Historiografia sobre o escravismo criminoso contra os africanos e seus descendentes no Brasil | Iraneide Soares da Silva (UESPI)
Resumo: Neste artigo, revisamos, especialmente, a literatura que trata do escravismo contra os africanos e seus descendentes. Aqui, comentamos as principais produções sobre o tema escravidão, tentando contemplar todas as regiões do país, analisando três vertentes interpretativas sobre a gente negra da cidade de São Luís do Maranhão.
Palavras-chave: Escravismo criminoso, Africanos, São Luís do Maranhão.
Introdução
A partir das leituras e reflexões historiográficas sobre a escravidão africana e seus descendentes no Brasil, tendo como ponto de partida a cidade de São Luís do Maranhão e sua população negra na primeira metade do século XIX, é possível identificar três vertentes principais de interpretação sobre o que chamamos de “gentes negras”. A primeira delas, busca uma visão paternalista, seguida por Gilberto Freyre.
A segunda traz uma discussão meramente econômica do escravizado, muitas vezes considerando-o como objeto, sendo seguida pelo grupo de historiadores e cientistas sociais formados na Universidade de São Paulo, incluindo nomes importantes como Caio Prado Jr. e Emília Viotti nos seus primeiros trabalhos sobre o tema.
Nessa mesma vertente, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender apresentam o conceito e modo de produção escravista colonial, buscando identificar a lógica interna de reprodução da ordem escravista, oposto ao aspecto que trata a escravidão brasileira como forma de sujeição ao processo externo de desenvolvimento do capital mercantil europeu.
A terceira vertente busca compreender o escravizado como agente de sua própria história, seguida por Silvia Lara, Sidney Chalhoub, Solange Rocha e outros. Os que seguem essa vertente propõem uma revisão historiográfica no sentido de perceber as fissuras existentes na história do Brasil e dos trabalhadores. Conforme propõe Chalhoub, o objetivo é adensar e enriquecer a produção acadêmica sobre a história dos trabalhadores no Brasil, a fim de provocar a revisão de algumas interpretações clássicas e sugerir novos caminhos de investigação.
Pode-se dizer que esse esforço intelectual e político abalou o que chamamos aqui de “paradigma da ausência”. Além disso, ameaça derrubar o muro de Berlim historiográfico decorrente do paradigma mencionado, que ainda impede o diálogo necessário entre os historiadores da escravidão e os estudiosos das práticas políticas e culturais dos trabalhadores urbanos pobres e do movimento operário.
As produções revisionistas das décadas de 1980 e 1990 criticaram à imagem do escravizado como mera mercadoria de um sistema econômico. Em vez disso, esses estudos buscaram entender o escravizado como um sujeito ativo inserido em complexas relações sociais, étnicas e culturais. Essas novas abordagens foram motivadas em grande parte pelo centenário da abolição da escravidão no Brasil em 1988, o que trouxe à tona debates e reflexões sobre o legado da escravidão na sociedade brasileira.
Muitos desses estudos foram influenciados pelo historiador inglês E. P. Thompson, cuja leitura criativa do marxismo, apoiada em amplo diálogo com antropólogos, contribuiu para a renovação do pensamento historiográfico brasileiro no que se refere aos estudos sobre a escravidão e os trabalhadores de um modo geral. Thompson defendia que a história não pode ser reduzida a uma mera sucessão de eventos econômicos, mas sim que ela é construída por meio das ações dos sujeitos históricos, que têm agência e podem transformar o mundo à sua volta.
Nessa mesma linha, a historiografia da escravidão brasileira busca hoje compreender a prática e o funcionamento da escravidão não apenas como uma forma de trabalho, mas também como um sistema sociocultural, que moldou profundamente as relações entre brancos e negros no país. Segundo Schwartz (2001), essa nova perspectiva histórica tem sido capaz de romper com paradigmas antigos e propor novas abordagens para compreender a complexidade da história brasileira.
Objetos da compaixão
Nossas leituras sobre o tema seguiram a linha clássica, primeiramente os estudos inaugurados por Gilberto Freyre, sobretudo a obra Casa Grande e Senzala, publicada em 1933 que, refutava a inferioridade do negro e sua contribuição negativa para a formação do povo brasileiro, defendida por Nina Rodrigues e Oliveira Viana. Na concepção de Freyre, o senhor era bom e o escravizado era dócil e obediente, o que acabou criando uma visão idílica de nosso passado colonial que recai sobre o mito da democracia racial no Brasil.
