Ludicidade no Ensino de História – Resenha de “O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo” e “Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo”, de Márcia Ambrósio e Eduardo Mognon Ferreira

Os usos dos jogos de tabuleiro e de e-portfólio do corpo brincante no processo educativo. Detalhe de capa

A obra O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo, escrita por Maria Ambrósio e Eduardo Mognon Ferreira, foi lançada em 2020 acompanhada de um segundo volume nomeado Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo, editados ambos pela mesma editora de Curitiba/PR, a CRV. As obras estão disponíveis em formato digital no site https://eportfoliobrincante.netlify.app/ebook.

A coautora Márcia Ambrósio é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizou estudos pós-doutorais na Universidade de Barcelona e atua na Universidade Federal de Ouro Preto (MG). O coautor Eduardo Mognon Ferreira possui graduação em História e mestrado em Ensino de História, ambos pela Universidade Federal de Ouro Preto (MG).

Os dois volumes registram atividades executadas entre 2015 e 2020 que entrelaçam os campos da pesquisa e da extensão com o objetivo de realizar atividades de formação de professores, a partir da promoção de aprendizagem mediada por jogos de tabuleiro, e investigar, de modo experimental, os tipos de aprendizagens conquistadas na escola básica. Para isso, os autores comentam os minicursos destinados a professores da escola básica e a realização de pesquisa-ação onde jogos de tabuleiro eram desenvolvidos e aplicados como recursos didáticos cujas situações motivaram reflexões sobre interações, aprendizagens, fazeres e conceitos em jogos em três escolas parceiras – duas localizadas em Santa Catarina e uma, em Minas Gerais.

No primeiro volume, os pesquisadores suscitam reflexões sobre o uso da metodologia de projetos e sobre as possibilidades de atividades interdisciplinares mediadas por jogos de tabuleiro. Percebe-se que, para além do uso de jogos como recursos didáticos, há a análise das atividades de construção de jogos durante as aulas de modo cooperativo entre discentes e docentes.

Enquanto o primeiro volume registra as investigações, os fundamentos teóricos e as reflexões e conclusões acarretadas, o segundo volume registra e descreve as regras dos jogos, as cartas e os tabuleiros e comenta as possibilidades educativas. A pesquisa privilegia os conteúdos das disciplinas escolares do campo das ciências humanas, com destaque para os conteúdos históricos. A obra aborda, em momentos pontuais, os jogos digitais e privilegia os chamados jogos de tabuleiro e de cartas, também chamados de jogos de mesa.

Nos capítulos 1 e 2, dedicados aos referenciais teóricos e conceituais, a autoria apresentou diálogos com diferentes matizes: sobre aprendizagem, foram citados Gilles Deleuze, Félix Guattari, Lev Vygotsky e o pesquisador brasileiro Fernando Seffner (UFRGS); quanto aos conteúdos de ensino, Antoni Zabala. Com Paulo Freire articulou-se as reflexões sobre as relações docente-estudantes e sobre prática docente; com Walter Benjamim, discutiu-se o jogo como experiência e como possibilidade de expressão do humano em sua inteireza; com Huizinga, conceituou-se o jogo; e com os pesquisadores brasileiros Marcello Giacomoni, Nilton Mullet Pereira e Carla Meinerz discorreu-se sobre o uso pedagógico dos jogos.

Nas reflexões teóricas, a obra avança na compreensão do jogo em suas dimensões institucional, social e pedagógica. Os jogos são pensados como estabelecimento de regras de convívio e controle social. A dimensão social dos jogos diz respeito ao jogo dominante da nossa contemporaneidade sob as regras capitalistas e sob o signo da pandemia. A dimensão institucional refere-se aos jogos que instituem e mantêm instituições funcionando, enquanto a dimensão pedagógica permite pensarmos as relações sociais típicas do espaço escolar em jogo. Nesse sentido, pensar em jogos na educação é mudar, acentuar, questionar, transformar a dimensão lúdica inerente à instituição escolar.

O terceiro capítulo retoma a temática dos usos educativos dos jogos discorrendo sobre o planejamento escolar e propõe uma metodologia para a construção de jogos de mesa com as turmas e jogos de avaliação. O capítulo 4 descreve o processo de aplicação dos jogos e a coleta dos dados a partir de entrevistas e da observação das situações de ensino e aprendizagem criadas nas escolas parceiras.

