Memória, Segunda Geração de sobreviventes do Holocausto e Narrativa

Por Júlia Amaral Amato Moreira (NAFM/IBI) | ID Orcid: 0000-0002-9561-2688.

Cerimônia em homenagem aos mortos do ataque à sinagoga de Pittsburgh (EUA), realizada em frente ao monumento do Cemitério Israelita, Belo Horizonte-MG | Imagem: Facebook da Fisemg/Moreira (2022, p.74)

Neste artigo, analisamos a literatura historiográfica especializada sobre memória coletiva e narrativas orais, relacionando-a com os estudos do Holocausto, afim de apontar a “segunda geração” como um caso de memória que possa ser estudado em particular. Dessa maneira, o conceito de Pós-memória é apontado como possibilidade teórica. (Palavras-chave: Memória Coletiva; Segunda geração; Narrativa).

A memória, ou “a vida do passado no presente” (Todorov, 2002, p.141), ganhou a atenção da sociedade e dos estudos sociais na década de 60, com as demandas e discussões que ganharam o debate público acerca dos direitos civis e da contestação das narrativas hegemônicas. Nos anos que se seguiram, a história passou a abordar cada vez mais o tema da memória e a refletir sobre seus usos, métodos e sobre a abordagem de seus registros, as fontes de memória, entre elas os registros orais. O campo se desenvolveu muito em torno do tema do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial, não só nos países diretamente ligados ao evento, mas em todo o mundo, tendo o evento se tornado não apenas uma metáfora da violência e do trauma, mas um paradigma para os “casos de memória”, a partir dos quais diversas outras dinâmicas puderam ser pensadas. Assim, “quem disser memória dirá Shoah”[1]. No Brasil, a pauta da redemocratização após a ditadura militar e as narrativas de diferentes grupos, que ganharam fôlego nesse momento, também marcaram as discussões sobre a memória no país, sobretudo focadas nos processos através dos quais o país lidou com seu passado autoritário (Mauad, 2018).

O início de debates desta natureza foi possível a partir da conceituação da “Memória Coletiva”, operada pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs – ele próprio morto pelos nazistas – que deslocou a memória do lugar de lembrança individual para o âmbito social e coletivo. Na esteira desse deslocamento – seja em complementariedade ou em oposição – diversos autores buscaram compreender e complexificar os processos de rememoração, as situações de mobilização do passado, as disputas em torno dele e os processos sociais que operam com esses passados e fornecem sentido às experiências coletivas.

Para que essas reflexões fossem possíveis, mudanças paradigmáticas em relação à memória individual também foram necessárias, tanto influenciando quanto sendo influenciadas pela ideia de uma memória coletiva. A começar pela ideia de que memória – mesmo a individual – não é apenas resgate e ordenação de fatos do passado, como era concebida anteriormente, mas um processo complexo que implica reconstrução, releitura, distorção, parcialidade, esquecimento e ressignificação (Barros, 2009, p.39). A própria inscrição da memória na linguagem, que é social, já indicaria que os sujeitos nunca se lembram sozinhos, como defendia Halbwachs.

No entanto, outros teóricos apontaram limitações e teceram críticas a esse conceito, tal como constituído então, muitas vezes formulando outros conceitos ou cunhando outros termos como os “Lugares de Memória”, “metamemória”, ou mesmo a “memória social”, para evitar de incorrerem em certas falhas apontadas à memória coletiva de Halbwachs.

Michael Pollak, por exemplo, possivelmente mais influenciado pelo olhar historiográfico do fim do século XX, que se preocupava com as desigualdades e com os grupos subalternos, salienta o caráter opressor da memória coletiva em relação a outras possíveis narrativas. Esse olhar critica uma suposta homogeneidade da memória coletiva e destaca seu caráter conflituoso, expresso por um “enquadramento da memória” (Pollak, 1989, p.3-5).

Paul Ricoeur, em sua crítica às proposições de Halbwachs, ainda que reconhecendo a importância do fator coletivo para a memória, retoma a importância da espontaneidade do sujeito autêntico nesse processo. O autor se pergunta se Halbwachs teria ultrapassado a “linha invisível (…) que separa a tese do “nunca nos lembramos sozinhos” da tese do “não somos um sujeito autêntico de atribuição de lembranças” (Ricoeur, 2007, p.132).

Outros foram ainda mais longe na crítica do conceito. Susan Sontag afirma que, “em termos rigorosos, não existe o que se chama de memória coletiva” e que a memória coletiva não é uma rememoração, mas algo estipulado como importante (Sontag apud Suleiman, 2919, p.14). Ou nas palavras de Todorov, “a memória coletiva não é uma memória, mas um discurso que evolui no espaço público” (Todorov, 2002, p.154-155).

