Mães de umbigo: saberes e vivências históricas das parteiras em periódicos acadêmicos brasileiros (Séculos XIX e XX), por Taíse Santos Rocha (FAI/UNEB)
Resumo Este artigo examina os conhecimentos e as experiências históricas das parteiras com base na literatura publicada nos últimos dez anos em artigos encontrados na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e no blog https://www.resenhacritica.com.br/. O objetivo é fazer um inventário da literatura, quantificá-la e descrever as principais contribuições dos especialistas sobre os conhecimentos e experiências históricas das parteiras.
Palavras-chave: História das Parteiras. Saberes do Parto, Revisão da Literatura.
Introdução
A conexão entre o conhecimento e a experiência das parteiras envolve resgatar memórias, valores, técnicas e rituais, apoiados em conhecimentos muitas vezes empíricos e no altruísmo. Este texto lista a produção, quantifica e elabora uma descrição dos conhecimentos e experiências históricas deste grupo, com base na literatura especializada em parteiras nos periódicos acadêmicos brasileiros dos séculos XIX e XX. A pesquisa foi realizada nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e no blog https://www.resenhacritica.com.br/.
A primeira base de dados, BVS, reúne mais de 13 mil títulos de revistas nacionais e internacionais indexadas nos principais índices bibliográficos da área da saúde. Já a SciELO funciona como uma base de dados que abrange mais de mil periódicos científicos e outras publicações acadêmicas, contando atualmente com cerca de 600 mil artigos. O Blog Resenha Crítica fornece mensalmente os sumários de artigos publicados em 213 periódicos brasileiros na área de História. É importante mencionar que apenas os sumários referentes ao período de 2017 a 2022 estão completos.
Esta revisão é a primeira tarefa para a construção da investigação no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. O título provisório do estudo é “Comunidade Remanescente de Quilombo Baixão de Zé Preto; Irecê, Bahia, Brasil: o saber popular das parteiras no cuidado materno na década de 1980”.
Foram selecionados para esta revisão todos os artigos de revistas publicados entre 2011 e 2021 que apresentassem conteúdos relevantes para os objetivos do estudo e que estivessem disponíveis na íntegra e de forma gratuita. As buscas foram realizadas entre os meses de novembro e dezembro de 2022 por meio dos descritores: História, Parteiras e Saberes.
Foram obtidos 48 resultados, dos quais 35 foram excluídos: 12 por inconsistência com o problema de pesquisa, identificada pelo título; 6 por não abordarem o problema de pesquisa, identificado pelo resumo; 8 por serem duplicados; e 9 por tratarem da relação entre as parteiras e os serviços de saúde, enfermagem obstétrica, luta política pelo parto humanizado e medicalização do parto. Ao final, foram selecionados 13 artigos para compor a amostra da revisão. Para tanto, foi utilizado o método de identificação das questões relacionadas aos “saberes”, definidos como conhecimento específico em determinada área, e às “vivências”, compreendidas como experiências que geraram conhecimento. É importante destacar que a maioria dos textos selecionados foi encontrada em periódicos de saúde e enfermagem, e poucos em periódicos de história.
Os resultados foram divididos em dois tópicos: o primeiro, “Vivências históricas do ofício das parteiras”, aborda a base do cuidado das parteiras, baseado em conhecimento empírico e experiências no atendimento às mulheres no ciclo gravídico-puerperal. Já no segundo tópico, “Os saberes das parteiras durante o parto”, são expostas as técnicas, práticas e rituais relacionados à complexidade que o parto exigia, com atenção direcionada à parturiente e ao seu contexto familiar.
Vivências históricas do ofício das parteiras
A vivência das parteiras foi discutida em 77% dos artigos, em sua maioria provenientes da área de saúde, especialmente da enfermagem. Desse conjunto de textos, obtivemos informações principalmente sobre definições de parteira e o amplo papel desempenhado por elas, que ia além da realização de partos. As parteiras eram mulheres sem estudos ou formação específica, cujo conhecimento era baseado na observação, na aplicação do senso comum e no intercâmbio oral de práticas populares. Elas tinham uma atitude sincera e colaborativa e eram altamente valorizadas pela vizinhança, que as classificava como mulheres boas, decididas, dispostas, desembaraçadas, limpas, determinadas, corajosas ou preparadas. Além do cuidado com a saúde da mulher durante o ciclo gravídico-puerperal e do recém-nascido, elas também se dedicavam a trabalhos domésticos e ao campo. Seu conhecimento era baseado na experiência de ser mãe e na observação.[1] Essas mulheres tornaram-se responsáveis pelo auxílio, acolhimento e cuidado durante a gestação, parto e pós-parto, baseando-se em conhecimentos orais e gestuais experimentados e transmitidos entre as gerações.[2]
No Brasil, as “parteiras tradicionais” são mulheres que prestam assistência ao parto em domicílio, utilizando-se de saberes e práticas populares.[3] Elas são conhecidas por vários nomes, como “aparadeiras”, “comadres”, “cachimbeiras” e “parteiras leigas”,[4] e adquirem seus conhecimentos sobre a parturição por meio da oralidade e da troca de experiências com outras mulheres mais experientes, sem formação formal reconhecida.[5] A atuação das parteiras tradicionais brasileiras foi permitida no país até a década de 1970, e sua atuação temporal varia de acordo com as regiões e as características sociodemográficas da população atendida.[6]
Um estudo realizado no estado do Ceará, no nordeste do Brasil, relata que as parteiras são conhecidas como “cachimbeiras”, em referência a um dos principais rituais realizados durante o trabalho de parto. Após fumar um cachimbo, a parteira cuspia em suas mãos e passava a saliva no abdômen da mulher, acreditando que isso acelerava o parto. Após o banho do recém-nascido, a parteira tragava a fumaça do cachimbo e soprava no umbigo da criança, a fim de apressar a queda do coto umbilical.
