a segunda, pois Femicídio implica na literalidade da palavra: praticar Homicídio contra mulher – não havendo a incidência do motivo gênero para a prática do crime, que consideramos o fator-chave para a importância de nomear o assassinato de mulheres por motivos de gênero.

[3] Para maiores detalhes, ver: Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH). Informe regional. Situación y análisis del femicidio en la región centroamericana. Consejo Centroamericano de Procuradores de Derechos Humanos, 2006. Disponível em: http://apps.who. int/iris/bitstream/10665/77421/1/WHO_RHR_12.38_ eng.pdf, acessado em agosto de 2023

[4] A palavra gênero foi eliminada da versão final da nova lei, sendo substituída por condição de sexo feminino, pois havia o temor de que tal vocábulo pudesse suscitar dúvidas e ambiguidades. Cabe salientar que tal ação foi orquestrada por parlamentares conservadores.

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Autora

Patricia Rosalba Salvador Moura Costa é doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Mestrado em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe e coordenadora do XiqueXiq; ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/0525576563038902; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8320-9093; Email: patriciarosalba@gmail.com.

 

Lynna Gabriella Silva Unger é doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Atualmente é Professora da Educação Básica da Rede Estadual de Ensino/Seduc-SE. Integrante do XiqueXique: grupo de Pesquisa sobre Gênero e Sexualidades (Xique-Xique/UFS/CNPq) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Científica (GEPEC/UFS/CNPq) ID LATTES: https://lattes.cnpq.br/4245762170027681; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0207-157X; Email: lgabiunger@gmail.com.


Para citar este texto

COSTA, Patricia Rosalba Salvador Moura; UNGER, Lynna Gabriella Silva. Feminicídio, Transfeminicídio e Ensino de História: a construção de um conceito em cenários latinos, por ROCHA, Taíse Santos. Maes de umbigo: saberes e vivências históricas das parteiras em periódicos acadêmicos brasileiros (Séculos XIX e XX). Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.11, maio/jun., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/feminicidio-transfeminicidio-e-ensino-de-historia-a-construcao-de-um-conceito-em-cenarios-latinos-por-patricia-rosalba-salvador-moura-costa-ufs-e-lynna-gabriella-silva-unger-seduc-se/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 11, maio/jun., 2023 | ISSN 2764-2666

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