É exatamente essa dimensão da memória, que a localiza entre o individual e o social, o que torna esse objeto tão rico de possibilidades. Nas palavras de Susan Suleiman ao lidar com esse embate: “na verdade, ninguém pode ter e sentir exatamente as mesmas memórias. Ainda assim, as memórias são comunicáveis; elas são registradas e transmitidas, como bem sabe qualquer membro de uma família” (Suleiman, 2019, p.14. Ênfase do original). Família esta que já era reconhecida como importante para a transmissão da memória coletiva pelo próprio Halbwachs.

Alguns outros autores ainda denunciaram não um problema conceitual, mas os excessos, abusos ou obsessão da memória, alegando muitas vezes as problemáticas em se focar no passado, sobretudo o Holocausto, em detrimento de questões mais urgentes e relevantes para a sociedade atual. Porém, ainda segundo Susan Suleiman, “ainda que bastante salutares, em certo sentido, as recentes críticas à memória perdem o foco. Pois a ‘obsessão com a memória’ não pode ser rechaçada pelo simples fato de ser uma obsessão.” (Ibid. p. 19).   Talvez esse caráter obsessivo seja mais um fator que demonstra a importância de se entender tal fenômeno.

Todo esse debate acerca da memória, vale ressaltar, acompanhou e foi valorizado pelas mudanças na própria noção de historiografia, que passou de uma história factual ao entendimento de uma construção narrativa. Inicialmente, a história oral se inseriu nos estudos históricos a partir de um viés positivista, onde os testemunhos ajudariam, juntos ou associados a outras fontes, a “reconstruir” um passado, muitas vezes a partir de uma noção da história dos vencidos, ou a história dos grupos que não possuíam voz no meio social e, portanto, precisavam desse lugar para disputar sobre os passados. A partir dos anos 80, com a chamada “virada interpretativa” na historiografia, novos usos foram possíveis, a partir de um entendimento das entrevistas como uma construção acerca do passado realizada por determinados sujeitos em um determinado tempo (Hermeto; Amato, 2022). Assim, passaram a poder ser encaradas não apenas como subsídio para outro fim, mas como o próprio objeto de investigação.

Didi-Huberman (2017) – ele próprio filho de sobreviventes – propõe, como nos parece interessante, um olhar arqueológico para analisar a memória, de modo a pensá-la como camadas que se sobrepõem ao longo do tempo e que observamos a partir das inquietudes do nosso presente. Para isso, resgata Walter Benjamim – outra vítima da perseguição nazista – para refletir “primeiro, que a arte da memória não se reduz ao inventário dos objetos trazidos a luz, objetos claramente visíveis. Depois, que a arqueologia não é apenas uma técnica para explorar o passado, mas também, e principalmente, uma anamnese para compreender o presente” (Didi-Huberman, 2017, p.66-67). E por isso, seu estudo sempre encontra o trabalho feito a posteriori ao evento a que remete, organizado por um grupo social, em uma temporalidade plural e registrada no contexto de uma pesquisa acadêmica.

No contexto dos debates sobre a memória social, Ana Maria Mauad (2018) destaca um conceito caro ao recorte proposto: a noção de “geração”, que “permite associar um conjunto de representações e comportamentos de certa época a um conjunto de sujeitos sociais que os compartilham e experienciam” (Mauad, 2018, p.34). Não se trata do ano de nascimento dos sujeitos ou mesmo de uma faixa etária biológica, mas de suas narrativas sobre o passado, tecidas a partir de uma experiência comum, em geral marcada por acontecimentos traumáticos e marcantes. Isso não implica, no entanto, que pessoas que vivenciaram o mesmo tempo necessariamente terão experiências de vida semelhantes ou formas de pensar parecidas, mas que apresentarão respostas plurais a perguntas comuns do tempo que compartilham, do “espírito do tempo” (Dosse, 2006, p.45-60).

Nesse sentido, é possível dizer que cada geração inventa um novo passado, de acordo com as questões de seu tempo. Há autores que entendem a “segunda geração” como todos aqueles que vieram depois, envoltos do dilema da representação: o conflito entre a necessidade e a impossibilidade de representar o Holocausto, assim como a impossibilidade de separar memória e esquecimento (Hartman apud Seligmann-Silva, 2000, p.90). Mas as memórias a que nos referimos dizem respeito à da segunda geração literal, como denomina Hirsch, que possui a particularidade do laço e do convívio familiar com os sobreviventes de um evento que eles não viveram. Esse passado vem para eles muitas vezes por meio de um silêncio que diz muito, por uma linguagem afetiva e por sistemas simbólicos, como os costumes, as crenças, os medos, pesadelos, etc.

Essa geração tem ganhado lugar e se tornou uma categoria bem estabelecida nos estudos do Holocausto, sobretudo a partir dos estudos pioneiros de Helen Epstein, Children of the Holocaust (1979), e de Nadine Fresco, La diáspora des cendres (A diáspora das cinzas, 1981), que começaram o movimento de olhar para as maneiras como os filhos de sobreviventes vivenciaram a experiência dos pais.

