Memória em disputa — Resenha de Maykon Paulo da Silva Guimarães (PROHIS/UFS) sobre a obra “O Massacre dos Libertos: Sobre raça e república no Brasil (1888–1889)”, de Matheus Gato

Matheus Gato | Imagem: X.com

Resumo: O Massacre dos Libertos: Sobre raça e república no Brasil (1888–1889), de Matheus Gato, analisa o impacto do Massacre de 17 de novembro no processo de racialização pós-abolição no Maranhão. A obra destaca a complexidade das relações raciais e a manipulação da memória histórica. Há repetições excessivas, mas emprego diversificado de fontes para evidenciar o racismo e a opressão. É valorizado recurso para estudiosos das dinâmicas raciais e históricas do Brasil.

Palavras-chave: Massacre de 17 de Novembro, Proclamação da República, Raça.


O Massacre dos Libertos: sobre raça e república no Brasil (1888–1889), publicado em 2020 pela editora Perspectiva, é uma obra de Matheus Gato e faz parte da coleção “estudos”, dirigida por Jacob Guinsburg (in memoriam). Trata-se de um livro de caráter narrativo e descritivo que tem como principal objetivo analisar o evento registrado como “O Massacre de 17 de novembro” e a sua relação com o “processo social de racialização”. A obra foi publicada em 2020, pela editora Perspectiva.

Guinsburg (1921–2018) fez doutorado em Artes cênicas na Universidade de São Paulo (USP), onde atuou como professor do curso de pós-graduação, orientador, crítico literário e tradutor. O apresentador da obra, Antônio Sergio Alfredo Guimarães, é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma instituição. O livro possui quatro capítulos, além da apresentação e introdução, distribuídos em 163 páginas.

No primeiro capítulo, o autor narra os momentos iniciais da Proclamação da República dentro da cidade de São Luís, Maranhão. O autor aponta que “foi nessa conjuntura de desorganização institucional que teve lugar o chamado Massacre de 17 de novembro”. (p.2). O temor desses indivíduos gira em torno de uma ideia, possivelmente forjada, de que a instauração da república, restauraria a escravidão no país. O discurso da possibilidade do retorno ao “cativeiro” fomentou o medo dos ex-escravos, junto a um contexto de incertezas e instabilidade reinante no pós-abolição. É nesse cenário que acontece o Massacre de 17 de novembro: “Uma multidão de pessoas descritas como “libertos”, “homens de cor”, “cidadãos do 13 de maio” e “ex-escravos” saiu às ruas numa grande passeata em protesto contra as noticiais da proclamação da República” (p.2). Ainda nesse capítulo, o autor expõe como o poder simbólico pode servir para silenciar uma memória histórica.

No capítulo seguinte, o autor trabalha o conceito de raça no pós-abolição, relacionando a ideia de liberdade — depois do declínio eminente que o 13 de maio de 1888 trouxe à população senhorial— ao processo de racialização no Maranhão que categorizava a população em grupos. Neste sentido, Gato tenta explicar que o fim do sistema escravista e a “perda” do domínio senhorial, gerou uma perpetuidade em relação às questões raciais. O escritor evidencia o medo do retorno ao cativeiro, como germe capital para o início das revoltas. Para ele, “a insistência imperial na linha que separava cidadãos e escravos como divisão fundamental da sociedade permitia a ascensão controlada de pardos e mulatos livres e o surgimento de distinções sociais entre os de baixo” (p.37) O autor evidencia o desenvolvimento emancipatório e o processo de identificação da população através dos aspectos fenotípicos e culturais. No entanto, “tal problema impõe perguntas sobre a importância da cor como critério de distinção na estrutura social brasileira antes da abolição” (p.37): Por que a crise do escravismo é associada a “posição periférica do Maranhão” e ao desprestígio político frente ao Estado nacional? O escritor, porém, alerta que “qualquer interpretação sobre a construção social de raça como uma das formas dominantes de categorização e fabricação de grupos no Brasil precisa levar em conta as especificidades regionais” (p.69)