As pesquisas mostram que as parteiras desempenhavam diversas funções, além de realizar partos e cuidar da mãe e do recém-nascido. Elas examinavam amas-de-leite, levavam as crianças que ajudaram a vir ao mundo à pia batismal, eram convocadas como peritas em exames médico-legais, passavam atestados de saúde e de doença, praticavam sangrias, aplicavam vacinas, faziam abortos e tratavam de doenças venéreas, ciclos menstruais irregulares, amamentação, esterilidade, estupro, contracepção, infertilidade e também ofereciam crianças para adoção. Além disso, elas eram conselheiras, realizavam massagens, recomendavam e preparavam remédios caseiros para o tratamento de cólicas, tosse, gases e dores em geral. Em relação ao atendimento às grávidas, as parteiras acompanhavam todo o período de gestação, cuidando do bem-estar da mulher e verificando se a gestação transcorria sem grandes problemas.[7] É importante destacar que, além de realizar procedimentos técnicos durante o acompanhamento da gestante, verificou-se que a parteira também fornecia suporte emocional, a fim de que a gestante trabalhasse melhor com a dor do trabalho de parto e do parto.
De acordo com Medeiros et al.,[8] apesar de as parteiras terem sido mais comuns no cenário de partos, não existia um curso regular para a formação de obstetrizes no Brasil até 1832. O curso de formação de parteiras foi estabelecido pelo artigo 19 da lei de 3 de outubro de 1832 (citado em Brasil, 1832), que determinava que houvesse um curso de parteiras ministrado pelo professor da cadeira de partos. A assistência à parturição passou por mudanças, mas ainda é um rito de passagem para mulheres e famílias. Antes da institucionalização do parto, o nascimento ocorria em casa, envolvendo o afeto familiar e sem intervenção de profissionais da saúde.[9]
Os saberes das parteiras no momento do parto
Dos artigos selecionados, 77% enfocam as experiências das parteiras e 23% abordam seus saberes, principalmente na área de saúde. Nesses 13 artigos, foram identificados dados sobre a integração das práticas das parteiras, que reúnem conhecimentos adquiridos ao longo do tempo e baseados na tradição do parto. No contexto histórico em que o acesso aos serviços de saúde não era universal, as parteiras do semiárido brasileiro reestruturaram e incorporaram seus saberes para atender à demanda social por cuidados, especialmente nas áreas rurais e entre as classes sociais baixas.[10] Canassa et al.11i] apontam que o trabalho das parteiras envolve um conjunto de práticas e saberes contextualizados em suas múltiplas relações sociais. Eles destacam que, quando as parteiras tradicionais estavam presentes nas comunidades, o aprendizado era empírico, transmitido muitas vezes por familiares, amigas, vizinhas ou outras parteiras. Em contraste, as parteiras que atuavam em maternidades eram formadas no modelo biomédico e seguiam normas e rotinas impostas por ele.
Realize um ritual que busca se aproximar do mundo sagrado é parte da prática das parteiras durante o parto. Essa prática inclui fazer orações a santos protetores, como Nossa Senhora da Penha e Santa Margarida, aplicar massagem na barriga da mulher com azeite de mamona ou uma garrafa com água morna para ajudar na descolagem da placenta e fornecer à parturiente gema de ovo quente ou banha de mucura para beber, a fim de evitar a dor durante o parto. As parteiras também relataram receber avisos espirituais que sinalizavam se a assistência ao parto seria exitosa ou não, influenciando em seu processo decisório de acompanhamento durante a parturição. Os depoimentos coletados pelas parteiras mostram que o parto realizado por elas segue um ritual que busca se aproximar do mundo sagrado. Rezas, amuletos e proibições estão presentes durante a preparação e a realização do parto. Pesquisas mostram diferenças importantes entre o parto realizado por parteiras e o parto hospitalar, sendo que no ambiente hospitalar predominam preocupações técnicas e exclusivamente racionais, enquanto no parto realizado por parteiras, a solidariedade é priorizada. É importante ressaltar que o santo protetor pode variar de acordo com a região. Na comunidade de Itaqui-Bacanga, por exemplo, as santas protetoras são Nossa Senhora da Penha e Santa Margarida.
