Justo e verdadeiro — Resenha de Jandson Bernardo Soares (UFRN), sobre o livro “Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil?”, de Amanda Cataldo de Souza Tilio Santos

Amanda Cataldo de Souza Tilio Santos| Imagem: Linked in

Resumo: Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil? foi escrito por Amanda Cataldo de Souza Tilio Santos com o objetivo de investigar a instituição, o funcionamento e os resultados  Comissão Nacional da Verdade (CNV) brasileira. A autora declara que a iniciativa resulta da organização de um corpo legal internacional em torno dos direitos humanos, entre as décadas 70 e 80 do século passado.

Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade, Justiça de Transição, Reparação.


Publicado em 2022, momento que a autora considera de contração institucional e pressão à autocratização do Estado brasileiro, a obra Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil?, de Amanda Cataldo de Souza Tilio Santos, investiga como se deu a elaboração, atuação e resultados da Comissão Nacional da Verdade (CNV) brasileira. Diante de seu interesse pela historicidade desse processo, ela defende que essa comissão, assim como as surgidas em outros países, seria resultado do desenvolvimento e organização de um corpo legal internacional em torno dos direitos humanos na passagem dos anos 70 para os 80 do século XX, a qual forneceu os parâmetros, dentre eles o léxico e a jurisprudência, para que, em nível domiciliar, se exigisse justiça frente as graves violações dos direitos humanos no passado recente. Ao mesmo tempo, as experiências locais serviriam como forma de atualização conceitual e prática, dando as ferramentas legais, em sua formulação e prática, um caráter vivo, relacionado a cada contexto em que as lutas pela justiça se desenrolaram.

O livro é o resultado de sua dissertação de mestrado e combina conhecimento de duas áreas que fizeram parte de sua formação: as Relações Internacionais, em que é graduada, e o Direito, campo em que desenvolveu a maior parte de suas pesquisas. Organizada em três capítulos, a autora se apoiou no conceito de “comissão da verdade” como uma das manifestações da justiça de transição. Esse tipo de justiça abarcaria práticas legais relacionadas a violação dos direitos humanos, fosse em contexto doméstico ou na relação entre as nações. Constrói esse argumento a partir dos escritos de Onur Bakiner, o qual partiu da diversidade e historicidade de tais manifestações para apresentá-las como mecanismos relativamente independentes dos governos, rompendo com a ideia de que essa seria apenas resultado da vontade estatal. Ao mesmo tempo, essas seriam atravessadas por relações de poder que emergem de vários níveis, o que implica em considerar cada contexto em que essas experiências se desenvolvem, não existindo uma fórmula certa para a sua produção. Amanda Santos também se apoia na caracterização apresentada por Priscilla Hayner e Mark Freeman, a fim de perceber em quem medida a comissão brasileira se aproxima ou se distancia de outras experiências, constituindo parâmetros que tornassem possível compreender sua excepcionalidade.

É a partir desses parâmetros que a autora emprega duas categorias de documentos. Em um nível internacional, se apropria dos escritos da expedidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), relacionados aos direitos humanos, assim como do corpo legal e jurisprudência gerados pela Corte Internacional de Direitos Humano e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais tratavam de viabilizar justiça em contextos em que as nações não reconheciam ou dificultavam o acesso à reparação. No nível nacional, ela se utilizou dos documentos expedidos pelas comissões de anistia e de mortos e desaparecidos, assim como os materiais que fundamentaram a composição da CNV e seus relatórios. Essa também reafirma seu posicionamento a partir de análises sobre outras comissões da verdade, como as ocorridas na África do Sul, e nos países sul-americanos, tendo o Brasil como último país a adotar tal procedimento.

A partir desses recursos, Amanda argumenta que o fato do Brasil ter se configurado como retardatário no processo de constituição de uma justiça de transição efetiva e de uma comissão da verdade seria resulta da manutenção de um corpus político e institucional que se instalou no Estado Democrático de Direito brasileiro, pós-ditadura (1985-), que serviria para proteger os envolvidos nas graves violações de direitos humanos, pautando-se no uso das leis de Anistia como ponto de pacificação. Esse processo, teria sido responsável pelo que ela denominou de ciclo de impunidade que se estenderia do passado para o presente, justificando a manutenção da violência, principalmente entre os órgãos policiais.