No terceiro capítulo, o pesquisador aborda as transformações locais que se deram no pós-abolição — momento de confronto, marcado por várias tentativas de legitimação por parte dos ex-escravos—, bem como os conflitos de valores durante a disputa por indenização aos senhores, donos de escravos. Segundo o autor, “a campanha de indenização mobilizou os sentimentos de decadência e desonra da aristocracia senhorial maranhense, o que trouxe à tona as imbricações entre raça e política” (p.77–81). Nesse sentindo, o clima que já era de hostilidade, aumentou consideravelmente após a tomada das ruas pelos negros que temiam que o novo regime impusesse a escravidão como ferramenta de controle. Nesse cenário, a violência se torna o principal método de opressão, criando um ambiente favorável a acontecimentos como o Massacre de 17 de novembro. Gato explica que a imagem da princesa Isabel cresceu no imaginário da população, sobretudo entre os libertos. Para o autor, há “indícios de que a gente negra enxergava na princesa Isabel uma garantia dos seus direitos civis e/ou se encontrava insegura quanto às consequências de uma transformação radical na forma de governo do país” (p.95)

No capítulo final, Gato trabalha o duplo sentido que palavra “massacre” carrega no imaginário da população maranhense e todo o simbolismo que o evento ocasiona, principalmente quando se refere aos negros, vítimas de um extermínio, não apenas de corpos, como também simbólico e que se estendeu no pós-abolição, agora, através de um novo estigma racial. Por fim, o autor explica a contribuição dos “boatos anônimos” para a proliferação das tensões. “Nesses contextos, os rumores não apenas transmitiam os medos e as esperanças em torno dos eventos, mas também constituíam a própria forma de acontecimentos” (p.105) Este cenário, de certa forma, colaborou para que este episódio ficasse marcado na mentalidade de um povo, que externou esse evento — onde a violência teve papel fundamental —, através de escritos memorialísticos, romances, literaturas, entre outros.

O livro nos faz pensar, como “O Massacre de 17 de novembro”, um evento que aconteceu no interior de São Luís, poderia explicar a situação do país no pós-abolição e como esses costumes poderiam exemplificar o racismo atual, adentrando na cultura memorialística e popular local, marcada por uma recente abolição e uma recente República.

Local de São Luís do Maranhão onde o massacre ocorreu, em foto tirada quase duas décadas depois | Foto: Gaudêncio Cunha/DW

Observa-se, porém, um vício no excesso de repetições de termos utilizados durante a leitura, fazendo o leitor pensar que se encontra parado no mesmo capítulo.

Todavia, como pontos positivos, podemos destacar a produtiva relação do autor com as fontes (relatos memorialísticos, literatura, biografias, artigos de jornais, cartas, notas de trabalho, entre outros), manuseadas para evocar o episódio, que por anos foi silenciado pelo simbolismo do sistema vigente e pelas disputas de memórias, como forma de evidenciar a perpetuação do racismo e da opressão, mascarados por uma ideia de “fraternidade racial”, veiculada pela bandeira do estado do Maranhão.

Sendo assim, a obra cumpre com aquilo que é proposto, respondendo aos questionamentos centrais. É um texto que pode ser utilizado como ferramenta de estudo, tanto por pesquisadores, estudantes e professores que têm o pós-abolição, início da República e as questões raciais como objetos de análise.

Sumário de O Massacre dos Libertos: Sobre raça e república no Brasil (1888–1889).

Apresentação

  • Introdução
  • 1. Uma malta de homens de cor;
  • 2. Raça e cidadania no Pós-Abolição maranhense;
  • 3. A Liberdade dos branco;
  • 4. O massacre;
  • Fraternidade racial.

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Maykon Paulo da Silva Guimarães é mestrando em História (PROHIS/UFS), bolsista de pesquisa (CAPES), especialista em História e Cultura Afro-brasileira (FAVENI) e graduado em História (UFS). Entre outros trabalhos, publicou A autodeclaração como forma de identidade – um breve debate sobre a banca de heteroidentificação: os problemas para a identificação do negros nas políticas de ações afirmativas do Brasil. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/2882028940034039. ID ORCID: https://orcid.org/0009-0002-9050-1388. E-mail: maykouzumak@gmail.com.