Nas palavras de Pollak sobre o aumento de produções sobre o Holocausto em lugar do silenciamento, no fim do século XX,

quarenta anos depois convergem razões políticas e familiares que concorrem para romper esse silêncio: no momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento. E seus filhos, eles também querem saber, donde a proliferação atual de testemunhos e de publicações de jovens intelectuais judeus que fazem “da pesquisa de suas origens a origem de sua pesquisa”. (Pollak, 1989, p.4-5).

Michael Pollak (1948-1992) | Imagem: LIER-FYT

Esse movimento fica evidente nos dois sentidos apontados por Pollak. A maior abertura para a narrativa das vítimas, vista nas últimas décadas, ao lado do avanço na idade dos sobreviventes, fez com que esse tema se intensificasse, tanto publicamente quanto em âmbito familiar, como muitos dos vinte e dois filhos entrevistados por mim no âmbito do Projeto Herdeiros da Memória, entre 2017 e 2019, sinalizaram. Do outro lado, a idade dos filhos também foi muito relevante, haja vista a grande produção sobre o tema feita por e sobre essa geração em diversas áreas intelectuais, artísticas e mesmo museais. Nessas páginas, diversos desses nomes se evidenciam como subsídio para esse estudo: Helen Epstein, Marianne Hirsch, Didi-Huberman, entre outros. Além desses, talvez o mais famoso e conhecidamente mais estudado produto da segunda geração seja Maus, graphic novel de Art Spiegelman (1980).

Soma-se ainda o avanço tecnológico, que permitiu que os filhos pudessem acessar documentos e informações que compuseram sua narrativa, o que seria impossível alguns anos atrás. Sobre a especificidade dessa geração, a pós-memória é um dos entendimentos possíveis.

Juntamente com essa noção de geração, a sociabilidade constitui um fator importante. Na pesquisa que desenvolvemos, por exemplo, todos os sujeitos cujas narrativas buscamos analisar possuem alguma ligação com a comunidade judaica, seja porque estudaram nas escolas da comunidade durante a infância,[2] ou porque muitos deles participaram dos movimentos juvenis judaicos,[3] estiveram nos mesmos lugares e possivelmente vivenciaram os mesmos eventos e marcos. Essa afinidade nos permite traçar alguns apontamentos sobre as influências que tiveram em suas concepções, com o devido cuidado para suas particularidades, e também observar as diferenças que compõem sua narrativa em relação a esta da coletividade que compartilham.

Apoiados nessa discussão em torno da história da memória e dos diálogos contemporâneos, não se pretende, portanto, “dar a voz” ou “conceder a palavra” a nenhum sujeito que não a tenha e nem reconstruir um passado a partir de tais narrativas. Também não deve-se pretender fazer uma crítica da memória a partir de uma noção de protagonismo historiográfico na hierarquia das instâncias de análise, e tampouco de assumir um lugar no “dever da memória”. As narrativas a que recorremos a partir da história oral, são o próprio objeto, a partir do qual indagamos as dinâmicas e caminhos da memória e a atribuição de sentido ao passado compartilhado por um grupo geracional em sua auto narrativa no presente e suas perspectivas de futuro, construídas no contexto da própria pesquisa, no tempo presente.

As memórias, a partir do discutido acima, quando verbalizadas, “se fundem com o sistema simbólico intersubjetivo da linguagem e, a rigor, não são mais uma propriedade puramente exclusiva e inalienável” (Assman, 2012, p.32. Tradução nossa). Portanto, a narrativa constitui um campo importante de entendimento, o qual adentramos a partir de um lugar: “o das significações produzidas pelos sujeitos históricos em diálogo com suas experiências históricas” (Hermeto; Amato, 2022).

Ao organizar o passado através das palavras, mobilizando muito mais do que a experiência pessoal, uma entrevista oral não comunica apenas sobre o conteúdo de que se fala, mas sobre a própria fala enquanto ação do sujeito, ou dos sujeitos envolvidos no processo. A escolha das palavras, o ritmo, as subjetividades, tudo isso coloca à disposição do sujeito uma tecnologia comunicativa que é a própria fala, tecnologia capaz de “estender o corpo e acelerar seus sentidos, ampliando o domínio do humano sobre tudo aquilo que o rodeia” (Santhiago; De Magalhães, 2020, p.4), criada pelo ser humano e capaz de recriá-lo.

A mobilização linguística na narrativa portanto, não é função do acaso, mas uma mobilização do sujeito que fala do passado e constrói a si mesmo e ao presente, informando-nos sobre a realidade. No caso da pós-memória do Holocausto aqui analisada, por exemplo, a escolha de palavras pode nos dar dicas sobre a qual processo de memória aquela construção narrativa se refere, naquele momento. Na infância dos entrevistados e na convivência com sobreviventes do Holocausto em determinado contexto social, as representações sobre esse evento apareciam para eles através da dor, da perda, do desastre, da tragédia. Ademais não havia uma identificação, pelo menos não imediata, de uma perseguição aos judeus enquanto grupo.[4] Muitas vezes também todo o período foi referenciado como “a guerra” de forma geral, por vezes pelos sobreviventes e também por seus filhos, principalmente ao se referirem aquilo que seus pais disseram sobre o período.