Ao analisar a CNV brasileira, a autora demonstra que ela foi resultado de disputas sociais, materializadas a partir de debates realizados na Câmara Legislativa, revogando qualquer possibilidade de deslegitimação que se pautasse nas ideias de autocracia ou de seu uso para perseguição de determinados grupos políticos. Esse processo teria, de um lado, forças interessadas em fazer dessa comissão um ponto de encerramento, através do enfrentamento das violações a partir da instituição do direito a verdade e a memória, tornando o Estado responsável por descortinar o passado de violações, garantindo o acesso à verdade e a informação a respeito das vítimas, dos perpetradores e do modus operandi, assim como o zelo pela manutenção dessa memória. De outro, agentes sociais que apostavam na constituição de um direito à justiça que não se limitava ao lembrar, mas à capacidade de uma reestruturação das instâncias legais e organizacionais que pudessem julgar e punir todos os envolvidos, aspecto que era endossado pelas instituições internacionais. Tais questões refletiram diretamente na constituição do projeto de comissão implementado.

Em termos de execução, segundo a autora, a iniciativa se dissipou pelo Brasil, na medida em que a Comissão Nacional ofereceu os referenciais para a criação de comissões similares nas unidades federativas que alimentavam a versão nacional, se configurando como um cenário de colaboração para as apurações. A autora sinaliza para as inovações. A primeira seria o uso do poder coercitivo para convocar os depoentes, transformando-se em espaço de audiências para as vítimas, que puderam apresentar suas versões dos fatos. O empreendimento também deu a conhecer os envolvidos nas violações e se valeu dos meios de comunicação para apresentar suas conquistas e descobertas, favorecendo a constituição de uma imagem pública atrelada à justiça.

A comissão brasileira também contribuiu para atualizar o conceito de vítima da repressão, uma vez que identificou que nem sempre as violações se deram em virtude de questões políticas, mas tiveram em seu cerne, questões discriminatórias de viés econômico e social, as quais, segundo a autora, atingiram camponeses, indígenas, mulheres e a comunidade LGBT.

A ‘guerra’ do Araguaia contada pelos Aikewara | Imagem: Pública

A autora também demonstra como a execução da CNV foi marcada por resistências, desde a elaboração de seu documessssssssnto orientador, implicando em um recorte temporal que antecedia a Ditadura, assim como pelo curto período de tempo para realização do trabalho. Apesar de o relatório da CNV ter se configurado, a partir da orientação dos seus membros, como prova das violações, devendo servir como instrumento para as ações de justiça e novas investigações, o documento esbarrou nas resistências no campo do próprio direito brasileiro. Ela ressalta como as interpretações do Supremo Tribunal Federal (STF) à Lei de Anistia e a recusa dos órgãos do judiciário em receber as denúncias foram à contramão das orientações internacionais, corroborando com a imagem de um Brasil como paria internacional no que tange aos Direitos Humanos.

Tal processo, segundo a autora, se reforçou no governo Bolsonaro com o progressivo desengajamento à pauta dos Direitos Humanos e a aproximação de valores como família e religião. Esse também teria se dado no plano organizacional, manifesto pela desconfiguração das comissões de Mortos e desaparecidos, assim como a de Anistia, inserindo em sua composição militares e policiais que seriam favoráveis ao fim de suas atividades, sob o falso argumento de que a justiça teria sido estabelecida. Em termos ideológicos, essas mudanças culminaram com a desqualificação das vítimas, na medida em que se instituiu, a partir de um revisionismo, a concepção de que as violações teriam ocorrido de parte a parte.