Para citar esta resenha

GATO, Matheus. O Massacre dos Libertos: Sobre raça e república no Brasil (1888–1889). São Paulo: Perspectiva, 2020. p.163. Resenha de: GUIMARÃES, Maykon Paulo da Silva. Memória em disputa. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/memoria-em-disputa-resenha-de-maykon-paulo-da-silva-guimaraes-prohis-ufs-sobre-a-obra-o-massacre-dos-libertos-sobre-raca-e-republica-no-brasil-1888-1889/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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Memória em disputa — Resenha de Maykon Paulo da Silva Guimarães (PROHIS/UFS) sobre a obra “O Massacre dos Libertos: Sobre raça e república no Brasil (1888–1889)”, de Matheus Gato

Matheus Gato | Imagem: X.com

Resumo: O Massacre dos Libertos: Sobre raça e república no Brasil (1888–1889), de Matheus Gato, analisa o impacto do Massacre de 17 de novembro no processo de racialização pós-abolição no Maranhão. A obra destaca a complexidade das relações raciais e a manipulação da memória histórica. Há repetições excessivas, mas emprego diversificado de fontes para evidenciar o racismo e a opressão. É valorizado recurso para estudiosos das dinâmicas raciais e históricas do Brasil.

Palavras-chave: Massacre de 17 de Novembro, Proclamação da República, Raça.


O Massacre dos Libertos: sobre raça e república no Brasil (1888–1889), publicado em 2020 pela editora Perspectiva, é uma obra de Matheus Gato e faz parte da coleção “estudos”, dirigida por Jacob Guinsburg (in memoriam). Trata-se de um livro de caráter narrativo e descritivo que tem como principal objetivo analisar o evento registrado como “O Massacre de 17 de novembro” e a sua relação com o “processo social de racialização”. A obra foi publicada em 2020, pela editora Perspectiva.

Guinsburg (1921–2018) fez doutorado em Artes cênicas na Universidade de São Paulo (USP), onde atuou como professor do curso de pós-graduação, orientador, crítico literário e tradutor. O apresentador da obra, Antônio Sergio Alfredo Guimarães, é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma instituição. O livro possui quatro capítulos, além da apresentação e introdução, distribuídos em 163 páginas.

No primeiro capítulo, o autor narra os momentos iniciais da Proclamação da República dentro da cidade de São Luís, Maranhão. O autor aponta que “foi nessa conjuntura de desorganização institucional que teve lugar o chamado Massacre de 17 de novembro”. (p.2). O temor desses indivíduos gira em torno de uma ideia, possivelmente forjada, de que a instauração da república, restauraria a escravidão no país. O discurso da possibilidade do retorno ao “cativeiro” fomentou o medo dos ex-escravos, junto a um contexto de incertezas e instabilidade reinante no pós-abolição. É nesse cenário que acontece o Massacre de 17 de novembro: “Uma multidão de pessoas descritas como “libertos”, “homens de cor”, “cidadãos do 13 de maio” e “ex-escravos” saiu às ruas numa grande passeata em protesto contra as noticiais da proclamação da República” (p.2). Ainda nesse capítulo, o autor expõe como o poder simbólico pode servir para silenciar uma memória histórica.

No capítulo seguinte, o autor trabalha o conceito de raça no pós-abolição, relacionando a ideia de liberdade — depois do declínio eminente que o 13 de maio de 1888 trouxe à população senhorial— ao processo de racialização no Maranhão que categorizava a população em grupos. Neste sentido, Gato tenta explicar que o fim do sistema escravista e a “perda” do domínio senhorial, gerou uma perpetuidade em relação às questões raciais. O escritor evidencia o medo do retorno ao cativeiro, como germe capital para o início das revoltas. Para ele, “a insistência imperial na linha que separava cidadãos e escravos como divisão fundamental da sociedade permitia a ascensão controlada de pardos e mulatos livres e o surgimento de distinções sociais entre os de baixo” (p.37) O autor evidencia o desenvolvimento emancipatório e o processo de identificação da população através dos aspectos fenotípicos e culturais. No entanto, “tal problema impõe perguntas sobre a importância da cor como critério de distinção na estrutura social brasileira antes da abolição” (p.37): Por que a crise do escravismo é associada a “posição periférica do Maranhão” e ao desprestígio político frente ao Estado nacional? O escritor, porém, alerta que “qualquer interpretação sobre a construção social de raça como uma das formas dominantes de categorização e fabricação de grupos no Brasil precisa levar em conta as especificidades regionais” (p.69)

