Luta e liberdade – Resenha de Tiago Rodrigues Souza (SEC-BA/Uneb) sobre “Quilombos: resistência ao escravismo”, de Clóvis Moura

Clóvis Moura| Imagem: Outras Mídias

ResumoQuilombos: Resistência ao escravismo, de Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003), explora os significados de quilombos as formas de organização social e política e as estratégias de resistência de Palmares. Lançada em segunda edição, no ano 2020, pela editora Expressão Popular, o livro defende os quilombos como uma forma de luta e oposição à opressão em que estavam submetidos os escravizados (classe oprimida) pelos seus senhores (opressores). O meio empregado é o aparato teórico marxista que ajuda a mostrar as contradições existentes no capitalismo monocultor, escravocrata e agroexportador do Brasil no período até fins da escravidão em 1888.

Palavras-chave: Quilombos, Palmares, Resistência.

Fight and freedom – Tiago Rodrigues Souza’s review Quilombos: resistance to slavery by Clóvis Moura

Abstract: Quilombos: Resistance to Slavery, by Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003), explores the meanings of quilombos, forms of socio-political organization and resistance strategies in Palmares. Launched in its second edition, in 2020, by Expressão Popular, the book defends the quilombos as a form of struggle and opposition to the oppression to which the enslaved (oppressed class) were subjected by their masters (oppressors). The means is the Marxist theoretical apparatus that helps to show the existing contradictions in the monoculture, slavery and agro-export capitalism in Brazil in the period until the end of slavery in 1888.

Keywords: Quilombos, Palmares, Resistance.


Clóvis Steiger de Assis Moura, o autor de Quilombos: Resistência ao escravismo,  foi considerado um dos mais importantes sociólogos brasileiros do século XX, além de jornalista e historiador. Produziu diversos trabalhos sobre a escravidão e o negro no Brasil. Um dos seus legados foi combater a ideia de passividade dos escravos e destacar as diversas formas de ação na luta de classes entre os detentores dos meios de produção e os explorados. Lançou 11 livros, dos quais destacam-se: O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidadão? (1977), Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1988) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994). Militante do Partido Comunista do Brasil e do Movimento Negro, fundou em 1975 o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA), tendo contribuído de forma expressiva para os estudos afrobrasileiros.

Para demonstrar o quilombo como uma forma de subversão contra o aparelho repressor do escravismo, o autor distribui o conteúdo em seis capítulos na obra aqui analisada. No primeiro deles – “Escravos, senhores e quilombolas”, são discutidas as particularidades da escravidão no Brasil, como a quantidade avulta de escravos transportados pelo tráfico negreiro, sua fixação e permanência em todo o território, o período de mais de 300 anos de escravidão e as formas diversificadas em que os escravos lutaram contra ela, como as fugas, as rebeliões e os quilombos. Essa última é vista como uma manifestação de luta de classes, já que escravocratas criaram formas violentas de domínio dos meios de produção, ancoradas no racismo, os escravos só conseguiriam livrar-se agindo de modo parecido.

Num primeiro momento do segundo capítulo – “O que eram os quilombos” –, o autor cita o conceito de quilombo dado pelo rei de Portugal em 1740 (“toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles”) (p.21), chegando à seguinte conclusão: onde quer que tenha existido escravidão, houve essa forma de resistência que não foi um fenômeno presente apenas no Brasil, mas em diversos lugares da América como Haiti, Colômbia, Cuba, Jamaica e Peru. A partir daí, cita vários exemplos de quilombos fora do Brasil e formas utilizadas pelo aparelho repressor para enfrentar esse problema. Encerra afirmando que “somente através do espírito de rebeldia, da luta e da reelaboração de comunidades livres” os escravizados conseguiam sua reumanização, pois eram tratados como coisa ou animais.

No capítulo III – “A sublevação quilombola contra o aparelho repressor” –, a ideia é enfatizar a conclusão do tópico anterior, ou seja, apenas através de mecanismos muito parecidos com os utilizados pelo aparelho repressor, o escravo conseguiria combatê-lo. Para tal, deveria se rebelar e usar de violência contra a ideologia e as práticas daqueles que o desumanizava como ser. O articulista classifica e explica algumas dessas práticas dos quilombos, como manter contato, alianças e negócios com segmentos ou grupos marginalizados da sociedade para adquirir ferramentas, armas e suprimentos. É através dessa articulação com outros grupos subalternos que (por interesse ou empatia) faziam chegar os elementos necessários para o desenvolvimento interno e defesa militar dos quilombos.

