Lembrança e conflito – Resenha de Fernando Sá (UFS) sobre o livro “Memória coletiva e justiça social”, de Myrin Sepúlveda dos Santos

Myrian Sepulveda dos Santos em 2012 | Imagem: YouTube

Resumo: Em Memória Coletiva e Justiça Social, de Myrian Sepúlveda dos Santos, discute-se como as memórias coletivas fomentam disputas políticas e demandam reparação. O livro objetiva relacionar memória e justiça social em diferentes situações omunicativas. As críticas apontam as contribuições da obra para o campo interdisciplinar e sólido da Memória Social.

Palavras-chave: memória coletiva; justiça social; movimentos sociais.


O recente livro Memória Coletiva e Justiça Social (2021), organizado por Myrian Sepúlveda dos Santos, compila textos que dialogam com uma nova percepção da temporalidade, o presentismo, como catalisador para novas abordagens teóricas. Seu objetivo é problematizar os conflitos políticos engendrados pela memória coletiva em movimentos sociais, políticas públicas e lugares materiais de memória.

No Brasil, a trajetória intelectual de Myrian Sepúlveda dos Santos é referencial para se compreender o boom dos estudos da memória, forjado no final do século XX e desenvolvido nas primeiras décadas do século XXI. Falecida recentemente, Santos era doutora em Sociologia e atuava como professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O pioneirismo dos seus estudos sobre a memória coletiva, nos anos 1990, está registrado em artigos nas revistas Dados Revista Brasileira de Ciências Sociais, e livros, como Memória coletiva e Teoria Social (2003) e Memória Coletiva e Identidade Nacional (2013). Memória Coletiva e Justiça Social é o fechamento dessa trilogia.

Inspirando-se nas reflexões benjaminianas da distinção entre memória involuntária e memória voluntária, a pesquisadora discute a questão da memória e desigualdade social, tendo como interlocutores as obras de M. Halbwachs, E. Hobsbawm, T. Ranger e Michel Pollak, J. Habermas, A. Giddens, U. Beck e P. Bourdieu, fundamentais para as reflexões sobre memórias coletivas nas últimas décadas do século XX. Ao mesmo tempo, as críticas de F. Nietzsche, M. Foucault e J. Derrida quanto aos usos e abusos da história serviram de contraponto para ampliar a percepção da instabilidade no conhecimento do passado.

Aliás, um ponto de partida para se compreender a memória da ditadura empresarial-militar no Brasil contemporâneo, tema de dois capítulos, que, apesar de ser bastante trabalhada nos meios acadêmicos, alcança “pequena repercussão na população” (p.35). Por isso, a formação de arquivos e museus sobre o período está inserida nas batalhas da memória, travada “entre memórias coletivas dominantes e dissidentes que competem pela aceitação social” (Winn, 2014, p.15).

Dentre as iniciativas da sociedade civil criadas antes do processo de abertura democrática, foram destacados o Projeto Brasil Nunca Mais, o Comitê Brasileiro de Anistia (CBA) e o Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM), que exerceram e exercem “um papel fundamental na denúncia de perseguições, torturas, prisões e assassinatos ocorridos em unidades militares, delegacias e locais clandestinos”, constituindo-se em acervos incontornáveis para que não se esqueça das atrocidades da ditadura empresarial-militar (p.41).

Do ponto de vista do Estado, a publicação do livro Direito à memória e à verdade, pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (2007), Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), o projeto Marcas da Memória, vinculado ao Ministério da Justiça, e o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que são marcos memoriais da justiça de transição, descontinuados com o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Roussef, em 2016, e a eleição e governo de Jair Bolsonaro, em 2018, resultando na “tentativa de apagamento e falsificação do passado” por parte de movimentos conservadores radicais (p. 39). Neste governo de extrema-direita, apesar da não desmontagem da estrutura das comissões de reparação, nomeou membros que construíram uma contra-narrativa baseada na valorização do regime militar.

Contrapondo-se a essa instrumentalização do passado, foi citado o papel do Instituto Vladimir Herzog, criado em 2009, para o registro dos testemunhos das violações de direitos humanos durante a ditadura empresarial-militar, proporcionando que “uma determinada construção do passado permaneça viva e não seja esquecida”, comprometida com “a luta pelos valores da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão” (p.53-54).

