História das mulheres e das mulheres indígenas no Brasil – Breve nota bibliográfica | Blenda Cunha Moura (NEAB/IFAC)
Resumo: Neste artigo de revisão, descrevemos e comentamos alguns textos clássicos sobre a história das mulheres no Brasil, sobretudo no âmbito dos historiadores. Em seguida, comentamos sobre a raridade da bibliografia a respeito da história das mulheres indígenas e apontamos alguns caminhos que essa historiografia pode trilhar.
Palavras-chave: História das Mulheres, História das Mulheres Indígenas, Historiografia.
Introdução
Os desafios para acessar a agência de mulheres indígenas no passado colonial e entre historiadores são muitos. Se indígenas, de forma geral, figuram nas fontes tanto no plural quanto anonimamente, o rastreio das mulheres tem sido um desafio ainda maior. Entretanto, é imperioso que esses grupos sejam recuperados na documentação e tenham sua especificidade destacada.
A opção pelo recorte de gênero parte desta lacuna; os numerosos povos, contra os quais avançou a colonização, eram diversos tanto etnicamente, quanto na sua organização interior e nesse sentido abordamos o recorte de gênero. Neste texto, fazemos breve nota bibliográfica sobre mulheres e mulheres indígenas, revisitando clássicos estudos acerca da imagem da mulher a escrita da História sobre a mulher, reafirmando, ao final, os delineamentos que uma história da mulher indígena deve seguir no Brasil.
Imagens de mulher
Na busca por experiências comuns, que permitam uma generalização, mesmo tímida, que levem a resultados na pesquisa sobre Histórias de mulheres indígenas na Amazônia colonial, selecionamos fontes de uma territorialidade para a qual os avanços civilizatórios portugueses são considerados tardios em comparação com os primeiros núcleos litorâneos. A própria geografia amazônica era e ainda é um desafio logístico para o estabelecimento de densas povoações. A acidentada floresta, o clima quente e úmido, a fauna e os rios, os incessantes carapanãs (como se chamam mosquitos de espécies diversas na Amazônia), impuseram modos de viver próprios da região; a essas condições estavam submetidos todos que ali habitavam. As habilidades para transitar e sobreviver por esse meio fizeram das populações indígenas o principal alvo dos colonizadores. Seu trabalho, o domínio de atividades essenciais, foi nevrálgico a quem pretendia se estabelecer. Como denunciou Antônio Vieira, referindo-se ao Maranhão, “captivar índios e tirar de suas veias o ouro vermelho foi sempre a mina daquele estado”. (Azevedo, 1999, p.136).
O processo de colonização incidiu de formas particulares para homens e mulheres. Àqueles era destinado o árduo trabalho como remeiros, caçadores, construtores, membros de tropas de resgates e guerras justas, chefes de povoações, dentre outros. Às mulheres, além de participar de algumas destas atividades, cabia a reprodução populacional, o cuidado com as crianças (suas e dos outros), o trato com as roças e a tecelagem. Compreendemos serem tais atividades responsáveis por uma menor mobilidade das indígenas. Elas, portanto, tiveram maior tempo de contato com as instituições coloniais às quais foram sujeitas. Como destacou Cristiane Lasmar:
As capacidades de agência das mulheres, em contraste com as dos homens, incidem sobre os domínios mais informais da vida cotidiana, nos quais se dá o processo de produção e reprodução dos corpos humanos. Além do domínio da reprodução fisiológica, podemos destacar o da produção de alimentos, da roça e da culinária — trabalhos concebidos como essencialmente femininos (Lasmar, 2008, p.431).
Se os limites para uma história indígena frequentemente se impõem, dada a documentação produzida sobre os nativos e não por estes, maiores são os desafios para a leitura do universo feminino indígena no mundo colonial. No que concerne às questões de gênero, uma interessante reflexão de Bourdieu assinala:
Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram diferenças de natureza inscritas na objetividade […] ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência (Bourdieu, 2919, p.22).
A dominação masculina naturaliza-se no ordenamento social, de forma que toda a apreensão do contexto social é perpassada por essa naturalização, construída ao longo de séculos no mundo ocidental. Essa conformação não apenas determinou as relações cotidianas, mas conduziu a escrita sobre essas relações no âmbito da ciência histórica. Os papéis destinados às mulheres frequentemente as encerravam na alçada dos serviços domésticos, o que, em contrapartida, as excluía de quaisquer atividades públicas. As mulheres foram “submetidas a um trabalho de socialização que tende a diminuí-las, a negá-las” (Ibidem, p.86).