A contribuição mais relevante dos autores pode ser contemplada no quinto capítulo do primeiro volume onde sintetiza cinco dimensões que funcionam como apontamentos teóricos sobre o uso de jogos de tabuleiro da educação básica. A primeira dimensão registra que o jogo de tabuleiro permite jogabilidades complexas e múltiplas e, assim, aprendizagens igualmente complexas durante a ação de jogar. A segunda dimensão, no esteio das influências teóricas de Vygotsky, afirma que o uso didático de jogos de tabuleiro permite o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como a metacognição, o pensamento sobre o que pensamos, sobre o que sabemos e sobre o que não sabemos. Os jogos se constituem como pontes para empatia entre docentes e discentes, para relações pedagógicas menos horizontalizadas, mais tolerantes, mais afetuosas. A terceira dimensão indica a potencialidade interdisciplinar dos jogos na sala de aula. A quarta dimensão defende as potencialidades interdisciplinares da “Aprendizagem Baseadas em Problemas” quando consideradas no planejamento e nas práticas docentes lúdicas. A quinta e última dimensão discute o uso de e-portfólio como estratégia avaliativa adequada às práticas docentes lúdicas: o uso de jogos na escola será potencializado se as práticas avaliativas forem transformadas em estímulo da autorreflexão e autoavaliação e da avaliação processual. A proposta e-portfólio, trabalhada em outras oportunidades pela coautora Márcia Ambrósio, pode contribuir para o aperfeiçoamento das práticas avaliativas atuais bem como para a reestruturação do trabalho docente.

O capítulo 6 reflete sobre a experiência lúdica em sala de aula como auxílio na renovação das práticas docentes e concepções tradicionais de ensino e aprendizagem. Funciona como uma síntese das perspectivas construídas ao longo da investigação, a saber: a) as experiências lúdicas foram capazes de “desencadear processos educativos e avaliativos que instigaram a criatividade, a originalidade e a metacognição”; b) as atividades pedagógicas permitiram “um processo de reflexão consciente do conhecimento, dos valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos, relacionando passado, presente e futuro”; c) o uso de materiais lúdicos permitiu a criação de uma rotina de apropriação de “múltiplas linguagens”, o  desenvolvimento do raciocínio lógico, das linguagens oral e escrita e o envolvimento nas “estratégias de revisão e reflexão sobre as atividades”; e, d)  “a proposta de trabalhar os jogos numa perspectiva de projetos rompeu com a lógica fragmentada e disciplinar, promovendo a globalização do conhecimento e dialogando com as diversas esferas da vida a serviço das aprendizagens (p.139-140).

Quanto à contribuição para uma leitura crítica da obra, os volumes abordam a construção dos jogos utilizados na pesquisa-ação sem que, no entanto, trabalhem dois problemas que permanecem intocados na literatura especializada. O primeiro seria a necessidade de justificar a escolha das mecânicas empregadas nos jogos desenvolvidos. Essa discussão poderia ser expandida para descrição da diversidade das mecânicas disponíveis e propícias aos usos educativos. Giacomoni e Silva (2021) relatam a construção do jogo “Viagens do Tambor” a partir da dinâmica de pistas notórias no jogo “Detetive”. Silva, Ferreira e Silva (2017) também descrevem a construção do jogo “Você conhece as mulheres do Brasil?” a partir das regras do jogo “Perfil”. A produção de jogos em sala de aula ou mesmo por professores pode ser potencializada de ir além da repetição das mecânicas mais populares, como “Quiz” e “Trilha”, ou neste caso, “Perfil” e “Detetive”. Nesse sentido, há a necessidade de o campo avançar, apresentando, por exemplo, as maneiras através das quais podemos criar sistemas de regras partindo da combinação criativa de diferentes mecânicas.

Um segundo problema não abordado é a necessidade de saberes, técnicas e tecnologias do design estranhos às práticas de formação de professores no Brasil. A especificidade dos materiais lúdicos depende de como construímos a arquitetura das informações e as imagens das peças, das cartas, dos tabuleiros. Há aplicativos digitais e bancos de imagem gratuitos –dentre os quais podemos destacar o “Canva.com”–, capazes de auxiliar docentes neófitos. No entanto, ainda permanece a necessidade de qualificar o trabalho com a dimensão não-verbal dos jogos e, para isso, precisamos do Design no rol dos saberes docentes atuais.