Essa luta contra as falsificações da história, contudo, não tem conseguido se materializar, suficientemente, em instituições museais, sendo o Memorial da Resistência, em São Paulo, o único a ocupar um prédio do DEOPS, lugar de tortura e de memória, cuja institucionalização evidenciou “não só um enfrentamento com militares para que a memória das violações pudesse ter lugar, mas também uma disputa interna pelo significado a ser recuperado das lutas do passado e de sua relação com o presente” (p.68). Tragicamente, outras iniciativas não vingaram pela ausência do apoio necessário do Estado, como os projetos do Memorial da Anistia, em Belo Horizonte, e do Memorial da Luta pela Justiça, em São Paulo, demonstrando o descompasso com outros países da América Latina, que estabeleceram uma política estatal de memória para a defesa da democracia.

Não podemos esquecer o papel da literatura de testemunho para evitar o apagamento das torturas, mortes e ocultação de cadáveres do período ditatorial, destacando-se os livros de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui (2015), e de Bernardo Kucinski, K: relato de uma busca (2011), bem como a memória da ancestralidade, como no livro de Itamar Vieira Júnior, em Torto Arado (2019). Estes trabalhos articulam as memórias individual e coletiva, essas narrativas evidenciam a continuidade histórica da violência estatal contra setores dissidentes e marginalizados na sociedade brasileira, trazendo a necessária disputa narrativa em torno das heranças da escravidão e da ditadura empresarial-militar.

Nesse diapasão, a memória afro-brasileira foi retratada a partir dos “equipamentos culturais relacionados ao patrimônio e aos museus (…) estabelecidos a partir de disputas ocorridas entre Estado, mercado e movimentos sociais” (p.93). Dentro desse processo de visibilização do passado afro-brasileiro, Myrian Santos e Gabriel da S. Vidal Cid elenca os tombamentos, em 1984, da Pedra do Sal, no Rio de Janeiro, e da Serra da Barriga, em Alagoas, localidade onde se situava o Quilombo dos Palmares, e do Terreiro da Casa Branca, em 1985.

Contudo, “há um grande vazio nas políticas de tombamento no que tange aos bens da memória afro-brasileira”. Só para se ter uma ideia dos “3.500 museus presentes no Cadastro Nacional de Museus, encontramos aproximadamente o pequeno número de 30 dedicados aos afrodescendentes”. Mesmo com o avanço das políticas de preservação de negros e afrodescendentes durante os governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), “as narrativas históricas dos museus nacionais ainda apresentam ao público em tempos atuais um país definido por uma história linear rumo à civilização, concebida nos moldes da Europa Ocidental” (p.101, 103 e 112).

Já o capítulo escrito em parceria com Maurício Barros de Castro trata das iniciativas de Abdias do Nascimento em torno da criação do Teatro Experimental do Negro (1944) e do Museu de Arte Negra, que deram visibilidade a artistas negros, geralmente ignorados pelo grande público e pela história da arte. Sob a influência das ideias de Négritude e dos pan-africanistas, Abdias do Nascimento constituiu um acervo de pinturas analisado pelos autores, a partir do material disponível no site do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros. Vale ressaltar que o museu “abriga obras de arte moderna e contemporânea, de artistas negros, brancos e de diversas nacionalidades, mas que tem um eixo principal a afirmação do protagonismo da estética negra para a formação da arte moderna ocidental”, “rompendo definitivamente com o discurso de ‘autonomia’ das poéticas frente à realidade social e, no caso, à luta contra o racismo” (p.129).

Como apontaram Aleida e Jan Assmann, as memórias “coletivas que se reproduzem a partir de suportes mediáticos requerem a democratização de todos os seus processos, da produção à seleção e disseminação de seus conteúdos” (p. 37). Para essa discussão, a organizadora tomou, como estudo de caso, o Museu Afrodigital Rio de Janeiro, iniciado em 2009, coordenado pelo pesquisador Lívio Sansone (UFBA), em colaboração com instituições internacionais, como o Arquivo Histórico de Moçambique, e nacionais como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A digitalização e disponibilização de imagens e textos referentes às culturas afro-brasileiras e africana, no ambiente digital, sofreram percalços com relação ao financiamento, especialmente quanto à equipe técnica e ao sistema de computadores com processadores e bancos de memória. Mesmo assim, a multiplicação de imaginários coletivos diversificados, por parte das novas tecnologias de comunicação e informação, possibilita a visibilização de setores silenciados da sociedade.