Essa perspectiva perpassava pela compreensão de que a base do sistema seria a “família patriarcal brasileira”, espaço onde ocorreria a miscigenação entre os grupos humanos, proposta que seria muitas vezes interpretada, devido às ambiguidades do autor, como a existência de uma escravidão branda no Brasil. Suas ideias contribuiriam fortemente para a consolidação do chamado “mito da democracia racial brasileira” e, por conseguinte, influenciariam trabalhos de autores norte-americanos, como Frank Tannenbaum e Stanley Elkins, que contrastavam a violência do escravismo norte-americano com a suposta brandura do escravismo brasileiro. [1]
Nosso caminho de pesquisa nos jornais e demais fontes encontra em Freyre contradições, pois as marcas deixadas pelos maus tratos nos trabalhadores negros não sugere amistosidade ou bem querer; comprovado aqui com os seguintes anúncios: Cristóvão fugiu há dias. Era “escravo crioulo com 24 anos, oficial de carpina, pertencente á Viriato Bandeira Duarte” “[…] bonita figura, estatura ordinária, e tem nas costas uma grande cicatriz de extensão de 4 polegadas”. Fugiu um escravo de nação angola em 1843, com 25 ou 30 anos. “[…] com signais nas costas, e no acento de ter sido há muito tempo castigado, além disso, tem no cotovelo de um braço huma cicatriz tem as pernas principalmente huma muito arquiada pelo que mete a ponta dos pés muito para dentro, a que vulgarmente se chama pé de curica”. Maria da Cruz fugiu. “[…] tem os olhos papudos, e duas grandes cicatrizes na testa, que mostram terem sido feitas com cacete”.
Esses anúncios foram publicados entre os anos de 1842 e 1844 no jornal Publicador Maranhense. A partir dos impressos naquele periódico, constatamos nos 146 anúncios de fugas analisados, que as marcas da violência estavam muito presentes no cotidiano daqueles homens e mulheres negras. Desse modo, o trabalho de Freyre nos serve para refletir sobre a força do olhar da casa grande sobre a senzala que termina fortalecendo uma ideologia que perpassa décadas, mas não atesta amistosidade entre senhor e escravizado.
Gentes negras coisificadas
Nos anos de 1950, foram produzidos alguns trabalhos pelos quais se almejavam evidenciar as relações de produção no Brasil colonial e imperial, a partir de estudos que emergissem a importância da escravidão para a acumulação de capital. Entendemos ser esta uma segunda vertente teórica de interpretação da escravidão contra os africanos e seus descendentes no Brasil. Tal vertente, analisou o trabalhador escravizado sob a perspectiva estrita do lucro. Este estudo viria a compreender e justificar a escravidão brasileira como a melhor forma de produzir e exportar produtos primários em larga escala e ao menor custo. Dessa forma, características e modos de vida no Brasil seriam resultantes do tipo de colonização imposto pela economia europeia. Assim, não seria possível explicar a situação do país por fatores outros (a exemplo do clima ou dos grupos étnicos formadores), pois o tipo de colonização que tivemos explicaria o que somos.
Conforme e Ferrari Fonseca, [2] o trabalhador escravizado então seria a força bruta, o material e elemento essencial para a realização dos trabalhos que moveriam a nossa colonização. E, na época moderna, o escravizado seria apenas uma máquina de trabalho. Para Caio Prado Jr., o escravismo foi um meio, uma oportunidade, utilizada pelos europeus para explorar comercialmente os amplos territórios e as riquezas encontradas no Novo Mundo.
Ao analisar esta segunda vertente percebe-se que o principal problema desses trabalhos é que eles concebem os escravizados como objetos, citando entre outros, como representativos dessa tendência Jacob Gorender e Fernando Henrique Cardoso. Na concepção desses estudiosos, o escravizado não tinha personalidade, pois era tão somente um mero instrumento, uma vez que a escravidão tirava sua capacidade de pensar e de se ver como pessoa, como sujeito atuante e disposto a lutar contra a sua própria condição de escravizado. Tais análises são acusadas de promover à coisificação do escravizado.