O autor também aponta duas características da quilombagem: a sua continuidade histórica e expansão geográfica. Do século XVI até as vésperas da abolição da escravidão a quilombagem é registrada, bem como os relatos em todas as regiões do país, mesmo naquelas em que a densidade demográfica de escravos era pequena. O autor assevera “a existência de um sistema escravista de âmbito nacional” e a “a participação do escravo rebelde, no sentido de querer extinguir esse sistema por ser o agente histórico e social no qual a contradição fundamental do escravismo se manifesta mais agudamente” (p.49).

“Como se organizavam os quilombos é o título do quarto capítulo”. Aqui, o autor se utiliza da tipologia produzida por Décio Freitas para ilustrar a diversidade de organização dos quilombos que, segundo ele, reproduziam internamente o tipo de economia da área na qual estavam localizados. Existiam os quilombos agrícolas, os extrativistas, os mercantis, os mineradores, os pastoris, os de serviços e os predatórios. A organização econômica do quilombo, ao mesmo tempo em que reproduzia a economia da área ao qual estava localizado, contrastava com a economia monocultora das plantations, pois era baseada na policultura e comunitária. A organização política tinha como principal preocupação economia-defesa, já que os líderes deveriam garantir a produção para consumo e subsistência e evitar invasões ou destruição dos quilombos. “O quilombo era o refúgio de muitos elementos marginalizados da sociedade escravista, independentemente da sua cor. Era o exemplo da democracia racial de que tanto se fala, mas nunca existiu no Brasil, fora das unidades quilombolas”, afirma preparando o leitor para a ideia do tópico seguinte. (p.58).

Em “Palmares: República de homens livres”, o capítulo mais extenso da obra, Clóvis Moura Critica a historiografia que teria interpretado Palmares como um lugar na história reservado a “bandidos e marginais” e afirma ter sido esse quilombo a maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina. Por outro lado, salienta a dificuldade de fontes sobre o objeto de estudo, uma vez que a tradição oral, herdada da África e, provavelmente, mantida por aqueles que ali viveram, fez com que as memórias e histórias fossem contados por aqueles que subjugaram os palmarinos. Portanto, as fontes são produzidas pelo dominador, impossibilitando a análise da versão ou visão dos dominados.

Dito isso, o autor recorre a textos de Édison Carneiro, Yeda Pessoa de Castro e outros autores, para amparar os argumentos, referindo-se ao quilombo quase sempre como a República. Esta seria formada por aqueles que fugiam da escravidão, dos que eram raptados nas redondezas, sobretudo mulheres, além de índios e marginalizados que buscavam refúgio, além do nascimento na própria comunidade. A fertilidade do solo e o isolamento teriam sido os fatores que levaram Palmares a possuir uma população entre 20 e 25 mil habitantes. A maior parte da população de Palmares seria de origem banta. Porém, haveria grande quantidade de vocabulários e linguagens que ainda devem ser analisados para se estabelecer algo concreto. A economia, primeiro baseada na caça e na pesca, assim como na coleta de frutos e, depois, contrastando com o sistema monocultor da colônia, surgiria como um sistema de pequenas produções agrícolas baseado no trabalho coletivo, cooperativo e comunitário, sustentado pela policultura e distribuído comunitariamente. Sendo vários mocambos que participavam desse modelo de produção, terminam transformando em uma federação de quilombos e em uma República. O motivo para a destruição de palmares teria sido seu dinamismo econômico (produção na policultura e trabalho coletivo, o dinamismo político – cada mocambo era autônomo e a “escolha do rei era eletiva, votada pelo conselho) e social (famílias baseadas na poliandria e religião sem hierarquia sacerdotal e que misturava vários credos). Palmares, segundo o autor, era uma verdadeira afronta ao sistema colonial baseado na monocultura capitalista, monarquista e patriarcal e Zumbi, por fim, a “síntese da capacidade de organização, de mobilização e de resistência da República, o seu herói-símbolo. A biografia de Zumbi fundiu-se com a biografia de seu povo, pelo qual deu a vida”.