Outro conjunto de textos discorre sobre o patrimônio prisional e o testemunho da experiência pandêmica no Brasil. Sobre o primeiro tema, escrito com Viviane Trindade Borges, a categoria, considerada patrimônio difícil, encontra-se ainda em construção nas discussões sobre o patrimônio cultural. Por serem entendidos como lugares incômodos, nem sempre as narrativas dos poucos museus existentes no Brasil, como o Museu Penitenciário Paulista, “fazem justiça às coerções e arbitrariedades que são reproduzidas institucionalmente”, apresentando um “passado idealizado, narrado de forma evolutiva e elogiosa”, o que impede da prisão “ser percebida como um problema do presente, criando uma memória-fetiche que tece a prisão como algo à parte” (p.89, 82 e 83).

Essa situação é agravada pela tentativa sistemática de apagamento de traços do passado prisional, especialmente em complexos penitenciários que foram palco de chacinas e violações humanitárias, como o Instituto Penal Cândido Mendes (1994), Carandiru (2002) e Complexo Frei Caneca (2007). Todavia, as novas formas de escrita, exposição e arte, como as fotografias de Pedro Logo e André Cyriano ou as performances de Berna Reale,

“procuram, através da construção da memória, expor os sentimentos de crueldade e vingança que estão presentes em instituições carcerárias contemporâneas e impedem que suas práticas sejam apropriadas para fins de consumo e sensacionalismo” (p. 91).

Presos penduraram faixa demonstrando luto no Carandiru, três dias após o massacre ocorrido no local | Foto: Itamar

Por fim, Paulo Gajanigo e Rogério Souza refletiram sobre a construção da memória cultural e dos testemunhos, a partir “do trauma da experiência da pandemia”, tendo como ferramenta uma rede social (Facebook). Segundo os autores, os “relatos diários comuns nos permitem entrar em contato com a forma como as pessoas vivem esse evento, como elaboram, como sentem, sob qual ritmo e ambiente vivem”. Essa tentativa de memorização serviu para o enfrentamento da ação genocida e negacionista do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), no sentido de que a escrita no auge do momento aparece como uma “medida profilática” com relação ao trauma (p.165, 171 e 170).

Por meio de diversificados suportes de memória, os capítulos sintetizam a matriz complexa de sofrimento, ativismo político, reivindicações de indenização, pesquisa científica, reflexão filosófica, artística e a virada culturalista nos estudos históricos (Winter, 2006), refletindo como as “memórias deixaram de estar associadas à procura da revelação de um passado verdadeiro e se voltaram para a produção de solidariedade e justiça”, em cujas “práticas de reparação e justiça passado e presente se entrelaçam” (p. 11 e 12).

Este livro organizado por Myrian Sepúlveda dos Santos, ao cumprir os objetivos propostos, demonstra de forma cabal a existência de um campo de pesquisa interdisciplinar consolidado e institucionalizado dos estudos de memória social. Este campo é demarcado pela transição da “memória coletiva” para a “sociologia histórica das práticas memoriais” (Olick; Robins, 1998). É, portanto, leitura básica para especialistas no binômio explicitado pelo título: memória e justiça social.

Referências

OLICK, Jeffrey K. and ROBBINS, Joyce. Social Memory Studies: From ‘Collective Memory’ to the Historical Sociology of Mnemonic Practices. Annual Review of Sociology, v.24, p.105-140, 1998.

WINN, Peter (editor). No hay mañana sin ayer: Batallas por la memoria histórica en el Cono Sur. Santiago: LOM Ediciones, 2014.

WINTER, Jay. A geração da memória: reflexões sobre o “boom da memória” nos estudos contemporâneos de história. In: SELIGMAN-SILVA, Márcio (org.). Palavra e Imagem, Memória e Escritura. Chapecó: Argos, 2006. p.67-90.

Sumário de Memória coletiva e justiça social


Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá é doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança – Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: fernandosa1965@gmail.com.