Ainda sob este prisma, temos Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender que apresentam o conceito de “modo de produção escravista colonial”, no qual detecta uma lógica interna de reprodução da ordem escravista, que se opõe a forma de tratar a escravidão brasileira, como sendo sujeição ao processo externo de desenvolvimento do capital mercantil europeu. [3]
Nessa segunda vertente, encontra-se ainda Emília Viotti da Costa. Que, embora seja uma das referências que usamos, por considerá-la obrigatória nos estudos da escravidão contra os africanos e seus descendentes no Brasil. Esta sofre uma série de críticas, sobretudo ao livro “Da senzala à Colônia, publicado pela primeira vez em 1966, quando ao tratar da transição do trabalho escravo ao livre nas áreas cafeeiras paulistas, propõe uma interpretação materialista e dialética do processo de transição do trabalho escravo ao trabalho livre. Com isso, nesta obra, a historiadora corrobora com a visão de outros ao defender que a escravidão retirava do escravizado suas tradições, sua concepção de mundo, enfim, sua humanidade.
Todavia, Viotti “avança” ao se contrapor às explicações puramente políticas sobre a abolição. Para ela, tanto a presença do imigrante branco como mão de obra quanto às mudanças nos meios de transporte (implantação das ferrovias), bem como as formas e transformações nos processos de beneficiamento do café teriam também cooperado para o fim do da escravidão. [4]
Clovis Moura, apesar da importância da sua obra e de nos referenciar, sobretudo ao tratar da resistência escrava, também pode ser considerado como pertencente a esta segunda vertente, pois ao contestar a brandura da escravidão idealizada por Freyre, estudou o escravizado a partir de suas rebeldias. Clovis Moura [5] tratou das revoltas baianas ocorridas na primeira metade do século XIX, buscando com isso caracterizar a violência do escravismo, além de analisá-la sob um prisma eminentemente econômico.
Em 1971, José Alípio Goulart publica Da palmatória ao patíbulo e analisa a difusão do medo pelo governo dos escravizados que cometessem alguns crimes. Para Goulart, eram dois principais motivos para este medo, que era o de dar satisfação ao povo e, o de amedrontar os escravizados quando estes fossem considerados criminosos.
Sobre o tema das reações ou resistência escrava, podemos citar a obra Palmares — a guerra dos escravos, escrita por Décio Freitas que, lançada em 1973 nos traz dados concretos sobre Zumbi e a formação social de Palmares. [6]
Ainda no período de afirmação da vertente da “coisificação do escravizado”, sobressaíram também as ideias da Escola Paulista de Sociologia que estudou entre outros temas a situação dos africanos e seus descendentes e os preconceitos raciais existentes no Brasil. Essa Escola era composta por nomes como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni.
Além desses autores criticarem a ideia de uma escravidão paternalista, bem como a existência de uma democracia racial, eles reforçaram a tese de que o escravizado não se via como agente histórico. Dessa forma, essas discussões vieram também fortalecer o debate em voga sobre as relações raciais.
Em síntese, a partir dos anos de 1950, foram muitos os estudos que discutiram e criticaram e contestaram as ideias de Gilberto Freyre. Na sua maioria, eram debates embasados em teorias economicistas para compreender a escravidão. Estes findavam negando ao trabalhador escravizado a sua condição de sujeito histórico, em parte responsável pela sua própria libertação ao longo de todo o período de vigência do escravismo criminoso.
No cenário internacional, nos anos de 1970, inspirado nos movimentos pelos direitos civis norte-americano, a historiografia daquela região das Américas e os estudos sobre escravidão se intensificam na busca de apontar o lugar do escravizado como sujeito histórico. Dentre as obras que representam esta ideologia está o livro A Terra Prometida — o mundo que os escravos criaram de autoria de Eugene Genovese, publicado originalmente no ano de 1974. [7]
Nesta obra, Genovese utilizou de forma inovadora para o momento brasileiro, o termo paternalismo, (conceito este, vinculada ao conceito de hegemonia de A. Gramsci), no entanto, este difere da família patriarcal defendida por Freyre nos anos de 1930 no Brasil. Genovese afirmava que o paternalismo era encarado de forma diferenciada para os escravizados e senhores. Segundo ele, para os escravizados, o paternalismo era tido como instrumento de dominação e, consequentemente, uma maneira de impedir as redes de solidariedade entre os negros como forma de estabelecer obrigações entre ambos. Portanto, para os trabalhadores escravizados, tratava-se de uma negociação para a barganha de melhores condições de sobrevivência dentro da estrutura opressora.