A obra colabora com a reflexão a respeito do papel do conhecimento histórico para a compreensão do presente, revelando os aspectos que o estruturaram e fornece as ferramentas para a sua transformação. Para o caso em questão, a elevação das pressões em torno da revisão da lei de anistia, corroborando para que os torturadores e apoiadores da Ditadura Civil Militar Brasileira fossem levados à justiça, assim como o desenvolvimento de políticas de memória e reparação para aqueles que foram suas vítimas.

Essa aproximação ao presente também fornece reflexões a respeito do que é a justiça e como a mesma está longe de ser plenamente objetiva. Tal fato pode ser observado no texto as partir das denúncias que materializam a existência de um cenário de impunidade no Brasil pós Ditadura, configurando-se a partir da sobreposição dos interesses privados sobre o público, materializado no aparelhamento das instituições, conferindo seletividade ao campo da justiça. Também permite observar como a história do direito e de suas manifestações oferecem recursos que ampliam a complexidade das interpretações históricas, na medida em que revela as disputas e tensões por trás da elaboração das leis, de sua interpretação, mas também das práticas que de fato efetivam-se como justiça.

Vale ressaltar que a obra perde a oportunidade de desenvolver algumas reflexões que se relacionam à função terapêutica da história que, apesar de reconhecida, não estabelece diálogo com os conceitos de “memória” e “trauma” como seus correlatos. Com isso, deixou de lado uma literatura que potencializaria o texto em relação à importância da elaboração de uma História Pública da Ditadura, amparada por ações estatais capazes de barrar novas violências simbólicas. Além disso, perde, em termos potenciais, a possibilidade de se estabelecer como um trabalho de História comparada, uma vez que sinaliza a diversidade de experiências internacionais relacionadas a justiça de transição, mas que se limitam aos primeiros capítulos, deixando esse tipo de abordagem como um possível a ser seguido por outros pesquisadores.

Apesar das ausências, a obra cumpre o objetivo anunciado. Ela deve ser lida pelos historiadores porque nos leva a pensar sobre a nossa responsabilidade social diante dos problemas do tempo presente, em especial, ao papel que nossa ciência possui como suporte para a conscientização e reparação. Pensar o conhecimento histórico a partir dessa orientação representa a necessidade de reconexão entre esse conhecimento especializado e a realidade. No fim, as vezes, somos nós, historiadores, através de nossas pesquisas, que garantimos algum tipo de justiça.

Sumário Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil?

  • Apresentação
  • Introdução
  • 1. O direito internacional à verdade, as comissões da verdade e a justiça de transição
  • 1.1 A Emergência do direito internacional à verdade
  • 1.2. A difusão internacional das comissões da verdade no âmbito da justiça transicional
  • 1.3. As comissões da verdade e sua permeabilidade política
  • 2. Um novo capítulo na justiça transicional no Brasil
  • 2.1. O debate interno sobre memória, verdade, justiça PNDH-3
  • 2.2. O sistema Interamericano e o Caso Gomes Lund e Outros vs Brasil
  • 2.3. O processo de instituição da Comissão Nacional da Verdade (CNV)
  • 3. Comissão Nacional da Verdade: verdade tardia, impunidade perpétua
  • 3.1. Uma análise normativa sob o prisma da lei n.° 12.528/11
  • 3.2. O funcionamento da CNV: desafios e avanços
  • 3.3. O relatório final da CNV: principais aportes ao direito à verdade e à justiça
  • 3.4. Uma verdade entre outras? A recepção do relatório final da CNV
  • Conclusão
  • Referências bibliográficas

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Jandson Bernardo Soares – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021); História e Espaços do Ensino: historiografia; PNLD e a busca por um livro didático ideal ; A institucionalização do livro didático no Brasil; e, Produzindo livros didáticos de História : prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento. ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: jandson_ze@hotmail.com.