Para citar esta resenha

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos (org.) Memória Coletiva e Justiça Social. São Paulo: Garamond, 2021. 204p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Lembrança e conflito. Resenha Crítica. Natal, v.4, n.20, nov./dez. 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/lembranca-e-conflito-resenha-de-fernando-sa-ufs-sobre-o-livro-memoria-coletiva-e-justica-social-de-myrin-sepulveda-dos-santos/>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.20, nov./dez., 2024 | ISSN 2764-2666

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Lembrança e conflito – Resenha de Fernando Sá (UFS) sobre o livro “Memória coletiva e justiça social”, de Myrin Sepúlveda dos Santos

Myrian Sepulveda dos Santos em 2012 | Imagem: YouTube

Resumo: Em Memória Coletiva e Justiça Social, de Myrian Sepúlveda dos Santos, discute-se como as memórias coletivas fomentam disputas políticas e demandam reparação. O livro objetiva relacionar memória e justiça social em diferentes situações omunicativas. As críticas apontam as contribuições da obra para o campo interdisciplinar e sólido da Memória Social.

Palavras-chave: memória coletiva; justiça social; movimentos sociais.


O recente livro Memória Coletiva e Justiça Social (2021), organizado por Myrian Sepúlveda dos Santos, compila textos que dialogam com uma nova percepção da temporalidade, o presentismo, como catalisador para novas abordagens teóricas. Seu objetivo é problematizar os conflitos políticos engendrados pela memória coletiva em movimentos sociais, políticas públicas e lugares materiais de memória.

No Brasil, a trajetória intelectual de Myrian Sepúlveda dos Santos é referencial para se compreender o boom dos estudos da memória, forjado no final do século XX e desenvolvido nas primeiras décadas do século XXI. Falecida recentemente, Santos era doutora em Sociologia e atuava como professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O pioneirismo dos seus estudos sobre a memória coletiva, nos anos 1990, está registrado em artigos nas revistas Dados Revista Brasileira de Ciências Sociais, e livros, como Memória coletiva e Teoria Social (2003) e Memória Coletiva e Identidade Nacional (2013). Memória Coletiva e Justiça Social é o fechamento dessa trilogia.

Inspirando-se nas reflexões benjaminianas da distinção entre memória involuntária e memória voluntária, a pesquisadora discute a questão da memória e desigualdade social, tendo como interlocutores as obras de M. Halbwachs, E. Hobsbawm, T. Ranger e Michel Pollak, J. Habermas, A. Giddens, U. Beck e P. Bourdieu, fundamentais para as reflexões sobre memórias coletivas nas últimas décadas do século XX. Ao mesmo tempo, as críticas de F. Nietzsche, M. Foucault e J. Derrida quanto aos usos e abusos da história serviram de contraponto para ampliar a percepção da instabilidade no conhecimento do passado.

Aliás, um ponto de partida para se compreender a memória da ditadura empresarial-militar no Brasil contemporâneo, tema de dois capítulos, que, apesar de ser bastante trabalhada nos meios acadêmicos, alcança “pequena repercussão na população” (p.35). Por isso, a formação de arquivos e museus sobre o período está inserida nas batalhas da memória, travada “entre memórias coletivas dominantes e dissidentes que competem pela aceitação social” (Winn, 2014, p.15).

Dentre as iniciativas da sociedade civil criadas antes do processo de abertura democrática, foram destacados o Projeto Brasil Nunca Mais, o Comitê Brasileiro de Anistia (CBA) e o Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM), que exerceram e exercem “um papel fundamental na denúncia de perseguições, torturas, prisões e assassinatos ocorridos em unidades militares, delegacias e locais clandestinos”, constituindo-se em acervos incontornáveis para que não se esqueça das atrocidades da ditadura empresarial-militar (p.41).

Do ponto de vista do Estado, a publicação do livro Direito à memória e à verdade, pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (2007), Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), o projeto Marcas da Memória, vinculado ao Ministério da Justiça, e o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que são marcos memoriais da justiça de transição, descontinuados com o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Roussef, em 2016, e a eleição e governo de Jair Bolsonaro, em 2018, resultando na “tentativa de apagamento e falsificação do passado” por parte de movimentos conservadores radicais (p. 39). Neste governo de extrema-direita, apesar da não desmontagem da estrutura das comissões de reparação, nomeou membros que construíram uma contra-narrativa baseada na valorização do regime militar.

Contrapondo-se a essa instrumentalização do passado, foi citado o papel do Instituto Vladimir Herzog, criado em 2009, para o registro dos testemunhos das violações de direitos humanos durante a ditadura empresarial-militar, proporcionando que “uma determinada construção do passado permaneça viva e não seja esquecida”, comprometida com “a luta pelos valores da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão” (p.53-54).