No último capítulo – “Articulação internacional da quilombagem”, são apresentadas algumas revoltas e movimentos que teriam causado medo aos senhores enquanto a escravidão existiu. Para Moura, A insurreição do Haiti, a Revolução Francesa, a Conjuração Baiana e outras sublevações de escravos ao redor do mundo, não só causaram um medo constante da classe senhorial como também foram fator incentivador para mais levantes e revoltas.

O primeiro levante, no Brasil, de escravos, pardos e forros, assim como de oprimidos em geral, foi inspirado na Revolução Francesa: a Conjuração Baiana de 1798. Não só esse movimento, mas vários em sua sequência, mostram a sua conexão com a Revolução do Haiti.

Detalhe da pintura “Batalha em San Domingo” (Haiti), de January Suchodolski (1845)| Imagem: Wikipédia

Os insurretos sabiam dos acontecimentos na antiga colônia francesa e passaram a almejar seus objetivos aqui no Brasil, como mostram as tentativas na Bahia, em Sergipe e na região amazônica. O autor também destaca a fuga de escravos para os países que fazem fronteira com o Brasil e que já haviam abolido a escravidão. Do Rio Grande do Sul à região amazônica, os senhores tiveram que enfrentar, além do medo de rebeliões, as fugas constantes. Um outro problema para os donos de escravos foi a chegada dos colonos europeus nos últimos anos da escravidão. Esses passaram a ser vistos como má influência sobre os escravos e o medo de associações entre escravos e estrangeiros em rebeliões contra os senhores foi constante. Isso ocorria porque a mão de obra barata não proporcionava boas condições de vida aos colonos, que passaram a estabelecer relações com os escravizados, já igualmente marginalizados.

Resumida a obra em suas ideias gerais, passo a comentar o seu valor. Como segunda edição, é estranho constatar que o livro não possua introdução e não apresente uma conclusão. A escrita do sociólogo Clóvis Moura é do século XX. Seus argumentos são importantes no sentido de denunciar uma historiografia que imaginou o negro com agente passivo diante do processo de escravização e leva o leitor a refletir sobre o problema à luz da luta de classes e do marxismo, de modo geral, sem utilizar termos ou palavras que dificultem o entendimento.

Porém, algumas questões poderiam ter sido levadas em conta pelos editores. Logo no início do texto são apresentadas estatísticas desatualizadas. O autor afirma que dificilmente se chegará a um número de escravizados desembarcados no Brasil e apresenta uma estimativa exagerada de 15 milhões de africanos, quando hoje há praticamente consenso entre os historiadores dos números do tráfico de escravos. Uma nota de rodapé com as informações atualizadas seria fundamental para aqueles leitores que não estão familiarizados com o tema se manterem bem-informados.

Ao listar as atividades desenvolvidas por esses escravos, são destacadas as já “clássicas” ocupações: trabalho doméstico, lavoura e mineração. Estudos recentes mostram o uso de escravos na pecuária, como o escravo vaqueiro, além de diferenças muito significativas entre a escravidão do sertão para aquela praticada no litoral. Algo importante e de destaque é a existência do quilombo como fenômeno que teve uma continuidade histórica e se expandiu geograficamente. No entanto, não são analisadas as possíveis continuidades ou rupturas, semelhanças e diferenças tanto no tempo como no espaço, dando origem a questões do tipo: a mesma forma de organização perdurou por todo o período? Os quilombos que existiram na Colômbia eram iguais aos do Brasil ou do Peru?

A ideia de luta de classes defendida por Clovis Moura é muito pertinente para pensarmos a escravidão sob um outro ponto de vista: O quilombo, a fuga, as guerrilhas, ou quaisquer outras formas de resistência de uma classe oprimida e despossuída dos meios de produção e do fundamental que era a liberdade. O problema é o autor afirmar que essas eram também formas de o escravo querer extinguir esse sistema. Temos aqui uma questão básica: ele não poderia simplesmente buscar a sua liberdade? Como explicar a quantidade enorme de libertos que possuíam escravos? O fato de fugir, aquilombar-se ou revoltar-se não significaria consciência de classe ou tentativa de mudança das estruturas vigentes?

Palmares já foi tema de diversos pesquisadores. A militância ou a falta de cuidado metodológico com as fontes já fizeram surgir muitas suposições ou invenções, pois (como o próprio autor afirma) as fontes são escassas. Pelo menos 29 vezes o quilombo é chamado de República em apenas um capítulo, justificando a autonomia entre os mocambos que a formavam e seu rei seria eleito por um conselho. Porém, o autor não define “República” nem apresenta as fontes que lhe permitiram chegar a essas afirmações.