Posteriormente, no debate público e nos meios formais de mediação do passado, o evento passou da “destruição dos judeus europeus”[5] para Holocausto, termo surgido nos últimos anos da década de 1950, mas majoritariamente usado a partir da década de 80, já com base em uma perspectiva de que este passado seria um evento histórico. Mesmo com essa passagem da tragédia pessoal para o debate público dos eventos históricos, o debate dos nomes[6] problematizou o termo Holocausto, devido à sua conotação religiosa e mística, que retira a historicidade. Muitos historiadores, instituições e sujeitos têm preferido o uso do termo Shoá.[7] A principal das vantagens dessa utilização é sua intraduzibilidade, que reflete a indizibilidade do evento e o individualiza, sendo uma palavra de origem hebraica. Por outro lado, por ressaltar a experiência judaica, é possível observar que o termo também se insere em uma complexa disputa pelo nomear do evento (Lerner, 2013, p.53). A maioria dos entrevistados optaram pelo uso do termo Holocausto, que utilizaremos majoritariamente na análise das entrevistas.

Virginia Buarque e Nara Rúbia Cunha resgatam Beatriz Sarlo para argumentar que é impróprio criticar historiograficamente de antemão um testemunho, já que estes costumam narrar experiências extraordinárias que raramente podem ser cotejadas com outras fontes. O testemunho, segundo argumentam as autoras, é pautado na excepcionalidade de situações limite. No entanto, entendemos que as considerações tecidas sobre o testemunho sejam também extensíveis àqueles que, mesmo que não vivenciando tais situações limite, colocam-se a falar sobre sua relação com elas e sua experimentação da dor do outro – um outro muito próximo – e, portanto, podem nos auxiliar no entendimento das narrativas de segunda geração.

Em primeiro lugar, apontam, os testemunhos apresentam uma concepção específica do real, expressa na excepcionalidade de sua experiência e do regime de verdade que é particular ao relato. Em segundo lugar, apresentam uma configuração temporal que imbrica o passado das memórias recuperadas, um futuro de perspectivas, e o presente redesenhado, implicando simultaneidade em lugar de sucessão. Em terceiro lugar, o testemunho é expresso em linguagem intersubjetiva e fiduciária. Por último, as autoras destacam a aspiração ética por uma vida pública mais justa e reconciliada (Buarque; Cunha, 2015, p.9-27). Além disso, para Buarque e Cunha, estes quatro aspectos podem eventualmente configurar a própria produção da escrita da história, proposta que chamam de “historiografia em viés testemunhal”. Essa proposta parece-nos interessante por aproximar o testemunho e a historiografia, dialogando e ao mesmo tempo contrapondo o possível abismo constitutivo entre História e Memória, como visto anteriormente.

Entretanto, por não terem experimentado as angustias do Holocausto, damos aqui preferência ao termo “trauma”, para o caso da segunda geração, e não “situação limite” como usado pelas autoras, uma vez que nos referimos a um efeito a longo prazo, menos relacionado à situação em si e mais às suas consequências.

Ao se colocar no ato da fala, o impartilhável – aquilo que aparece como “não lembro” ou “não posso exatamente transmitir” – é o pano de fundo do partilhado (Ibid, p 20). O que é partilhado, ou seja, a narrativa expressa pela linguagem, é como a superfície. Poderíamos pensar que a superfície é o que esconde o cerne da coisa, o maquia. Mas, como poeticamente diz Didi-Huberman, as superfícies, como as cascas das árvores, são aquilo que caem das coisas, que se origina delas, se separam e vêm até nós. E as cascas não são menos verdadeiras do que o tronco (Didi-Huberman, 2017, p.70). Esse esforço de significar o vivido, incorpora à linguagem as “hesitações, contradições e incompletudes” (BUARQUE; CUNHA. op. cit. p 21), articulados através do olhar lúcido de quem assume a ação de tentar dizer em palavras. Segundo as autoras, esse esforço de significação do passado exige conjuntamente um exercício imaginativo. Entendemos que esse esforço imaginativo é um importante aspecto para as formulações da pós-memória.

Diante disso, o conceito de pós-memória formulado por Marianne Hirsch parece apontar as complexidades inerentes às narrativas de segunda geração: as continuidades de uma “memória” transmitida junta a incontornável ruptura daquilo que é “pós”. Filhos de sobreviventes do Holocausto recorrem ao passado em sua auto narrativa, ao mesmo passo em que se veem diante do abismo geracional gerado pela catástrofe. Percebem a impossibilidade de conhecer o passado, diante da necessidade de sabê-lo. É esta constante dualidade que torna a segunda geração um “caso” ou “crise” de memória: episódios que, ao recorrerem ao passado, demandam uma reorganização identitária e narrativa, ou que apresentam um dilema em relação às lembranças de um indivíduo ou de um grupo (Suleiman, 2019, p. 12).