Essa luta contra as falsificações da história, contudo, não tem conseguido se materializar, suficientemente, em instituições museais, sendo o Memorial da Resistência, em São Paulo, o único a ocupar um prédio do DEOPS, lugar de tortura e de memória, cuja institucionalização evidenciou “não só um enfrentamento com militares para que a memória das violações pudesse ter lugar, mas também uma disputa interna pelo significado a ser recuperado das lutas do passado e de sua relação com o presente” (p.68). Tragicamente, outras iniciativas não vingaram pela ausência do apoio necessário do Estado, como os projetos do Memorial da Anistia, em Belo Horizonte, e do Memorial da Luta pela Justiça, em São Paulo, demonstrando o descompasso com outros países da América Latina, que estabeleceram uma política estatal de memória para a defesa da democracia.

Não podemos esquecer o papel da literatura de testemunho para evitar o apagamento das torturas, mortes e ocultação de cadáveres do período ditatorial, destacando-se os livros de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui (2015), e de Bernardo Kucinski, K: relato de uma busca (2011), bem como a memória da ancestralidade, como no livro de Itamar Vieira Júnior, em Torto Arado (2019). Estes trabalhos articulam as memórias individual e coletiva, essas narrativas evidenciam a continuidade histórica da violência estatal contra setores dissidentes e marginalizados na sociedade brasileira, trazendo a necessária disputa narrativa em torno das heranças da escravidão e da ditadura empresarial-militar.

Nesse diapasão, a memória afro-brasileira foi retratada a partir dos “equipamentos culturais relacionados ao patrimônio e aos museus (…) estabelecidos a partir de disputas ocorridas entre Estado, mercado e movimentos sociais” (p.93). Dentro desse processo de visibilização do passado afro-brasileiro, Myrian Santos e Gabriel da S. Vidal Cid elenca os tombamentos, em 1984, da Pedra do Sal, no Rio de Janeiro, e da Serra da Barriga, em Alagoas, localidade onde se situava o Quilombo dos Palmares, e do Terreiro da Casa Branca, em 1985.

Contudo, “há um grande vazio nas políticas de tombamento no que tange aos bens da memória afro-brasileira”. Só para se ter uma ideia dos “3.500 museus presentes no Cadastro Nacional de Museus, encontramos aproximadamente o pequeno número de 30 dedicados aos afrodescendentes”. Mesmo com o avanço das políticas de preservação de negros e afrodescendentes durante os governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), “as narrativas históricas dos museus nacionais ainda apresentam ao público em tempos atuais um país definido por uma história linear rumo à civilização, concebida nos moldes da Europa Ocidental” (p.101, 103 e 112).

Já o capítulo escrito em parceria com Maurício Barros de Castro trata das iniciativas de Abdias do Nascimento em torno da criação do Teatro Experimental do Negro (1944) e do Museu de Arte Negra, que deram visibilidade a artistas negros, geralmente ignorados pelo grande público e pela história da arte. Sob a influência das ideias de Négritude e dos pan-africanistas, Abdias do Nascimento constituiu um acervo de pinturas analisado pelos autores, a partir do material disponível no site do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros. Vale ressaltar que o museu “abriga obras de arte moderna e contemporânea, de artistas negros, brancos e de diversas nacionalidades, mas que tem um eixo principal a afirmação do protagonismo da estética negra para a formação da arte moderna ocidental”, “rompendo definitivamente com o discurso de ‘autonomia’ das poéticas frente à realidade social e, no caso, à luta contra o racismo” (p.129).

Como apontaram Aleida e Jan Assmann, as memórias “coletivas que se reproduzem a partir de suportes mediáticos requerem a democratização de todos os seus processos, da produção à seleção e disseminação de seus conteúdos” (p. 37). Para essa discussão, a organizadora tomou, como estudo de caso, o Museu Afrodigital Rio de Janeiro, iniciado em 2009, coordenado pelo pesquisador Lívio Sansone (UFBA), em colaboração com instituições internacionais, como o Arquivo Histórico de Moçambique, e nacionais como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A digitalização e disponibilização de imagens e textos referentes às culturas afro-brasileiras e africana, no ambiente digital, sofreram percalços com relação ao financiamento, especialmente quanto à equipe técnica e ao sistema de computadores com processadores e bancos de memória. Mesmo assim, a multiplicação de imaginários coletivos diversificados, por parte das novas tecnologias de comunicação e informação, possibilita a visibilização de setores silenciados da sociedade.