Gentes negras como seres de direito
A terceira das vertentes analisa o trabalhador negro escravizado na sua diversidade de condição jurídica, como um agente de sua vida, que lutava por uma vida menos oprimida, menos violenta. E para fugir da linha dura do escravismo, procurava meios para libertar-se do cativeiro.
Os anos de 1980 foram fecundos para essa linha de pensamento e despontou um grande combate à imagem do escravizado como mera mercadoria de um sistema econômico, buscando entendê-lo dentro de relações sociais, étnicas e culturais. São essas correntes novas leituras cujo início se deu perto do centenário da abolição da escravidão no Brasil como uma forma de comemoração que ainda hoje celebramos.
Resumidamente, a terceira vertente ao interpretar o escravismo no Brasil defende a existência ainda que relativa, de uma autonomia do escravizado diante da sua relação com o cativeiro; com seus algozes, nas relações de trabalho na casa e na rua; das relações e redes de solidariedade; das negociações; nas fugas e enfrentamento com a polícia. Entretanto, mesmo não agregando a categoria de “luta de classes”, procura colocá-la, mesmo em parte, entre muitos outros conflitos que existiram ao longo da existência do trabalho escravo, e dessa forma, compreender esses trabalhadores nas suas múltiplas vivências. Para esta vertente, o enfoque não está no negro escravizado como agente econômico inserido nas condições objetivas de produção, mas como sujeito, isto é, enquanto partícipe do escravismo.
Kátia Mattoso, na obra Ser Escravo no Brasil, examina como teria sido a vida do escravizado. Sua produção abrange um período extenso que vai do século XVI ao XIX com o objetivo de analisar de modo geral o escravismo, partindo do ponto de vista do escravizado. Esta autora fala sobre os motivos que levaram o escravizado a não se submeter à rigorosa disciplina do seu senhor conforme fragmento a seguir e também já citado em outro momento desse trabalho:
[…] quando o negro não consegue criar seus espaços necessários de liberdade, não encontra família, grupo, confraria, divertimento próprio, então, sim, e somente então, recusa a disciplina do trabalho e passa ao terrível domínio da repulsa, dos castigos, da revolta. [8]
A leitura desses textos, sobretudo da terceira vertente dos estudos sobre a escravidão contra africanos e seus descendentes no Brasil, nos possibilitou compreender em diversos níveis os espaços de negociações dentro das relações de escravistas conformadas na opressão que foi o processo de escravização pelo qual passou muitos homens e mulheres negras brasileiras. Compreendemos também que os escravizados, na sua sapiência, se utilizavam do escravismo para a melhoria das suas condições de vida e de uma cultura e vida familiar própria. As nossas fontes da imprensa pontuaram de forma indireta uma ação, como a africana que foi liberta por força de lei “[…] fugiu hontem tendo sabido da sua casa na praia do Caju antes das nove horas da noite, huma africana daquelles que forao libertos pela lei.”[9]
Nosso entendimento é de que a construção da liberdade pelos trabalhadores escravizados não se deu tão apenas por meio dos discursos inflamados dos abolicionistas, mas também (e principalmente) se teceu pelos próprios trabalhadores escravizados que nunca, em nenhum momento do período escravista brasileiro, aceitaram de modo passivo a escravidão. Em nossas pesquisas sobre a primeira metade do século XIX, no Maranhão, encontramos anúncios de fugas de escravizados na Província. Anúncios que nos chamaram a atenção pelo caráter que, em nosso entendimento, têm da não aceitação da escravidão pelos próprios escravizados. [10]
A extensa produção que demarca os anos de 1980 a 2000, com trabalhos publicados que versam sobre os mais diferentes aspectos da escravidão negra brasileira, atesta que os temas da economia, quilombos, rebeliões e fugas se ampliaram e deram espaços para outros, tais como os processos para obtenção de alforrias e a vida do liberto, a família escrava, a legislação sobre escravidão e a utilização desta legislação pelos escravizados, a exemplo da preta escravizada “Esperança Garcia” no Estado do Piauí; as etnicidades e identidades; as relações entre escravizados e libertos, os processos de re-escravizações e as liberdades, o cotidiano e as relações de trabalhos dos escravizados ao ganho, das ruas entre tantos outros
Ressaltamos também a importância das teses produzidas, tendo como ponto de reflexão a historiografia sobre resistência. Ao focarmos nos estudos de Maria Helena Machado da Universidade de São Paulo/USP (1991) que versa sobre criminalidade escrava nas lavouras paulistas e a de Silvia Lara no campo de Goytacazes percebemos que as autoras analisaram como a violência é abordada durante o período escravista, migrando para as relações cotidianas entre senhores e escravizados. Com isso, elas mostram que havia uma relativa negociação entre os escravizados e seus senhores para a melhoria das relações e da vida.