Para citar esta resenha

SANTOS, Amanda Cataldo de Souza Tilio. Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil? Belo Horizonte: Initia Via, 2022. 231p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Justa e verdadeira. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.12, jul./ago., 2023. Disponível em <>. DOI:


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 12, jul./ago., 2023 | ISSN 2764-2666

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Justo e verdadeiro — Resenha de Jandson Bernardo Soares (UFRN), sobre o livro “Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil?”, de Amanda Cataldo de Souza Tilio Santos

Amanda Cataldo de Souza Tilio Santos| Imagem: Linked in

Resumo: Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil? foi escrito por Amanda Cataldo de Souza Tilio Santos com o objetivo de investigar a instituição, o funcionamento e os resultados  Comissão Nacional da Verdade (CNV) brasileira. A autora declara que a iniciativa resulta da organização de um corpo legal internacional em torno dos direitos humanos, entre as décadas 70 e 80 do século passado.

Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade, Justiça de Transição, Reparação.


Publicado em 2022, momento que a autora considera de contração institucional e pressão à autocratização do Estado brasileiro, a obra Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil?, de Amanda Cataldo de Souza Tilio Santos, investiga como se deu a elaboração, atuação e resultados da Comissão Nacional da Verdade (CNV) brasileira. Diante de seu interesse pela historicidade desse processo, ela defende que essa comissão, assim como as surgidas em outros países, seria resultado do desenvolvimento e organização de um corpo legal internacional em torno dos direitos humanos na passagem dos anos 70 para os 80 do século XX, a qual forneceu os parâmetros, dentre eles o léxico e a jurisprudência, para que, em nível domiciliar, se exigisse justiça frente as graves violações dos direitos humanos no passado recente. Ao mesmo tempo, as experiências locais serviriam como forma de atualização conceitual e prática, dando as ferramentas legais, em sua formulação e prática, um caráter vivo, relacionado a cada contexto em que as lutas pela justiça se desenrolaram.

O livro é o resultado de sua dissertação de mestrado e combina conhecimento de duas áreas que fizeram parte de sua formação: as Relações Internacionais, em que é graduada, e o Direito, campo em que desenvolveu a maior parte de suas pesquisas. Organizada em três capítulos, a autora se apoiou no conceito de “comissão da verdade” como uma das manifestações da justiça de transição. Esse tipo de justiça abarcaria práticas legais relacionadas a violação dos direitos humanos, fosse em contexto doméstico ou na relação entre as nações. Constrói esse argumento a partir dos escritos de Onur Bakiner, o qual partiu da diversidade e historicidade de tais manifestações para apresentá-las como mecanismos relativamente independentes dos governos, rompendo com a ideia de que essa seria apenas resultado da vontade estatal. Ao mesmo tempo, essas seriam atravessadas por relações de poder que emergem de vários níveis, o que implica em considerar cada contexto em que essas experiências se desenvolvem, não existindo uma fórmula certa para a sua produção. Amanda Santos também se apoia na caracterização apresentada por Priscilla Hayner e Mark Freeman, a fim de perceber em quem medida a comissão brasileira se aproxima ou se distancia de outras experiências, constituindo parâmetros que tornassem possível compreender sua excepcionalidade.

É a partir desses parâmetros que a autora emprega duas categorias de documentos. Em um nível internacional, se apropria dos escritos da expedidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), relacionados aos direitos humanos, assim como do corpo legal e jurisprudência gerados pela Corte Internacional de Direitos Humano e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais tratavam de viabilizar justiça em contextos em que as nações não reconheciam ou dificultavam o acesso à reparação. No nível nacional, ela se utilizou dos documentos expedidos pelas comissões de anistia e de mortos e desaparecidos, assim como os materiais que fundamentaram a composição da CNV e seus relatórios. Essa também reafirma seu posicionamento a partir de análises sobre outras comissões da verdade, como as ocorridas na África do Sul, e nos países sul-americanos, tendo o Brasil como último país a adotar tal procedimento.

A partir desses recursos, Amanda argumenta que o fato do Brasil ter se configurado como retardatário no processo de constituição de uma justiça de transição efetiva e de uma comissão da verdade seria resulta da manutenção de um corpus político e institucional que se instalou no Estado Democrático de Direito brasileiro, pós-ditadura (1985-), que serviria para proteger os envolvidos nas graves violações de direitos humanos, pautando-se no uso das leis de Anistia como ponto de pacificação. Esse processo, teria sido responsável pelo que ela denominou de ciclo de impunidade que se estenderia do passado para o presente, justificando a manutenção da violência, principalmente entre os órgãos policiais.