Não podemos deixar de reconhecer, entretanto, que a obra avança no desafio de pensar de modo mais objetivo, mediante evidências empíricas o que as abordagens lúdicas provocam nas aprendizagens (Silva et al. , 2020). No entanto, ainda resta ao campo a tarefa de pensar como essas abordagens interferem nas aprendizagens de diferentes tipos de conteúdos (factuais, conceituais, procedimentais, atitudinais) e quais problemas pedagógicos surgem a partir da presença de jogos no espaço escolar.

Talvez, uma questão mais delicada a ser debatida, a partir desta obra, seja a seguinte: diante das condições de trabalho docente, qual o lugar dessas atividades de pedagogia de projetos, de aprendizagens baseadas em problemas da produção dos jogos, do jogar na educação básica? Parece-nos pertinente insistir que a militância pela renovação das práticas e concepções docentes precisa ser, obrigatoriamente, acompanhada da defesa de melhores condições de trabalho, de salário e carreira docentes (Silva; Giaconomi, 2021).

Referências

SILVA, Lucas Fictor; FERREIRA, Karla Aparecida; SILVA, Camila Alves.  Você conhece as mulheres do Brasil? proposta de recurso didático lúdico para o ensino de história. Educação Básica Revista, v. 3, p. 141-152, 2017. [Link]

SILVA, Lucas Victor; GIACOMONI, Marcello Paniz. O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre o uso de jogos no ensino de História. In: PEREIRA, Nilton Mullet; ANDRADE, J. A. (Org.). Ensino de História e suas práticas de pesquisa. 2ed. Porto Alegre: OIKOS, 2021, v. 1, p. 279-295. [Link]

SILVA, Lucas Victor. OLIVEIRA, Paulo Henrique Penna; GIACOMONI, Marcello Paniz; CUNHA, Maurício Clipes. A pesquisa sobre jogos como recursos didáticos no campo do Ensino de História no Brasil: um estudo do estado do conhecimento. História & Ensino, v. 26, p. 374-399, 2020. [Link]


Sumário de O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo

  • Prefácio I – Iniciando a tecitura – Marcello Paniz Giacomoni
  • Prefácio II – Entrelaçando novos fios – Diene Eire de Mello
  • Apresentando a obra
  • Devaneios lúdicos
      1. A dimensão política da ação docente brincante
      2. Conceituando jogos
      3. O uso dos jogos como recursos didáticos e expressão do saber
      4. Cartografias pedagógicas e uma nova relação com o conhecimento
      5. A coreografia das cartas reelando as dimensões pedagógicas do jogo no processo educativo
      6. A grande jogada de saberes
  • Referências
  • Apêndice
  • Glossário
  • Índice remissivo

Sumário de Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo

  • Apresentação do volume II
  • Prefácio – Sandra Belline
  • Caderno Didático 1 – Jogo de Feudo War
  • Caderno Didático 2 – Jogo Entre Trincheiras
  • Caderno Didático 3 – Jogo Trilha da Sustentabilidade
  • Caderno Didático 4 – Jogo Entre Gênero | Prefácio | Lidia Mara Vianna Possas
  • Caderno Didático 5 – Jogo Revisionando
  • Apêndice
  • Índice remissivo

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Resenhista

Lucas Victor da SilvaDoutor em História, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Coordenador dos projetos de extensão “Podcast No Recreio” e “Canal Encruzilhadas”. Publicou, entre outros trabalhos, os artigos A pesquisa sobre jogos como recursos didáticos no campo do Ensino de História no Brasil: um estudo do estado do conhecimento, em coautoria com Paulo Oliveira, Marcello Giacomoni e Mauricio Cunha, O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre o uso de jogos no ensino de História, em coautoria com Marcello Giacomoni, e organizou a obra História e contemporaneidade: articulando espaços, construindo conhecimentos, em parceira com Bruno Araújo e Janaína Guimarães. E-mail: lucasvictor.ufrpe@gmail.com


Referências desta resenha

AMBRÓSIO, Márcia; FERREIRA, Eduardo Mognon. O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo. Curitiba: CRV, 2021. 162p. AMBRÓSIO, Márcia; FERREIRA, Eduardo Mognon.  Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo. Curitiba: CRV, 2021. 160p. Resenha de: SILVA, Lucas Victor da. Ludicidade no Ensino de História. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/marcia-ambrosio-e-eduardo-mognon-ferreira/

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© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

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Os usos dos jogos de tabuleiro e de e-portfólio do corpo brincante no processo educativo. Detalhe de capa

A obra O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo, escrita por Maria Ambrósio e Eduardo Mognon Ferreira, foi lançada em 2020 acompanhada de um segundo volume nomeado Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo, editados ambos pela mesma editora de Curitiba/PR, a CRV. As obras estão disponíveis em formato digital no site https://eportfoliobrincante.netlify.app/ebook.