Assim, de certa forma, atesta-se primeiro que os senhores sabiam que uma rebelião escrava poderia lhe trazer consequências trágicas, sobretudo no tocante a sua produção. Por outro lado, os escravizados também tinham ciência da sua importância para a manutenção do capital. Logo, em alguns casos, havia abertura para negociações, ressignificada como forma de resistência de acordo com o entendimento que tivemos.
Nesta mesma linha, temos os importantes trabalhos de José Carlos Reis e Eduardo Silva (Negociação e Conflito – a resistência negra no Brasil escravista), que abordam o tema da resistência escrava no contexto das sociedades baianas e fluminenses. Em seguida, Sidney Chalhoub desponta com Visões de liberdade em que analisou as últimas décadas da escravidão e o seu declínio na corte. Nesta obra, Chalhoub dá ênfase aos diferentes entendimentos da liberdade por parte dos senhores e dos escravizados.
Concordamos com a perspectiva de Silvia Lara, Maria Helena Machado e Sidney Chalhoub, no que tange a considerar os trabalhadores negros como sujeitos históricos ativos e também, a prática de fugas como forma de resistência. Todavia, não verificamos nas fontes pesquisadas, negociações, nem por partes dos escravizados, nem pelos senhores, na linha de Reis e Silva, mesmo sabendo que empiricamente isso ocorria.
Consideramos de grande relevância a vasta produção acadêmica sobre a escravidão contra os africanos e seus descendentes no Brasil. Este trabalho não apenas acata, como se serve de muitas das reflexões teóricas e metodológicas, principalmente na linha que busca recuperar a experiência histórica dos trabalhadores escravizados e libertos, e os sentidos políticos de seus atos e modos de viver, como atestam João José Reis, Sidney Chalhoub, Leila Algranti, Silvia Lara. [11]
Das vertentes aos espaços de abrangência
Ressaltamos que, embora seja ampla a produção acadêmica sobre o tema escravidão contra os africanos e seus descendentes no Brasil império, colônia e república, com expressão nacional e internacional, na sua maioria, se limitam às regiões sudeste, nordeste (Bahia e Pernambuco), ficando o resto do país com uma produção tímida ou inexpressiva.
Nossas pesquisas nesse campo, produzidas sobre a província do Maranhão, especialmente com os trabalhadores negros da capital, São Luís, se soma às teses de Antônia Mota (2007); Josenildo Pereira (2007); Regia Agostinho (2013) entre outras dissertações de mestrado.
No contexto do Nordeste brasileiro, tem se produzido algumas pesquisas que merecem destaque e nos inspira por caminhar dentro da nossa linha teórica e metodológica. A tese de Solange Pereira da Rocha, Gente negra na Paraíba Oitocentista, produzida no âmbito do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal de Pernambuco é um desses. Sua autora inova ao traçar do universo de parte da gente negra da província da Paraíba, notadamente de mulheres e homens escravizados e não-escravizados por meio do registro de batismo.
Nesta mesma linha temos também as teses: Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba, 1860 – 1888; [12] As Representações Da Escravidão Na Imprensa Jornalística do Maranhão da Década de 1880; [13] A Athena Equatorial: a fundação de um Maranhão no império brasileiro. [14] Estes trabalhos, além da demarcação geográfica, por serem produzidas sobre a região Nordeste do Brasil, no que tange a temática da escravidão e trabalho, nos possibilitam acessar arquivos e fontes ainda pouco exploradas no Nordeste e sobre o Nordeste do Brasil. Dada a sua importância, estes somam-se aos estudos produzidas nas últimas décadas do século XX, conforme já destacamos Leila Algranti e Silvia Lara (1888); Correia (2011) e Santos (2013). Estes trabalhos são teses dos anos de 1980 aos de anos 2000 que apontam para um novo prisma a respeito da escravidão que é: “escravidão e poder no âmbito das relações”.