Para Bourdieu, os mecanismos que reiteram a submissão das mulheres diante dos homens precisam ser identificados e inscritos nas instituições que os perpetuaram, bem como no seu tempo. O maior problema de realizar tal investigação se encontra na naturalidade com que a submissão vigora, trata-se de um estado de coisas que se coloca de tal maneira como neutro, que dispensa justificação (Ibidem, p. 24).
A função do feminino no mundo ocidental foi pautada pela ideia das mulheres serem autênticas “agentes de satã” (Delumeau, 2009, p.462) e essa percepção foi levada pelos colonizadores a todos os domínios para os quais se deslocavam. Uma verdadeira campanha contra as mulheres ganhou espaço, especialmente na literatura clerical, por séculos. Idólatras, muçulmanos, judeus e mulheres são elencados por Delumeau na produção religiosa como “agentes de satã”. Ao retomar a ideia de Simone de Beauvoir de que a sexualidade feminina é mistériosa mesmo para as mulheres, o autor justifica o medo das mulheres pelos que delimitaram seu papel, encerrando-as no lar, como cuidadora dos filhos e família. Também a maternidade é apontada como um mistério e os ciclos menstruais vistos como sinal de perigo e impureza. Sua forma física é condenada por atrair o sexo oposto e levá-lo a pecar.
Ligadas às forças naturais, as mulheres deveriam ser contidas, silenciadas e mesmo abatidas pelos homens a quem deveriam servir; o equilíbrio social adviria disso. Entre os séculos XIV e XVIII uma gama discursiva, especialmente cristã, difundia o que Delumeau chamou de antifeminismo agressivo. Sedução, debilidade mental, inconstância, ardilosidade, vaidade, entre outros atributos, impeliam as mulheres muito mais ao diabo do que a deus. No século XVI a ciência médica uniu-se à Igreja para referendar a incapacidade estrutural feminina, o “sexo enfermo”.
Na sociedade da Renascença, essa retórica ganha espaço no mundo jurídico. Uma legislação que pautada na noção de incapacidade, submetia-as a um tutor masculino, pai ou marido. Os ditados populares reiteravam os perigos femininos, afinal, “Mulher ri quando pode e chora quando quer” (Delumeau, 2009, p.513–514).
Iconograficamente, a representação do feminino oscilava entre Eva e Maria; esses dois polos serviam como medida do comportamento feminino. Toda essa compreensão misógina atravessou oceanos e pautou a socialização entre colonizadores e mulheres originárias.
No Brasil Colônia, o imaginário em torno do papel feminino como diabólico se reproduziu. O controle de seus corpos, da maternidade e sexualidade, passou por um ordenamento elaborado em todas as instâncias de poder. Conta Mary Del Priore (2009) que a maternidade se constituía como o ponto central do controle desses corpos. Para fora da chave “honra, recato e honestidade”, o corpo feminino poderia ser um disseminador de doenças contagiosas e dado à histeria. A reprodução de uma sociedade baseada no poder masculino pautou por séculos os papéis femininos. Além de toda estratificação social, baseada na honra, que marca o mundo colonial, o sexo feminino passava por um ordenamento próprio, pelo qual a maternidade constituía-se como a única alternativa ao controle daquelas que, naturalmente aliadas ao mal, poderiam arruinar o equilíbrio social.
Mulheres e mulheres indígenas na Historiografia
A historiografia nacional começa a dar seus passos nesse tipo de estudo. Maria Odila Leite da Silva Dias (1984) procurou reconstruir a história das mulheres, em São Paulo no século XIX, durante o processo de urbanização. A autora elencou casos pelos quais se evidenciam estratégias de resistência por parte das mulheres pobres. Na mesma linha de Soihet e Silva Dias, Mônica Pimenta Velloso (1990) estudaram as mulheres negras, de origem baiana, que recorreram a estratégias diversificadas para garantir a sobrevivência de seu grupo e cultura (Soihet, 1997, p.284).
Laura de Mello e Souza (1993) e Luiz Mott (1993), pesquisaram sobre mulheres consideradas “visionárias”, as quais, apesar da origem humilde, enfrentaram a intolerância de seu tempo, se sobressaindo e, na maioria das vezes, pagando por isso com a própria vida. Ligia Bellini (1996) consulta documentos inquisitoriais para descortinar a intimidade de mulheres homossexuais na Bahia do século XVI. Joana Maria Pedro (1995) analisa o processo de construção de imagens idealizadas de mulheres e veiculadas pela imprensa de Desterro (atualmente Florianópolis) a partir do último terço do século XIX.