Referências

ASSMAN, Aleida. apud HIRSCH, Marianne. The Generation of Postmemor: Writing and Visual Culture After the Holocaust. Columbia University Press, 2012.

BARROS, José D.’Assunção. História e memória–uma relação na confluência entre tempo e espaço. Mouseion. Canoas, v. 3, n. 5, p. 35-67, 2009.

BUARQUE, Virgínia A. Castro e CUNHA, Nara Rúbia. A historiografia em viés testemunhal: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 20, n. 2, p. 9-27, 2015.

DANZIGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v.1, n.1, pp. 50-58, 2007.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.

DOSSE, François. La marcha de las ideias. Historia de los intelectuales, história intelectual. Valência: PUV, 2006.

HARTMAN apud SELIGMANN-SILVA, Marcio. A história como trauma. Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000.

HERMETO, Miriam e AMATO, Gabriel. Performance narrativa em entrevistas públicas de história oral: “E 68, hein? Memórias públicas de um ano inesquecível”. In: MOREIRA, Jacqueline de Oliveira e KIND, Luciana (org.). Pesquisas com Narrativas na Ciências Humanas: Psicanálise, Psicologia Social, Sociologia e História. Porto Alegre: Editora PUCRS, no prelo.

LERNER, Katia. Memórias de dor: coleções e narrativas sobre o Holocausto. Brasília: Minc/IBRAM, 2013.

MAUAD, Ana Maria. “Usos do passado e história pública: a trajetória do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (1982-2017)”. História Crítica. Bogotá, n. 68, 2018.

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

SANTHIAGO, Ricardo; DE MAGALHÃES, Valéria Barbosa. Rompendo o isolamento: Reflexões sobre história oral e entrevistas à distância. Anos 90. Porto Alegre, v. 27, p. 1-18, 2020.

SULEIMAN, Susan. Crises de memória e a Segunda Guerra Mundial. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019

TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem: uma análise do século XX. São Paulo: Arx, 2002.

Notas

[1] Frase atribuída a Pierra Nora por Jay Winter. SULEIMAN, Susan. Crises de memória e a Segunda Guerra Mundial. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019. p. 12.

[2] A primeira escola de Belo Horizonte, a Escola Israelita Brasileira, começou a funcionar em 1929. A Escola Theodor Herzl foi fundada em 1961 e funciona até hoje. Com a fundação desta segunda, consequência de uma cisão ideológica na comunidade, a Escola Israelita Brasileira, em decadência, passou a funcionar na União Israelita Brasileira, como Escola Integrada Albert Einstein, em 1966.

[3] Além das escolas, outro importante lugar de formação e sociabilidade nas comunidades judaicas são os movimentos juvenis, de diferentes vertentes ideológicas. Veremos mais detalhes no capítulo 1.

[4] No documentário “Campos de concentração nazistas”, com filmagens do fim da guerra, em 1945, por exemplo, as vítimas são descritas por suas nacionalidades.

[5] Título do famoso livro de Raul Hilberg, publicado pela primeira vez em 1961 e considerado um dos fundadores dos estudos do Holocausto

[6] Ver: DANZIGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi: Revista digital de estudos judaicos da UFMG, v.1, n.1, pp. 50-58, 2007.

[7] Shoá e Shoah são sinônimos, a diferença de grafia vem da dificuldade em transliterar, ou seja, passar da grafia hebraica para a latina, tentando apreender os sons das letras, e as convenções usadas para isso.


Para ampliar a sua revisão da literatura


Autora

Júlia Amaral Amato Moreira – Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faz parte do Núcleo Anne Frank de Minas Gerais e é uma das coordenadoras do Laboratório História e Memória do Holocausto do Projeto IBI no Campus (Instituto Brasil-Israel). Sua dissertação de mestrado intitula-se “Eu vivi visceralmente esse sentimento de perda”: pós-memória e narrativas dos filhos de sobreviventes do Holocausto em Belo Horizonte (1945-2019). ID LATTES: 1117175305573958; ID ORCID: 0000-0002-9561-2688; E – mail: juliaamaralamoreira@gmail.com.

 


Para citar este artigo

MOREIRA, Júlia Amaral Amato. Memória, Segunda Geração de sobreviventes do Holocausto e Narrativa. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/memoria-segunda-geracao-de-sobreviventes-do-holocausto-e-narrativa/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisa/Search

Alertas/Alerts

Memória, Segunda Geração de sobreviventes do Holocausto e Narrativa

Por Júlia Amaral Amato Moreira (NAFM/IBI) | ID Orcid: 0000-0002-9561-2688.