Outro conjunto de textos discorre sobre o patrimônio prisional e o testemunho da experiência pandêmica no Brasil. Sobre o primeiro tema, escrito com Viviane Trindade Borges, a categoria, considerada patrimônio difícil, encontra-se ainda em construção nas discussões sobre o patrimônio cultural. Por serem entendidos como lugares incômodos, nem sempre as narrativas dos poucos museus existentes no Brasil, como o Museu Penitenciário Paulista, “fazem justiça às coerções e arbitrariedades que são reproduzidas institucionalmente”, apresentando um “passado idealizado, narrado de forma evolutiva e elogiosa”, o que impede da prisão “ser percebida como um problema do presente, criando uma memória-fetiche que tece a prisão como algo à parte” (p.89, 82 e 83).

Essa situação é agravada pela tentativa sistemática de apagamento de traços do passado prisional, especialmente em complexos penitenciários que foram palco de chacinas e violações humanitárias, como o Instituto Penal Cândido Mendes (1994), Carandiru (2002) e Complexo Frei Caneca (2007). Todavia, as novas formas de escrita, exposição e arte, como as fotografias de Pedro Logo e André Cyriano ou as performances de Berna Reale,

“procuram, através da construção da memória, expor os sentimentos de crueldade e vingança que estão presentes em instituições carcerárias contemporâneas e impedem que suas práticas sejam apropriadas para fins de consumo e sensacionalismo” (p. 91).

Presos penduraram faixa demonstrando luto no Carandiru, três dias após o massacre ocorrido no local | Foto: Itamar

Por fim, Paulo Gajanigo e Rogério Souza refletiram sobre a construção da memória cultural e dos testemunhos, a partir “do trauma da experiência da pandemia”, tendo como ferramenta uma rede social (Facebook). Segundo os autores, os “relatos diários comuns nos permitem entrar em contato com a forma como as pessoas vivem esse evento, como elaboram, como sentem, sob qual ritmo e ambiente vivem”. Essa tentativa de memorização serviu para o enfrentamento da ação genocida e negacionista do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), no sentido de que a escrita no auge do momento aparece como uma “medida profilática” com relação ao trauma (p.165, 171 e 170).

Por meio de diversificados suportes de memória, os capítulos sintetizam a matriz complexa de sofrimento, ativismo político, reivindicações de indenização, pesquisa científica, reflexão filosófica, artística e a virada culturalista nos estudos históricos (Winter, 2006), refletindo como as “memórias deixaram de estar associadas à procura da revelação de um passado verdadeiro e se voltaram para a produção de solidariedade e justiça”, em cujas “práticas de reparação e justiça passado e presente se entrelaçam” (p. 11 e 12).

Este livro organizado por Myrian Sepúlveda dos Santos, ao cumprir os objetivos propostos, demonstra de forma cabal a existência de um campo de pesquisa interdisciplinar consolidado e institucionalizado dos estudos de memória social. Este campo é demarcado pela transição da “memória coletiva” para a “sociologia histórica das práticas memoriais” (Olick; Robins, 1998). É, portanto, leitura básica para especialistas no binômio explicitado pelo título: memória e justiça social.

Referências

OLICK, Jeffrey K. and ROBBINS, Joyce. Social Memory Studies: From ‘Collective Memory’ to the Historical Sociology of Mnemonic Practices. Annual Review of Sociology, v.24, p.105-140, 1998.

WINN, Peter (editor). No hay mañana sin ayer: Batallas por la memoria histórica en el Cono Sur. Santiago: LOM Ediciones, 2014.

WINTER, Jay. A geração da memória: reflexões sobre o “boom da memória” nos estudos contemporâneos de história. In: SELIGMAN-SILVA, Márcio (org.). Palavra e Imagem, Memória e Escritura. Chapecó: Argos, 2006. p.67-90.

Sumário de Memória coletiva e justiça social


Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá é doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança – Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: fernandosa1965@gmail.com.


Para citar esta resenha

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos (org.) Memória Coletiva e Justiça Social. São Paulo: Garamond, 2021. 204p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Lembrança e conflito. Resenha Crítica. Natal, v.4, n.20, nov./dez. 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/lembranca-e-conflito-resenha-de-fernando-sa-ufs-sobre-o-livro-memoria-coletiva-e-justica-social-de-myrin-sepulveda-dos-santos/>.

 


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