As análises que se detêm especificamente sobre a representação e atuação das mulheres indígenas na Amazônia colonial portuguesa são incipientes. Destacou-se, nesse sentido, um artigo pioneiro da historiadora Marcia Eliane Alves de Souza e Mello (2005), em 2005, que contestou a conclusão de David Sweet quanto à excepcionalidade do caso de uma índia, chamada Francisca, que recorreu à Junta das Missões por sua liberdade.
O artigo de Marcia Mello, que trouxe outras trajetórias semelhantes à da índia Francisca, motivou Luma Ribeiro Prado (2017) a pesquisar as ações de liberdade, mobilizadas por uma maioria de mulheres indígenas na Amazônia do século XVIII. Vale relembrar que essas ações eram petições de indígenas à Junta das Missões, ao Conselho Ultramarino, para assegurar ou solicitar sua liberdade, com base na legislação vigente sobre escravidão. O grosso dos processos se concentra na primeira metade do século XVIII, quando a escravidão nativa era permitida, mas com ressalvas.
Conclusão
Diante do que discutimos acima, concluímos que pensar história das mulheres não significa apresentar mais uma perspectiva, mas de reorientar a perspectiva, pensá-la por ângulos que de fato compõem o pilar das vivências em contato. Trata-se de um corte vertical, que perpassava todas as relações de forma mesmo a conduzi-las.
Para realizar esse corte, não podemos deixar de pontuar, como assevera Bourdieu (2019, p.x), a maneira como os sistemas institucionais produziram de forma eficaz, com ares de neutralidade, a quase anulação das mulheres quanto à sua basilar posição na história. A dominação masculina se perpetuou sem maiores debates na historiografia. De acordo com o sociólogo, a investigação histórica sobre as mulheres deve “empenhar-se em estabelecer para cada período, o estado do sistema de agentes e das instituições […] que, com pesos e medidas diversos em diferentes momentos” se empenharam em denunciar “as relações de dominação masculina”.
Cientes da especificidade da agência de mulheres indígenas, cujo contexto é muito distinto do ocidental/europeu, interessadas em cumprir a tarefa acima, temos que dialogar com estudos antropológicos e etnológicos, que auxiliem a pensar essa agência frente à colonização.
Referências
AZEVEDO, João Lúcio de. Os Jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Belém: SECULT, 1999.
BELLINI, Lígia. A Coisa Obscura. Mulher, sodomia e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 1996.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Trad. Maria Helena Kühner. 15ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente (1300–1800): uma cidade sitiada. Trad. Maria Lucia Machado; tradução de notas Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Dentre seus estudos, pode-se ressaltar: VELLOSO, M. P. As Tias Baianas Tomam Conta do Pedaço. Revista de Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.3, n.6, 1990.
LASMAR, Cristiane. Irmã de índio, mulher de branco: Perspectivas femininas no Alto Rio Negro. Mana, v.14, n.2, 2008.
MELLO, Márcia. Desvendando outras Franciscas: mulheres cativas e as ações de liberdade na Amazônia colonial portuguesa. Portuguese Studies Review, n.13, p. 1–16, 2005.
MOTT, Luiz. Rosa Egípcia. Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
PEDRO, J. M. Nas tramas entre o público e o privado: a imprensa de Desterro no século XIX. Florianópolis: Editora da UFSC, 1995.
PRADO, Luma R. Peticionárias: demandas de mulheres cativas na Amazônia Colonial Portuguesa (século XVIII). Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017.
PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: Condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Cotidiano e poder em São Paulo o século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.
SOIHET, Rachel. “História das mulheres”. In CARDOSO, Ciro e VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da História. Ensaios de Teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997.
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico. Demonologia e colonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Autora
Blenda Cunha Moura é doutora (UFPR), mestre (UFAM) e licenciada em História (UFPR). É professora de História no Instituto Federal do Acre (IFAC), Campus Cruzeiro do Sul. É membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/IFAC) e publicou, entre outros trabalhos: Projetos integradores: conhecimento a serviço da cidadania. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4304368326000717; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7730-4799.
Para citar este texto
MOURA, Blenda Cunha. História das mulheres e das mulheres indígenas no Brasil – Breve nota bibliográfica. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.14, nov./dez., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/historia-das-mulheres-e-das-mulheres-indigenas-no-brasil-breve-nota-bibliografica-blenda-cunha-moura-ufpr-ifac/>. DOI: 10.29327/254374.3.10-12
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