Cerimônia em homenagem aos mortos do ataque à sinagoga de Pittsburgh (EUA), realizada em frente ao monumento do Cemitério Israelita, Belo Horizonte-MG | Imagem: Facebook da Fisemg/Moreira (2022, p.74)

Neste artigo, analisamos a literatura historiográfica especializada sobre memória coletiva e narrativas orais, relacionando-a com os estudos do Holocausto, afim de apontar a “segunda geração” como um caso de memória que possa ser estudado em particular. Dessa maneira, o conceito de Pós-memória é apontado como possibilidade teórica. (Palavras-chave: Memória Coletiva; Segunda geração; Narrativa).

A memória, ou “a vida do passado no presente” (Todorov, 2002, p.141), ganhou a atenção da sociedade e dos estudos sociais na década de 60, com as demandas e discussões que ganharam o debate público acerca dos direitos civis e da contestação das narrativas hegemônicas. Nos anos que se seguiram, a história passou a abordar cada vez mais o tema da memória e a refletir sobre seus usos, métodos e sobre a abordagem de seus registros, as fontes de memória, entre elas os registros orais. O campo se desenvolveu muito em torno do tema do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial, não só nos países diretamente ligados ao evento, mas em todo o mundo, tendo o evento se tornado não apenas uma metáfora da violência e do trauma, mas um paradigma para os “casos de memória”, a partir dos quais diversas outras dinâmicas puderam ser pensadas. Assim, “quem disser memória dirá Shoah”[1]. No Brasil, a pauta da redemocratização após a ditadura militar e as narrativas de diferentes grupos, que ganharam fôlego nesse momento, também marcaram as discussões sobre a memória no país, sobretudo focadas nos processos através dos quais o país lidou com seu passado autoritário (Mauad, 2018).

O início de debates desta natureza foi possível a partir da conceituação da “Memória Coletiva”, operada pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs – ele próprio morto pelos nazistas – que deslocou a memória do lugar de lembrança individual para o âmbito social e coletivo. Na esteira desse deslocamento – seja em complementariedade ou em oposição – diversos autores buscaram compreender e complexificar os processos de rememoração, as situações de mobilização do passado, as disputas em torno dele e os processos sociais que operam com esses passados e fornecem sentido às experiências coletivas.

Para que essas reflexões fossem possíveis, mudanças paradigmáticas em relação à memória individual também foram necessárias, tanto influenciando quanto sendo influenciadas pela ideia de uma memória coletiva. A começar pela ideia de que memória – mesmo a individual – não é apenas resgate e ordenação de fatos do passado, como era concebida anteriormente, mas um processo complexo que implica reconstrução, releitura, distorção, parcialidade, esquecimento e ressignificação (Barros, 2009, p.39). A própria inscrição da memória na linguagem, que é social, já indicaria que os sujeitos nunca se lembram sozinhos, como defendia Halbwachs.

No entanto, outros teóricos apontaram limitações e teceram críticas a esse conceito, tal como constituído então, muitas vezes formulando outros conceitos ou cunhando outros termos como os “Lugares de Memória”, “metamemória”, ou mesmo a “memória social”, para evitar de incorrerem em certas falhas apontadas à memória coletiva de Halbwachs.

Michael Pollak, por exemplo, possivelmente mais influenciado pelo olhar historiográfico do fim do século XX, que se preocupava com as desigualdades e com os grupos subalternos, salienta o caráter opressor da memória coletiva em relação a outras possíveis narrativas. Esse olhar critica uma suposta homogeneidade da memória coletiva e destaca seu caráter conflituoso, expresso por um “enquadramento da memória” (Pollak, 1989, p.3-5).

Paul Ricoeur, em sua crítica às proposições de Halbwachs, ainda que reconhecendo a importância do fator coletivo para a memória, retoma a importância da espontaneidade do sujeito autêntico nesse processo. O autor se pergunta se Halbwachs teria ultrapassado a “linha invisível (…) que separa a tese do “nunca nos lembramos sozinhos” da tese do “não somos um sujeito autêntico de atribuição de lembranças” (Ricoeur, 2007, p.132).

Outros foram ainda mais longe na crítica do conceito. Susan Sontag afirma que, “em termos rigorosos, não existe o que se chama de memória coletiva” e que a memória coletiva não é uma rememoração, mas algo estipulado como importante (Sontag apud Suleiman, 2919, p.14). Ou nas palavras de Todorov, “a memória coletiva não é uma memória, mas um discurso que evolui no espaço público” (Todorov, 2002, p.154-155).

É exatamente essa dimensão da memória, que a localiza entre o individual e o social, o que torna esse objeto tão rico de possibilidades. Nas palavras de Susan Suleiman ao lidar com esse embate: “na verdade, ninguém pode ter e sentir exatamente as mesmas memórias. Ainda assim, as memórias são comunicáveis; elas são registradas e transmitidas, como bem sabe qualquer membro de uma família” (Suleiman, 2019, p.14. Ênfase do original). Família esta que já era reconhecida como importante para a transmissão da memória coletiva pelo próprio Halbwachs.