A coautora Márcia Ambrósio é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizou estudos pós-doutorais na Universidade de Barcelona e atua na Universidade Federal de Ouro Preto (MG). O coautor Eduardo Mognon Ferreira possui graduação em História e mestrado em Ensino de História, ambos pela Universidade Federal de Ouro Preto (MG).

Os dois volumes registram atividades executadas entre 2015 e 2020 que entrelaçam os campos da pesquisa e da extensão com o objetivo de realizar atividades de formação de professores, a partir da promoção de aprendizagem mediada por jogos de tabuleiro, e investigar, de modo experimental, os tipos de aprendizagens conquistadas na escola básica. Para isso, os autores comentam os minicursos destinados a professores da escola básica e a realização de pesquisa-ação onde jogos de tabuleiro eram desenvolvidos e aplicados como recursos didáticos cujas situações motivaram reflexões sobre interações, aprendizagens, fazeres e conceitos em jogos em três escolas parceiras – duas localizadas em Santa Catarina e uma, em Minas Gerais.

No primeiro volume, os pesquisadores suscitam reflexões sobre o uso da metodologia de projetos e sobre as possibilidades de atividades interdisciplinares mediadas por jogos de tabuleiro. Percebe-se que, para além do uso de jogos como recursos didáticos, há a análise das atividades de construção de jogos durante as aulas de modo cooperativo entre discentes e docentes.

Enquanto o primeiro volume registra as investigações, os fundamentos teóricos e as reflexões e conclusões acarretadas, o segundo volume registra e descreve as regras dos jogos, as cartas e os tabuleiros e comenta as possibilidades educativas. A pesquisa privilegia os conteúdos das disciplinas escolares do campo das ciências humanas, com destaque para os conteúdos históricos. A obra aborda, em momentos pontuais, os jogos digitais e privilegia os chamados jogos de tabuleiro e de cartas, também chamados de jogos de mesa.

Nos capítulos 1 e 2, dedicados aos referenciais teóricos e conceituais, a autoria apresentou diálogos com diferentes matizes: sobre aprendizagem, foram citados Gilles Deleuze, Félix Guattari, Lev Vygotsky e o pesquisador brasileiro Fernando Seffner (UFRGS); quanto aos conteúdos de ensino, Antoni Zabala. Com Paulo Freire articulou-se as reflexões sobre as relações docente-estudantes e sobre prática docente; com Walter Benjamim, discutiu-se o jogo como experiência e como possibilidade de expressão do humano em sua inteireza; com Huizinga, conceituou-se o jogo; e com os pesquisadores brasileiros Marcello Giacomoni, Nilton Mullet Pereira e Carla Meinerz discorreu-se sobre o uso pedagógico dos jogos.

Nas reflexões teóricas, a obra avança na compreensão do jogo em suas dimensões institucional, social e pedagógica. Os jogos são pensados como estabelecimento de regras de convívio e controle social. A dimensão social dos jogos diz respeito ao jogo dominante da nossa contemporaneidade sob as regras capitalistas e sob o signo da pandemia. A dimensão institucional refere-se aos jogos que instituem e mantêm instituições funcionando, enquanto a dimensão pedagógica permite pensarmos as relações sociais típicas do espaço escolar em jogo. Nesse sentido, pensar em jogos na educação é mudar, acentuar, questionar, transformar a dimensão lúdica inerente à instituição escolar.

O terceiro capítulo retoma a temática dos usos educativos dos jogos discorrendo sobre o planejamento escolar e propõe uma metodologia para a construção de jogos de mesa com as turmas e jogos de avaliação. O capítulo 4 descreve o processo de aplicação dos jogos e a coleta dos dados a partir de entrevistas e da observação das situações de ensino e aprendizagem criadas nas escolas parceiras.