No terceiro capítulo, o pesquisador aborda as transformações locais que se deram no pós-abolição — momento de confronto, marcado por várias tentativas de legitimação por parte dos ex-escravos—, bem como os conflitos de valores durante a disputa por indenização aos senhores, donos de escravos. Segundo o autor, “a campanha de indenização mobilizou os sentimentos de decadência e desonra da aristocracia senhorial maranhense, o que trouxe à tona as imbricações entre raça e política” (p.77–81). Nesse sentindo, o clima que já era de hostilidade, aumentou consideravelmente após a tomada das ruas pelos negros que temiam que o novo regime impusesse a escravidão como ferramenta de controle. Nesse cenário, a violência se torna o principal método de opressão, criando um ambiente favorável a acontecimentos como o Massacre de 17 de novembro. Gato explica que a imagem da princesa Isabel cresceu no imaginário da população, sobretudo entre os libertos. Para o autor, há “indícios de que a gente negra enxergava na princesa Isabel uma garantia dos seus direitos civis e/ou se encontrava insegura quanto às consequências de uma transformação radical na forma de governo do país” (p.95)

No capítulo final, Gato trabalha o duplo sentido que palavra “massacre” carrega no imaginário da população maranhense e todo o simbolismo que o evento ocasiona, principalmente quando se refere aos negros, vítimas de um extermínio, não apenas de corpos, como também simbólico e que se estendeu no pós-abolição, agora, através de um novo estigma racial. Por fim, o autor explica a contribuição dos “boatos anônimos” para a proliferação das tensões. “Nesses contextos, os rumores não apenas transmitiam os medos e as esperanças em torno dos eventos, mas também constituíam a própria forma de acontecimentos” (p.105) Este cenário, de certa forma, colaborou para que este episódio ficasse marcado na mentalidade de um povo, que externou esse evento — onde a violência teve papel fundamental —, através de escritos memorialísticos, romances, literaturas, entre outros.

O livro nos faz pensar, como “O Massacre de 17 de novembro”, um evento que aconteceu no interior de São Luís, poderia explicar a situação do país no pós-abolição e como esses costumes poderiam exemplificar o racismo atual, adentrando na cultura memorialística e popular local, marcada por uma recente abolição e uma recente República.

Local de São Luís do Maranhão onde o massacre ocorreu, em foto tirada quase duas décadas depois | Foto: Gaudêncio Cunha/DW

Observa-se, porém, um vício no excesso de repetições de termos utilizados durante a leitura, fazendo o leitor pensar que se encontra parado no mesmo capítulo.

Todavia, como pontos positivos, podemos destacar a produtiva relação do autor com as fontes (relatos memorialísticos, literatura, biografias, artigos de jornais, cartas, notas de trabalho, entre outros), manuseadas para evocar o episódio, que por anos foi silenciado pelo simbolismo do sistema vigente e pelas disputas de memórias, como forma de evidenciar a perpetuação do racismo e da opressão, mascarados por uma ideia de “fraternidade racial”, veiculada pela bandeira do estado do Maranhão.

Sendo assim, a obra cumpre com aquilo que é proposto, respondendo aos questionamentos centrais. É um texto que pode ser utilizado como ferramenta de estudo, tanto por pesquisadores, estudantes e professores que têm o pós-abolição, início da República e as questões raciais como objetos de análise.

Sumário de O Massacre dos Libertos: Sobre raça e república no Brasil (1888–1889).

Apresentação

  • Introdução
  • 1. Uma malta de homens de cor;
  • 2. Raça e cidadania no Pós-Abolição maranhense;
  • 3. A Liberdade dos branco;
  • 4. O massacre;
  • Fraternidade racial.

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Maykon Paulo da Silva Guimarães é mestrando em História (PROHIS/UFS), bolsista de pesquisa (CAPES), especialista em História e Cultura Afro-brasileira (FAVENI) e graduado em História (UFS). Entre outros trabalhos, publicou A autodeclaração como forma de identidade – um breve debate sobre a banca de heteroidentificação: os problemas para a identificação do negros nas políticas de ações afirmativas do Brasil. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/2882028940034039. ID ORCID: https://orcid.org/0009-0002-9050-1388. E-mail: maykouzumak@gmail.com.


Para citar esta resenha

GATO, Matheus. O Massacre dos Libertos: Sobre raça e república no Brasil (1888–1889). São Paulo: Perspectiva, 2020. p.163. Resenha de: GUIMARÃES, Maykon Paulo da Silva. Memória em disputa. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/memoria-em-disputa-resenha-de-maykon-paulo-da-silva-guimaraes-prohis-ufs-sobre-a-obra-o-massacre-dos-libertos-sobre-raca-e-republica-no-brasil-1888-1889/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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