Alguns outros autores ainda denunciaram não um problema conceitual, mas os excessos, abusos ou obsessão da memória, alegando muitas vezes as problemáticas em se focar no passado, sobretudo o Holocausto, em detrimento de questões mais urgentes e relevantes para a sociedade atual. Porém, ainda segundo Susan Suleiman, “ainda que bastante salutares, em certo sentido, as recentes críticas à memória perdem o foco. Pois a ‘obsessão com a memória’ não pode ser rechaçada pelo simples fato de ser uma obsessão.” (Ibid. p. 19).   Talvez esse caráter obsessivo seja mais um fator que demonstra a importância de se entender tal fenômeno.

Todo esse debate acerca da memória, vale ressaltar, acompanhou e foi valorizado pelas mudanças na própria noção de historiografia, que passou de uma história factual ao entendimento de uma construção narrativa. Inicialmente, a história oral se inseriu nos estudos históricos a partir de um viés positivista, onde os testemunhos ajudariam, juntos ou associados a outras fontes, a “reconstruir” um passado, muitas vezes a partir de uma noção da história dos vencidos, ou a história dos grupos que não possuíam voz no meio social e, portanto, precisavam desse lugar para disputar sobre os passados. A partir dos anos 80, com a chamada “virada interpretativa” na historiografia, novos usos foram possíveis, a partir de um entendimento das entrevistas como uma construção acerca do passado realizada por determinados sujeitos em um determinado tempo (Hermeto; Amato, 2022). Assim, passaram a poder ser encaradas não apenas como subsídio para outro fim, mas como o próprio objeto de investigação.

Didi-Huberman (2017) – ele próprio filho de sobreviventes – propõe, como nos parece interessante, um olhar arqueológico para analisar a memória, de modo a pensá-la como camadas que se sobrepõem ao longo do tempo e que observamos a partir das inquietudes do nosso presente. Para isso, resgata Walter Benjamim – outra vítima da perseguição nazista – para refletir “primeiro, que a arte da memória não se reduz ao inventário dos objetos trazidos a luz, objetos claramente visíveis. Depois, que a arqueologia não é apenas uma técnica para explorar o passado, mas também, e principalmente, uma anamnese para compreender o presente” (Didi-Huberman, 2017, p.66-67). E por isso, seu estudo sempre encontra o trabalho feito a posteriori ao evento a que remete, organizado por um grupo social, em uma temporalidade plural e registrada no contexto de uma pesquisa acadêmica.

No contexto dos debates sobre a memória social, Ana Maria Mauad (2018) destaca um conceito caro ao recorte proposto: a noção de “geração”, que “permite associar um conjunto de representações e comportamentos de certa época a um conjunto de sujeitos sociais que os compartilham e experienciam” (Mauad, 2018, p.34). Não se trata do ano de nascimento dos sujeitos ou mesmo de uma faixa etária biológica, mas de suas narrativas sobre o passado, tecidas a partir de uma experiência comum, em geral marcada por acontecimentos traumáticos e marcantes. Isso não implica, no entanto, que pessoas que vivenciaram o mesmo tempo necessariamente terão experiências de vida semelhantes ou formas de pensar parecidas, mas que apresentarão respostas plurais a perguntas comuns do tempo que compartilham, do “espírito do tempo” (Dosse, 2006, p.45-60).

Nesse sentido, é possível dizer que cada geração inventa um novo passado, de acordo com as questões de seu tempo. Há autores que entendem a “segunda geração” como todos aqueles que vieram depois, envoltos do dilema da representação: o conflito entre a necessidade e a impossibilidade de representar o Holocausto, assim como a impossibilidade de separar memória e esquecimento (Hartman apud Seligmann-Silva, 2000, p.90). Mas as memórias a que nos referimos dizem respeito à da segunda geração literal, como denomina Hirsch, que possui a particularidade do laço e do convívio familiar com os sobreviventes de um evento que eles não viveram. Esse passado vem para eles muitas vezes por meio de um silêncio que diz muito, por uma linguagem afetiva e por sistemas simbólicos, como os costumes, as crenças, os medos, pesadelos, etc.

Essa geração tem ganhado lugar e se tornou uma categoria bem estabelecida nos estudos do Holocausto, sobretudo a partir dos estudos pioneiros de Helen Epstein, Children of the Holocaust (1979), e de Nadine Fresco, La diáspora des cendres (A diáspora das cinzas, 1981), que começaram o movimento de olhar para as maneiras como os filhos de sobreviventes vivenciaram a experiência dos pais.