A contribuição mais relevante dos autores pode ser contemplada no quinto capítulo do primeiro volume onde sintetiza cinco dimensões que funcionam como apontamentos teóricos sobre o uso de jogos de tabuleiro da educação básica. A primeira dimensão registra que o jogo de tabuleiro permite jogabilidades complexas e múltiplas e, assim, aprendizagens igualmente complexas durante a ação de jogar. A segunda dimensão, no esteio das influências teóricas de Vygotsky, afirma que o uso didático de jogos de tabuleiro permite o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como a metacognição, o pensamento sobre o que pensamos, sobre o que sabemos e sobre o que não sabemos. Os jogos se constituem como pontes para empatia entre docentes e discentes, para relações pedagógicas menos horizontalizadas, mais tolerantes, mais afetuosas. A terceira dimensão indica a potencialidade interdisciplinar dos jogos na sala de aula. A quarta dimensão defende as potencialidades interdisciplinares da “Aprendizagem Baseadas em Problemas” quando consideradas no planejamento e nas práticas docentes lúdicas. A quinta e última dimensão discute o uso de e-portfólio como estratégia avaliativa adequada às práticas docentes lúdicas: o uso de jogos na escola será potencializado se as práticas avaliativas forem transformadas em estímulo da autorreflexão e autoavaliação e da avaliação processual. A proposta e-portfólio, trabalhada em outras oportunidades pela coautora Márcia Ambrósio, pode contribuir para o aperfeiçoamento das práticas avaliativas atuais bem como para a reestruturação do trabalho docente.

O capítulo 6 reflete sobre a experiência lúdica em sala de aula como auxílio na renovação das práticas docentes e concepções tradicionais de ensino e aprendizagem. Funciona como uma síntese das perspectivas construídas ao longo da investigação, a saber: a) as experiências lúdicas foram capazes de “desencadear processos educativos e avaliativos que instigaram a criatividade, a originalidade e a metacognição”; b) as atividades pedagógicas permitiram “um processo de reflexão consciente do conhecimento, dos valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos, relacionando passado, presente e futuro”; c) o uso de materiais lúdicos permitiu a criação de uma rotina de apropriação de “múltiplas linguagens”, o  desenvolvimento do raciocínio lógico, das linguagens oral e escrita e o envolvimento nas “estratégias de revisão e reflexão sobre as atividades”; e, d)  “a proposta de trabalhar os jogos numa perspectiva de projetos rompeu com a lógica fragmentada e disciplinar, promovendo a globalização do conhecimento e dialogando com as diversas esferas da vida a serviço das aprendizagens (p.139-140).

Quanto à contribuição para uma leitura crítica da obra, os volumes abordam a construção dos jogos utilizados na pesquisa-ação sem que, no entanto, trabalhem dois problemas que permanecem intocados na literatura especializada. O primeiro seria a necessidade de justificar a escolha das mecânicas empregadas nos jogos desenvolvidos. Essa discussão poderia ser expandida para descrição da diversidade das mecânicas disponíveis e propícias aos usos educativos. Giacomoni e Silva (2021) relatam a construção do jogo “Viagens do Tambor” a partir da dinâmica de pistas notórias no jogo “Detetive”. Silva, Ferreira e Silva (2017) também descrevem a construção do jogo “Você conhece as mulheres do Brasil?” a partir das regras do jogo “Perfil”. A produção de jogos em sala de aula ou mesmo por professores pode ser potencializada de ir além da repetição das mecânicas mais populares, como “Quiz” e “Trilha”, ou neste caso, “Perfil” e “Detetive”. Nesse sentido, há a necessidade de o campo avançar, apresentando, por exemplo, as maneiras através das quais podemos criar sistemas de regras partindo da combinação criativa de diferentes mecânicas.

Um segundo problema não abordado é a necessidade de saberes, técnicas e tecnologias do design estranhos às práticas de formação de professores no Brasil. A especificidade dos materiais lúdicos depende de como construímos a arquitetura das informações e as imagens das peças, das cartas, dos tabuleiros. Há aplicativos digitais e bancos de imagem gratuitos –dentre os quais podemos destacar o “Canva.com”–, capazes de auxiliar docentes neófitos. No entanto, ainda permanece a necessidade de qualificar o trabalho com a dimensão não-verbal dos jogos e, para isso, precisamos do Design no rol dos saberes docentes atuais.