Apesar de alguns problemas com metodologia e interpretação das fontes (além do descuido dos editores), o livro contribui com a historiografia que mostra o negro como agente transformador da realidade em que estava inserido, sendo autor e ator da sua história e não um ser passivo. Também é enriquecedor no modo como trata as relações entre senhores e escravos. Não é todo dia que se encontra uma obra que discute a escravidão como luta de classes, sem termos ou emaranhados que dificultem a compreensão. Vale a pena lê-lo!

Sumário de Quilombos: resistência ao escravismo

  • Nota editorial
  • Escravos, senhores e quilombolas
  • O que eram os quilombos
  • A sublevação quilombola contra o aparelho repressor
  • Como se organizavam os quilombos
  • Palmares: república de homens livres
  • Articulação internacional da quilombagem
  • Vocabulário crítico

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Tiago Rodrigues Souza é Licenciado em História (UNIJORGE) e professor da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC-BA) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN/Uneb). Redes sociais: @tiago2705; ID Lattes:  http://lattes.cnpq.br/3361530247300612; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7695-763X; E-mail: fubasr@hotmail.com.

 


Para citar esta resenha

MOURA, Clovis. Quilombos: resistência ao escravismo. 2ed. Sn.: Expressão Popular, 2020. Resenha de: SOUZA, Tiago Rodrigues. Luta e liberdade. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.9, jan./fev., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/luta-e-liberdade-resenha-de-quilombos-resistencia-ao-escravismo-de-clovis-moura/>. DOI: 10.29327/254374.3.9-4


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 9, jan./fev., 2023 | ISSN 2764-2666

Pesquisa/Search

Alertas/Alerts

Luta e liberdade – Resenha de Tiago Rodrigues Souza (SEC-BA/Uneb) sobre “Quilombos: resistência ao escravismo”, de Clóvis Moura

Clóvis Moura| Imagem: Outras Mídias

ResumoQuilombos: Resistência ao escravismo, de Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003), explora os significados de quilombos as formas de organização social e política e as estratégias de resistência de Palmares. Lançada em segunda edição, no ano 2020, pela editora Expressão Popular, o livro defende os quilombos como uma forma de luta e oposição à opressão em que estavam submetidos os escravizados (classe oprimida) pelos seus senhores (opressores). O meio empregado é o aparato teórico marxista que ajuda a mostrar as contradições existentes no capitalismo monocultor, escravocrata e agroexportador do Brasil no período até fins da escravidão em 1888.

Palavras-chave: Quilombos, Palmares, Resistência.

Fight and freedom – Tiago Rodrigues Souza’s review Quilombos: resistance to slavery by Clóvis Moura

Abstract: Quilombos: Resistance to Slavery, by Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003), explores the meanings of quilombos, forms of socio-political organization and resistance strategies in Palmares. Launched in its second edition, in 2020, by Expressão Popular, the book defends the quilombos as a form of struggle and opposition to the oppression to which the enslaved (oppressed class) were subjected by their masters (oppressors). The means is the Marxist theoretical apparatus that helps to show the existing contradictions in the monoculture, slavery and agro-export capitalism in Brazil in the period until the end of slavery in 1888.

Keywords: Quilombos, Palmares, Resistance.


Clóvis Steiger de Assis Moura, o autor de Quilombos: Resistência ao escravismo,  foi considerado um dos mais importantes sociólogos brasileiros do século XX, além de jornalista e historiador. Produziu diversos trabalhos sobre a escravidão e o negro no Brasil. Um dos seus legados foi combater a ideia de passividade dos escravos e destacar as diversas formas de ação na luta de classes entre os detentores dos meios de produção e os explorados. Lançou 11 livros, dos quais destacam-se: O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidadão? (1977), Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1988) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994). Militante do Partido Comunista do Brasil e do Movimento Negro, fundou em 1975 o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA), tendo contribuído de forma expressiva para os estudos afrobrasileiros.

Para demonstrar o quilombo como uma forma de subversão contra o aparelho repressor do escravismo, o autor distribui o conteúdo em seis capítulos na obra aqui analisada. No primeiro deles – “Escravos, senhores e quilombolas”, são discutidas as particularidades da escravidão no Brasil, como a quantidade avulta de escravos transportados pelo tráfico negreiro, sua fixação e permanência em todo o território, o período de mais de 300 anos de escravidão e as formas diversificadas em que os escravos lutaram contra ela, como as fugas, as rebeliões e os quilombos. Essa última é vista como uma manifestação de luta de classes, já que escravocratas criaram formas violentas de domínio dos meios de produção, ancoradas no racismo, os escravos só conseguiriam livrar-se agindo de modo parecido.