As parteiras utilizavam chás de hortelã, pimenta do reino e milho para auxiliar na parturição, aumentando as contrações uterinas ou evitando hemorragia pós-parto. Para prestar assistência e conduzir a parturição, elas precisavam de equipamentos de proteção individual e improvisavam de acordo com seus conhecimentos empíricos.[12] Antes do parto, a ingestão de vários chás complementava o ritual. Depois do parto, iniciava-se outro ritual com uma série de proibições e procedimentos a serem seguidos pela “mulher parida”.
Ela deveria ficar reclusa por sete dias no quarto para evitar “pegar vento na cabeça”, comer apenas alimentos que não fossem considerados reimosos, como galinha sem sangue acompanhada de um pirão de “farinha seca”, permanecer sem banho e fazer somente um asseio com banho de mato, como algodão, mastruz e entrecasca de aroeira, para desinflamar a barriga. Além disso, ela deveria envolver a barriga com uma faixa de tecido bem apertada para ajudar a colocar o útero no lugar, tomar bastante caldo para produzir leite para a criança e manter o período de “resguardo” que dura quarenta dias. Durante esse intervalo, a mulher parida também ficava isenta dos trabalhos domésticos.[13]
Durante o período expulsivo, as parteiras instruíam as parturientes sobre as posições mais adequadas para o parto, que podiam variar entre deitar-se, acocorar-se ou ficar em pé, e sobre o momento certo para fazer os puxos abdominais. Esses cuidados ao lado das parturientes deixavam-nas mais seguras e encorajadas a enfrentar o trabalho de parto com as parteiras. Quanto ao nascimento, as parteiras descreveram os cuidados imediatos com o recém-nascido (RN), que incluíam o corte do cordão umbilical, a higienização do corpo e a aspiração boca a boca ou boca-nariz, sendo que, quando realizavam essa última, lavavam a própria boca com cachaça.[14]
Para as parteiras tradicionais, a maior preocupação durante a assistência à mulher era o delivramento placentário, devido ao risco de hemorragia e morte. Por isso, realizavam orações e observavam atentamente os restos de tecido placentário. Após a assistência ao parto, o homem da casa era responsável por enterrar o “parto”. Também ressaltaram a importância das orientações de higiene e das visitas domiciliares como parte dos cuidados no puerpério. Outro ponto importante nesse período era a evolução do coto umbilical, que era uma das principais preocupações das parteiras durante as visitas puerperais, que ocorriam entre o terceiro e o oitavo dia pós-parto. Além disso, apontaram que os cuidados relacionados ao coto umbilical mudaram com a disponibilização de álcool e novos conhecimentos.[15]
Conclusão
O objetivo deste estudo foi fazer um inventário da literatura, quantificá-la e descrever as principais contribuições de especialistas sobre os saberes e vivências históricas das parteiras. A revisão incluiu uma amostra de 13 artigos. Observamos que as parteiras eram mulheres experientes e líderes, respeitadas pela comunidade, com baixa escolaridade, que se tornavam referência para o cuidado da saúde da parturiente e da criança. Em relação aos saberes, as parteiras utilizavam plantas medicinais no parto e puerpério, transmitiam seus conhecimentos entre as gerações, encorajavam as parturientes a vencerem seus medos e a se sentirem seguras, reconheciam a importância do apoio familiar e religioso, e costumavam proferir orações durante o parto, evocando santos protetores para garantir desfechos positivos no processo de parturição e nascimento.
Notas
[1] Diaz; González, 2016.
[2] Barbosa et. al; 2013; Castro, 2015.
[3] Gusman, 2015.
[4] Gomes, 2018.
[5] Norman; Tesser, 2015.
[6] Fabrizzio, 2019.
[7] Barreto, 2016.
[8] Medeiros et. al, 2018
[9] Diaz; González, 2016; Quitete, 2018.
[10] Gomes et al., 2918.
[11] Canassa et al., 2011.
[12] Gomes et al., 2021.
[13] Pereira, 2016.
[14] Gomes et al., 2021.
[15] Gomes et al., 2021.
Referências
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Autora
Taíse Santos Rocha – Mestranda em História (PPGEAFIN/UNEB). Enfermeira, Professora do curso de enfermagem da Faculdade Irecê- FAI. Publicou, entre outros trabalhos, em coautoria com Vanessa Juliana Almeida Reis e Adriele Pereira da Silva, “Estratégias para captação de gestantes adolescentes às consultas de pré-natal ” e “Assistência de enfermagem ao pré-natal: Relato de experiência em coautoria com Gisele Gomes Dourado”. ID LATTES: https://lattes.cnpq.br/0947538744501443; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7895-8409. E-mail: taysesrocha@hotmail.com; Intagram: @taiserocha_enf.
Para citar este texto
ROCHA, Taíse Santos. Maes de umbigo: saberes e vivências históricas das parteiras em periódicos acadêmicos brasileiros (Séculos XIX e XX). Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.10, mar./abr., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/revistas-ibero-americanas-de-historia-que-publicaram-entre-01-11-2023-e-31-12-2023/>. DOI: 10.29327/254374.3.10-13
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