Não podemos deixar de reconhecer, entretanto, que a obra avança no desafio de pensar de modo mais objetivo, mediante evidências empíricas o que as abordagens lúdicas provocam nas aprendizagens (Silva et al. , 2020). No entanto, ainda resta ao campo a tarefa de pensar como essas abordagens interferem nas aprendizagens de diferentes tipos de conteúdos (factuais, conceituais, procedimentais, atitudinais) e quais problemas pedagógicos surgem a partir da presença de jogos no espaço escolar.

Talvez, uma questão mais delicada a ser debatida, a partir desta obra, seja a seguinte: diante das condições de trabalho docente, qual o lugar dessas atividades de pedagogia de projetos, de aprendizagens baseadas em problemas da produção dos jogos, do jogar na educação básica? Parece-nos pertinente insistir que a militância pela renovação das práticas e concepções docentes precisa ser, obrigatoriamente, acompanhada da defesa de melhores condições de trabalho, de salário e carreira docentes (Silva; Giaconomi, 2021).

Referências

SILVA, Lucas Fictor; FERREIRA, Karla Aparecida; SILVA, Camila Alves.  Você conhece as mulheres do Brasil? proposta de recurso didático lúdico para o ensino de história. Educação Básica Revista, v. 3, p. 141-152, 2017. [Link]

SILVA, Lucas Victor; GIACOMONI, Marcello Paniz. O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre o uso de jogos no ensino de História. In: PEREIRA, Nilton Mullet; ANDRADE, J. A. (Org.). Ensino de História e suas práticas de pesquisa. 2ed. Porto Alegre: OIKOS, 2021, v. 1, p. 279-295. [Link]

SILVA, Lucas Victor. OLIVEIRA, Paulo Henrique Penna; GIACOMONI, Marcello Paniz; CUNHA, Maurício Clipes. A pesquisa sobre jogos como recursos didáticos no campo do Ensino de História no Brasil: um estudo do estado do conhecimento. História & Ensino, v. 26, p. 374-399, 2020. [Link]


Sumário de O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo

  • Prefácio I – Iniciando a tecitura – Marcello Paniz Giacomoni
  • Prefácio II – Entrelaçando novos fios – Diene Eire de Mello
  • Apresentando a obra
  • Devaneios lúdicos
      1. A dimensão política da ação docente brincante
      2. Conceituando jogos
      3. O uso dos jogos como recursos didáticos e expressão do saber
      4. Cartografias pedagógicas e uma nova relação com o conhecimento
      5. A coreografia das cartas reelando as dimensões pedagógicas do jogo no processo educativo
      6. A grande jogada de saberes
  • Referências
  • Apêndice
  • Glossário
  • Índice remissivo

Sumário de Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo

  • Apresentação do volume II
  • Prefácio – Sandra Belline
  • Caderno Didático 1 – Jogo de Feudo War
  • Caderno Didático 2 – Jogo Entre Trincheiras
  • Caderno Didático 3 – Jogo Trilha da Sustentabilidade
  • Caderno Didático 4 – Jogo Entre Gênero | Prefácio | Lidia Mara Vianna Possas
  • Caderno Didático 5 – Jogo Revisionando
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Resenhista

Lucas Victor da SilvaDoutor em História, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Coordenador dos projetos de extensão “Podcast No Recreio” e “Canal Encruzilhadas”. Publicou, entre outros trabalhos, os artigos A pesquisa sobre jogos como recursos didáticos no campo do Ensino de História no Brasil: um estudo do estado do conhecimento, em coautoria com Paulo Oliveira, Marcello Giacomoni e Mauricio Cunha, O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre o uso de jogos no ensino de História, em coautoria com Marcello Giacomoni, e organizou a obra História e contemporaneidade: articulando espaços, construindo conhecimentos, em parceira com Bruno Araújo e Janaína Guimarães. E-mail: lucasvictor.ufrpe@gmail.com


Referências desta resenha

AMBRÓSIO, Márcia; FERREIRA, Eduardo Mognon. O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo. Curitiba: CRV, 2021. 162p. AMBRÓSIO, Márcia; FERREIRA, Eduardo Mognon.  Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo. Curitiba: CRV, 2021. 160p. Resenha de: SILVA, Lucas Victor da. Ludicidade no Ensino de História. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/marcia-ambrosio-e-eduardo-mognon-ferreira/

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