Num primeiro momento do segundo capítulo – “O que eram os quilombos” –, o autor cita o conceito de quilombo dado pelo rei de Portugal em 1740 (“toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles”) (p.21), chegando à seguinte conclusão: onde quer que tenha existido escravidão, houve essa forma de resistência que não foi um fenômeno presente apenas no Brasil, mas em diversos lugares da América como Haiti, Colômbia, Cuba, Jamaica e Peru. A partir daí, cita vários exemplos de quilombos fora do Brasil e formas utilizadas pelo aparelho repressor para enfrentar esse problema. Encerra afirmando que “somente através do espírito de rebeldia, da luta e da reelaboração de comunidades livres” os escravizados conseguiam sua reumanização, pois eram tratados como coisa ou animais.

No capítulo III – “A sublevação quilombola contra o aparelho repressor” –, a ideia é enfatizar a conclusão do tópico anterior, ou seja, apenas através de mecanismos muito parecidos com os utilizados pelo aparelho repressor, o escravo conseguiria combatê-lo. Para tal, deveria se rebelar e usar de violência contra a ideologia e as práticas daqueles que o desumanizava como ser. O articulista classifica e explica algumas dessas práticas dos quilombos, como manter contato, alianças e negócios com segmentos ou grupos marginalizados da sociedade para adquirir ferramentas, armas e suprimentos. É através dessa articulação com outros grupos subalternos que (por interesse ou empatia) faziam chegar os elementos necessários para o desenvolvimento interno e defesa militar dos quilombos.

O autor também aponta duas características da quilombagem: a sua continuidade histórica e expansão geográfica. Do século XVI até as vésperas da abolição da escravidão a quilombagem é registrada, bem como os relatos em todas as regiões do país, mesmo naquelas em que a densidade demográfica de escravos era pequena. O autor assevera “a existência de um sistema escravista de âmbito nacional” e a “a participação do escravo rebelde, no sentido de querer extinguir esse sistema por ser o agente histórico e social no qual a contradição fundamental do escravismo se manifesta mais agudamente” (p.49).

“Como se organizavam os quilombos é o título do quarto capítulo”. Aqui, o autor se utiliza da tipologia produzida por Décio Freitas para ilustrar a diversidade de organização dos quilombos que, segundo ele, reproduziam internamente o tipo de economia da área na qual estavam localizados. Existiam os quilombos agrícolas, os extrativistas, os mercantis, os mineradores, os pastoris, os de serviços e os predatórios. A organização econômica do quilombo, ao mesmo tempo em que reproduzia a economia da área ao qual estava localizado, contrastava com a economia monocultora das plantations, pois era baseada na policultura e comunitária. A organização política tinha como principal preocupação economia-defesa, já que os líderes deveriam garantir a produção para consumo e subsistência e evitar invasões ou destruição dos quilombos. “O quilombo era o refúgio de muitos elementos marginalizados da sociedade escravista, independentemente da sua cor. Era o exemplo da democracia racial de que tanto se fala, mas nunca existiu no Brasil, fora das unidades quilombolas”, afirma preparando o leitor para a ideia do tópico seguinte. (p.58).

Em “Palmares: República de homens livres”, o capítulo mais extenso da obra, Clóvis Moura Critica a historiografia que teria interpretado Palmares como um lugar na história reservado a “bandidos e marginais” e afirma ter sido esse quilombo a maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina. Por outro lado, salienta a dificuldade de fontes sobre o objeto de estudo, uma vez que a tradição oral, herdada da África e, provavelmente, mantida por aqueles que ali viveram, fez com que as memórias e histórias fossem contados por aqueles que subjugaram os palmarinos. Portanto, as fontes são produzidas pelo dominador, impossibilitando a análise da versão ou visão dos dominados.