Ao analisar a CNV brasileira, a autora demonstra que ela foi resultado de disputas sociais, materializadas a partir de debates realizados na Câmara Legislativa, revogando qualquer possibilidade de deslegitimação que se pautasse nas ideias de autocracia ou de seu uso para perseguição de determinados grupos políticos. Esse processo teria, de um lado, forças interessadas em fazer dessa comissão um ponto de encerramento, através do enfrentamento das violações a partir da instituição do direito a verdade e a memória, tornando o Estado responsável por descortinar o passado de violações, garantindo o acesso à verdade e a informação a respeito das vítimas, dos perpetradores e do modus operandi, assim como o zelo pela manutenção dessa memória. De outro, agentes sociais que apostavam na constituição de um direito à justiça que não se limitava ao lembrar, mas à capacidade de uma reestruturação das instâncias legais e organizacionais que pudessem julgar e punir todos os envolvidos, aspecto que era endossado pelas instituições internacionais. Tais questões refletiram diretamente na constituição do projeto de comissão implementado.

Em termos de execução, segundo a autora, a iniciativa se dissipou pelo Brasil, na medida em que a Comissão Nacional ofereceu os referenciais para a criação de comissões similares nas unidades federativas que alimentavam a versão nacional, se configurando como um cenário de colaboração para as apurações. A autora sinaliza para as inovações. A primeira seria o uso do poder coercitivo para convocar os depoentes, transformando-se em espaço de audiências para as vítimas, que puderam apresentar suas versões dos fatos. O empreendimento também deu a conhecer os envolvidos nas violações e se valeu dos meios de comunicação para apresentar suas conquistas e descobertas, favorecendo a constituição de uma imagem pública atrelada à justiça.

A comissão brasileira também contribuiu para atualizar o conceito de vítima da repressão, uma vez que identificou que nem sempre as violações se deram em virtude de questões políticas, mas tiveram em seu cerne, questões discriminatórias de viés econômico e social, as quais, segundo a autora, atingiram camponeses, indígenas, mulheres e a comunidade LGBT.

A ‘guerra’ do Araguaia contada pelos Aikewara | Imagem: Pública

A autora também demonstra como a execução da CNV foi marcada por resistências, desde a elaboração de seu documessssssssnto orientador, implicando em um recorte temporal que antecedia a Ditadura, assim como pelo curto período de tempo para realização do trabalho. Apesar de o relatório da CNV ter se configurado, a partir da orientação dos seus membros, como prova das violações, devendo servir como instrumento para as ações de justiça e novas investigações, o documento esbarrou nas resistências no campo do próprio direito brasileiro. Ela ressalta como as interpretações do Supremo Tribunal Federal (STF) à Lei de Anistia e a recusa dos órgãos do judiciário em receber as denúncias foram à contramão das orientações internacionais, corroborando com a imagem de um Brasil como paria internacional no que tange aos Direitos Humanos.

Tal processo, segundo a autora, se reforçou no governo Bolsonaro com o progressivo desengajamento à pauta dos Direitos Humanos e a aproximação de valores como família e religião. Esse também teria se dado no plano organizacional, manifesto pela desconfiguração das comissões de Mortos e desaparecidos, assim como a de Anistia, inserindo em sua composição militares e policiais que seriam favoráveis ao fim de suas atividades, sob o falso argumento de que a justiça teria sido estabelecida. Em termos ideológicos, essas mudanças culminaram com a desqualificação das vítimas, na medida em que se instituiu, a partir de um revisionismo, a concepção de que as violações teriam ocorrido de parte a parte.