Conclusões
As reflexões aqui empreendidas levaram-nos a traçar um breve balanço histográfico o que nos permitiu na produção do trabalho e da pesquisa, compreender sobre a escravidão brasileira e identificar três vertentes principais de interpretação: a primeira que busca uma visão paternalista; a segunda que traz uma discussão meramente econômica do escravizado que — em linhas gerais, muitas vezes entende-o como objeto — e, por fim, a que busca compreender o escravizado como um agente de sua própria história.
Foi preciso um estudo mesmo que breve da bibliografia citada. Para tanto, tivemos que fazer escolhas e considerar as especificidades da constituição de uma cidade ao norte da região nordeste do Brasil, inserida entre o mar e rios, agraciada por uma exuberante beleza natural.
Este estudo que se encerra, foi motivado por problemas atinentes à experiência negra da cidade de São Luís do Maranhão onde nas primeiras décadas do século XIX tinha uma população estimada em trinta mil habitantes, e destes, 51% eram de africanos e seus descendentes. Nossa intenção era compreender a constituição de São Luís em conjunto com o resto do país que respiravam uma Europa mesmo nas menores províncias, e em meio a esses, conviviam com homens e mulheres negras inseridos nas categorias de escravizado enquanto objeto ou sujeitos ausentes, invisíveis. Consequentemente, era também a nossa meta enfrentar equívocos cometidos por uma historiografia mais conservadora a partir de leituras de documentos dos muitos arquivos brasileiros, insensíveis às experiências dos escravizados, enquanto sujeitos históricos na escravidão.
Vale ressaltar que ao analisar a terceira vertente dos estudos sobre a escravidão negra no Brasil pôde-se perceber que em muitos desses têm-se grande influência metodológica, sobretudo, de E. P. Thompson, historiador inglês que, embora nunca tenha estudado a escravidão do africano no Brasil, contribuiu imensamente para a renovação do pensamento historiográfico brasileiro no que diz respeito aos estudos sobre a escravidão e as classes trabalhadoras de um modo geral. Na visão de Schwartz (2001), essa nova historiografia da escravidão brasileira tenta compreender sua prática e seu funcionamento não apenas como forma de trabalho, mas também como um sistema sociocultural.
Notas
[1] Para uma melhor compreensão das ideias de Freyre veja a obra Casa Grande e Senzala desse autor e também Ricardo Benzaquém de Araújo, Guerra e Paz – Casa Grande e Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994. Frank Tannenbaum, Slave and Citizen, Nova York, 1947, e Stanley Elkins, A Problem in American Institutional and Intellectual Life, Chicago, University of Chicago Press, 1959.
[2] Ferrari; Fonseca, 2015.
[3] Pinto, 2004.
[4] Eisenberg, 1989.
[5] Moura, 1959.
[6] Freitas, 1978, p.9.
[7] Genovese, 1978.
[8] Mattoso, 2003, p. 116.
[9] Jornal Publicador Maranhense, edição n.º 34. Sábado, 12 de novembro de 1842.
[10] Chalhoub, 1990.
[11] Machado, 1987; Lara, 1988; Reis; Silva, 1989; Chalhoub, 1990.
[12] Amaral, 2007.
[13] Pereira, 2006.
Referências
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Autora
Iraneide Soares da Silva é doutora em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia/UFU e atuou como consultora da Unesco (2003/2004/2014) e do Unicef (2010). É professora do Departamento de História da Universidade Estadual do Piauí/UESPI e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cultura e Sociedade/UESPI e preside a Associação Brasileira de Pesquisadorxs Negrxs/ABPN (2022-2024). Entre outros trabalhos, publicou: Mulheres afro-atlânticas do Norte do Brasil oitocentista (2021), Breves Apontamentos Sobre a Institucionalização das Políticas Afirmativas na Universidade Estadual do Piauí (2021) e Caminhos, pegadas e memórias: uma história social do movimento negro brasileiro (2018). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/8858066888235168; ID ORCID: 0000-0001-6136-0817; E-mail: E-mail: iranegra@gmail.com.
Para citar este texto
SILVA, Iraneide Soares da. Historiografia sobre o escravismo criminoso contra os africanos e seus descendentes no Brasil. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.10, mar./abr., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/historiografia-sobre-o-escravismo-criminoso-contra-os-africanos-e-seus-descendentes-no-brasil-iraneide-soares-da-silva-ufpi/>. DOI: 10.29327/254374.3.10-12
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