Dito isso, o autor recorre a textos de Édison Carneiro, Yeda Pessoa de Castro e outros autores, para amparar os argumentos, referindo-se ao quilombo quase sempre como a República. Esta seria formada por aqueles que fugiam da escravidão, dos que eram raptados nas redondezas, sobretudo mulheres, além de índios e marginalizados que buscavam refúgio, além do nascimento na própria comunidade. A fertilidade do solo e o isolamento teriam sido os fatores que levaram Palmares a possuir uma população entre 20 e 25 mil habitantes. A maior parte da população de Palmares seria de origem banta. Porém, haveria grande quantidade de vocabulários e linguagens que ainda devem ser analisados para se estabelecer algo concreto. A economia, primeiro baseada na caça e na pesca, assim como na coleta de frutos e, depois, contrastando com o sistema monocultor da colônia, surgiria como um sistema de pequenas produções agrícolas baseado no trabalho coletivo, cooperativo e comunitário, sustentado pela policultura e distribuído comunitariamente. Sendo vários mocambos que participavam desse modelo de produção, terminam transformando em uma federação de quilombos e em uma República. O motivo para a destruição de palmares teria sido seu dinamismo econômico (produção na policultura e trabalho coletivo, o dinamismo político – cada mocambo era autônomo e a “escolha do rei era eletiva, votada pelo conselho) e social (famílias baseadas na poliandria e religião sem hierarquia sacerdotal e que misturava vários credos). Palmares, segundo o autor, era uma verdadeira afronta ao sistema colonial baseado na monocultura capitalista, monarquista e patriarcal e Zumbi, por fim, a “síntese da capacidade de organização, de mobilização e de resistência da República, o seu herói-símbolo. A biografia de Zumbi fundiu-se com a biografia de seu povo, pelo qual deu a vida”.

No último capítulo – “Articulação internacional da quilombagem”, são apresentadas algumas revoltas e movimentos que teriam causado medo aos senhores enquanto a escravidão existiu. Para Moura, A insurreição do Haiti, a Revolução Francesa, a Conjuração Baiana e outras sublevações de escravos ao redor do mundo, não só causaram um medo constante da classe senhorial como também foram fator incentivador para mais levantes e revoltas.

O primeiro levante, no Brasil, de escravos, pardos e forros, assim como de oprimidos em geral, foi inspirado na Revolução Francesa: a Conjuração Baiana de 1798. Não só esse movimento, mas vários em sua sequência, mostram a sua conexão com a Revolução do Haiti.

Detalhe da pintura “Batalha em San Domingo” (Haiti), de January Suchodolski (1845)| Imagem: Wikipédia

Os insurretos sabiam dos acontecimentos na antiga colônia francesa e passaram a almejar seus objetivos aqui no Brasil, como mostram as tentativas na Bahia, em Sergipe e na região amazônica. O autor também destaca a fuga de escravos para os países que fazem fronteira com o Brasil e que já haviam abolido a escravidão. Do Rio Grande do Sul à região amazônica, os senhores tiveram que enfrentar, além do medo de rebeliões, as fugas constantes. Um outro problema para os donos de escravos foi a chegada dos colonos europeus nos últimos anos da escravidão. Esses passaram a ser vistos como má influência sobre os escravos e o medo de associações entre escravos e estrangeiros em rebeliões contra os senhores foi constante. Isso ocorria porque a mão de obra barata não proporcionava boas condições de vida aos colonos, que passaram a estabelecer relações com os escravizados, já igualmente marginalizados.

Resumida a obra em suas ideias gerais, passo a comentar o seu valor. Como segunda edição, é estranho constatar que o livro não possua introdução e não apresente uma conclusão. A escrita do sociólogo Clóvis Moura é do século XX. Seus argumentos são importantes no sentido de denunciar uma historiografia que imaginou o negro com agente passivo diante do processo de escravização e leva o leitor a refletir sobre o problema à luz da luta de classes e do marxismo, de modo geral, sem utilizar termos ou palavras que dificultem o entendimento.

Porém, algumas questões poderiam ter sido levadas em conta pelos editores. Logo no início do texto são apresentadas estatísticas desatualizadas. O autor afirma que dificilmente se chegará a um número de escravizados desembarcados no Brasil e apresenta uma estimativa exagerada de 15 milhões de africanos, quando hoje há praticamente consenso entre os historiadores dos números do tráfico de escravos. Uma nota de rodapé com as informações atualizadas seria fundamental para aqueles leitores que não estão familiarizados com o tema se manterem bem-informados.