A obra colabora com a reflexão a respeito do papel do conhecimento histórico para a compreensão do presente, revelando os aspectos que o estruturaram e fornece as ferramentas para a sua transformação. Para o caso em questão, a elevação das pressões em torno da revisão da lei de anistia, corroborando para que os torturadores e apoiadores da Ditadura Civil Militar Brasileira fossem levados à justiça, assim como o desenvolvimento de políticas de memória e reparação para aqueles que foram suas vítimas.

Essa aproximação ao presente também fornece reflexões a respeito do que é a justiça e como a mesma está longe de ser plenamente objetiva. Tal fato pode ser observado no texto as partir das denúncias que materializam a existência de um cenário de impunidade no Brasil pós Ditadura, configurando-se a partir da sobreposição dos interesses privados sobre o público, materializado no aparelhamento das instituições, conferindo seletividade ao campo da justiça. Também permite observar como a história do direito e de suas manifestações oferecem recursos que ampliam a complexidade das interpretações históricas, na medida em que revela as disputas e tensões por trás da elaboração das leis, de sua interpretação, mas também das práticas que de fato efetivam-se como justiça.

Vale ressaltar que a obra perde a oportunidade de desenvolver algumas reflexões que se relacionam à função terapêutica da história que, apesar de reconhecida, não estabelece diálogo com os conceitos de “memória” e “trauma” como seus correlatos. Com isso, deixou de lado uma literatura que potencializaria o texto em relação à importância da elaboração de uma História Pública da Ditadura, amparada por ações estatais capazes de barrar novas violências simbólicas. Além disso, perde, em termos potenciais, a possibilidade de se estabelecer como um trabalho de História comparada, uma vez que sinaliza a diversidade de experiências internacionais relacionadas a justiça de transição, mas que se limitam aos primeiros capítulos, deixando esse tipo de abordagem como um possível a ser seguido por outros pesquisadores.

Apesar das ausências, a obra cumpre o objetivo anunciado. Ela deve ser lida pelos historiadores porque nos leva a pensar sobre a nossa responsabilidade social diante dos problemas do tempo presente, em especial, ao papel que nossa ciência possui como suporte para a conscientização e reparação. Pensar o conhecimento histórico a partir dessa orientação representa a necessidade de reconexão entre esse conhecimento especializado e a realidade. No fim, as vezes, somos nós, historiadores, através de nossas pesquisas, que garantimos algum tipo de justiça.

Sumário Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil?

  • Apresentação
  • Introdução
  • 1. O direito internacional à verdade, as comissões da verdade e a justiça de transição
  • 1.1 A Emergência do direito internacional à verdade
  • 1.2. A difusão internacional das comissões da verdade no âmbito da justiça transicional
  • 1.3. As comissões da verdade e sua permeabilidade política
  • 2. Um novo capítulo na justiça transicional no Brasil
  • 2.1. O debate interno sobre memória, verdade, justiça PNDH-3
  • 2.2. O sistema Interamericano e o Caso Gomes Lund e Outros vs Brasil
  • 2.3. O processo de instituição da Comissão Nacional da Verdade (CNV)
  • 3. Comissão Nacional da Verdade: verdade tardia, impunidade perpétua
  • 3.1. Uma análise normativa sob o prisma da lei n.° 12.528/11
  • 3.2. O funcionamento da CNV: desafios e avanços
  • 3.3. O relatório final da CNV: principais aportes ao direito à verdade e à justiça
  • 3.4. Uma verdade entre outras? A recepção do relatório final da CNV
  • Conclusão
  • Referências bibliográficas

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Jandson Bernardo Soares – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021); História e Espaços do Ensino: historiografia; PNLD e a busca por um livro didático ideal ; A institucionalização do livro didático no Brasil; e, Produzindo livros didáticos de História : prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento. ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: jandson_ze@hotmail.com.


Para citar esta resenha

SANTOS, Amanda Cataldo de Souza Tilio. Comissão Nacional da Verdade: o último capítulo da justiça de transição no Brasil? Belo Horizonte: Initia Via, 2022. 231p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Justa e verdadeira. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.12, jul./ago., 2023. Disponível em <>. DOI:


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 12, jul./ago., 2023 | ISSN 2764-2666

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