Ao listar as atividades desenvolvidas por esses escravos, são destacadas as já “clássicas” ocupações: trabalho doméstico, lavoura e mineração. Estudos recentes mostram o uso de escravos na pecuária, como o escravo vaqueiro, além de diferenças muito significativas entre a escravidão do sertão para aquela praticada no litoral. Algo importante e de destaque é a existência do quilombo como fenômeno que teve uma continuidade histórica e se expandiu geograficamente. No entanto, não são analisadas as possíveis continuidades ou rupturas, semelhanças e diferenças tanto no tempo como no espaço, dando origem a questões do tipo: a mesma forma de organização perdurou por todo o período? Os quilombos que existiram na Colômbia eram iguais aos do Brasil ou do Peru?

A ideia de luta de classes defendida por Clovis Moura é muito pertinente para pensarmos a escravidão sob um outro ponto de vista: O quilombo, a fuga, as guerrilhas, ou quaisquer outras formas de resistência de uma classe oprimida e despossuída dos meios de produção e do fundamental que era a liberdade. O problema é o autor afirmar que essas eram também formas de o escravo querer extinguir esse sistema. Temos aqui uma questão básica: ele não poderia simplesmente buscar a sua liberdade? Como explicar a quantidade enorme de libertos que possuíam escravos? O fato de fugir, aquilombar-se ou revoltar-se não significaria consciência de classe ou tentativa de mudança das estruturas vigentes?

Palmares já foi tema de diversos pesquisadores. A militância ou a falta de cuidado metodológico com as fontes já fizeram surgir muitas suposições ou invenções, pois (como o próprio autor afirma) as fontes são escassas. Pelo menos 29 vezes o quilombo é chamado de República em apenas um capítulo, justificando a autonomia entre os mocambos que a formavam e seu rei seria eleito por um conselho. Porém, o autor não define “República” nem apresenta as fontes que lhe permitiram chegar a essas afirmações.

Apesar de alguns problemas com metodologia e interpretação das fontes (além do descuido dos editores), o livro contribui com a historiografia que mostra o negro como agente transformador da realidade em que estava inserido, sendo autor e ator da sua história e não um ser passivo. Também é enriquecedor no modo como trata as relações entre senhores e escravos. Não é todo dia que se encontra uma obra que discute a escravidão como luta de classes, sem termos ou emaranhados que dificultem a compreensão. Vale a pena lê-lo!

Sumário de Quilombos: resistência ao escravismo

  • Nota editorial
  • Escravos, senhores e quilombolas
  • O que eram os quilombos
  • A sublevação quilombola contra o aparelho repressor
  • Como se organizavam os quilombos
  • Palmares: república de homens livres
  • Articulação internacional da quilombagem
  • Vocabulário crítico

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Tiago Rodrigues Souza é Licenciado em História (UNIJORGE) e professor da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC-BA) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN/Uneb). Redes sociais: @tiago2705; ID Lattes:  http://lattes.cnpq.br/3361530247300612; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7695-763X; E-mail: fubasr@hotmail.com.

 


Para citar esta resenha

MOURA, Clovis. Quilombos: resistência ao escravismo. 2ed. Sn.: Expressão Popular, 2020. Resenha de: SOUZA, Tiago Rodrigues. Luta e liberdade. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.9, jan./fev., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/luta-e-liberdade-resenha-de-quilombos-resistencia-ao-escravismo-de-clovis-moura/>. DOI: 10.29327/254374.3.9-4


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 9, jan./fev., 2023 | ISSN 2764-2666

Resenhistas

Privacidade

Ao se inscrever nesta lista de e-mails, você estará sujeito à nossa política de privacidade.

Acesso livre

Crítica Historiográfica não cobra taxas para submissão, publicação ou uso dos artigos. Os leitores podem baixar, copiar, distribuir, imprimir os textos para fins não comerciais, desde que citem a fonte.

Foco e escopo

Publicamos resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas acadêmicas que tratem da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História. Saiba mais sobre o único periódico de História inteiramente dedicado à Crítica em formato resenha.

Corpo editorial

Somos professore(a)s do ensino superior brasileiro, especializado(a)s em mais de duas dezenas de áreas relacionadas à reflexão, produção e usos da História. Faça parte dessa equipe.

Submissões

As resenhas devem expressar avaliações de livros ou de dossiês de revistas acadêmicas autodesignadas como "de História". Conheça as normas e envie-nos o seu texto.

Pesquisa


Enviar mensagem de WhatsApp