Nas palavras de Pollak sobre o aumento de produções sobre o Holocausto em lugar do silenciamento, no fim do século XX,

quarenta anos depois convergem razões políticas e familiares que concorrem para romper esse silêncio: no momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento. E seus filhos, eles também querem saber, donde a proliferação atual de testemunhos e de publicações de jovens intelectuais judeus que fazem “da pesquisa de suas origens a origem de sua pesquisa”. (Pollak, 1989, p.4-5).

Michael Pollak (1948-1992) | Imagem: LIER-FYT

Esse movimento fica evidente nos dois sentidos apontados por Pollak. A maior abertura para a narrativa das vítimas, vista nas últimas décadas, ao lado do avanço na idade dos sobreviventes, fez com que esse tema se intensificasse, tanto publicamente quanto em âmbito familiar, como muitos dos vinte e dois filhos entrevistados por mim no âmbito do Projeto Herdeiros da Memória, entre 2017 e 2019, sinalizaram. Do outro lado, a idade dos filhos também foi muito relevante, haja vista a grande produção sobre o tema feita por e sobre essa geração em diversas áreas intelectuais, artísticas e mesmo museais. Nessas páginas, diversos desses nomes se evidenciam como subsídio para esse estudo: Helen Epstein, Marianne Hirsch, Didi-Huberman, entre outros. Além desses, talvez o mais famoso e conhecidamente mais estudado produto da segunda geração seja Maus, graphic novel de Art Spiegelman (1980).

Soma-se ainda o avanço tecnológico, que permitiu que os filhos pudessem acessar documentos e informações que compuseram sua narrativa, o que seria impossível alguns anos atrás. Sobre a especificidade dessa geração, a pós-memória é um dos entendimentos possíveis.

Juntamente com essa noção de geração, a sociabilidade constitui um fator importante. Na pesquisa que desenvolvemos, por exemplo, todos os sujeitos cujas narrativas buscamos analisar possuem alguma ligação com a comunidade judaica, seja porque estudaram nas escolas da comunidade durante a infância,[2] ou porque muitos deles participaram dos movimentos juvenis judaicos,[3] estiveram nos mesmos lugares e possivelmente vivenciaram os mesmos eventos e marcos. Essa afinidade nos permite traçar alguns apontamentos sobre as influências que tiveram em suas concepções, com o devido cuidado para suas particularidades, e também observar as diferenças que compõem sua narrativa em relação a esta da coletividade que compartilham.

Apoiados nessa discussão em torno da história da memória e dos diálogos contemporâneos, não se pretende, portanto, “dar a voz” ou “conceder a palavra” a nenhum sujeito que não a tenha e nem reconstruir um passado a partir de tais narrativas. Também não deve-se pretender fazer uma crítica da memória a partir de uma noção de protagonismo historiográfico na hierarquia das instâncias de análise, e tampouco de assumir um lugar no “dever da memória”. As narrativas a que recorremos a partir da história oral, são o próprio objeto, a partir do qual indagamos as dinâmicas e caminhos da memória e a atribuição de sentido ao passado compartilhado por um grupo geracional em sua auto narrativa no presente e suas perspectivas de futuro, construídas no contexto da própria pesquisa, no tempo presente.

As memórias, a partir do discutido acima, quando verbalizadas, “se fundem com o sistema simbólico intersubjetivo da linguagem e, a rigor, não são mais uma propriedade puramente exclusiva e inalienável” (Assman, 2012, p.32. Tradução nossa). Portanto, a narrativa constitui um campo importante de entendimento, o qual adentramos a partir de um lugar: “o das significações produzidas pelos sujeitos históricos em diálogo com suas experiências históricas” (Hermeto; Amato, 2022).

Ao organizar o passado através das palavras, mobilizando muito mais do que a experiência pessoal, uma entrevista oral não comunica apenas sobre o conteúdo de que se fala, mas sobre a própria fala enquanto ação do sujeito, ou dos sujeitos envolvidos no processo. A escolha das palavras, o ritmo, as subjetividades, tudo isso coloca à disposição do sujeito uma tecnologia comunicativa que é a própria fala, tecnologia capaz de “estender o corpo e acelerar seus sentidos, ampliando o domínio do humano sobre tudo aquilo que o rodeia” (Santhiago; De Magalhães, 2020, p.4), criada pelo ser humano e capaz de recriá-lo.

A mobilização linguística na narrativa portanto, não é função do acaso, mas uma mobilização do sujeito que fala do passado e constrói a si mesmo e ao presente, informando-nos sobre a realidade. No caso da pós-memória do Holocausto aqui analisada, por exemplo, a escolha de palavras pode nos dar dicas sobre a qual processo de memória aquela construção narrativa se refere, naquele momento. Na infância dos entrevistados e na convivência com sobreviventes do Holocausto em determinado contexto social, as representações sobre esse evento apareciam para eles através da dor, da perda, do desastre, da tragédia. Ademais não havia uma identificação, pelo menos não imediata, de uma perseguição aos judeus enquanto grupo.[4] Muitas vezes também todo o período foi referenciado como “a guerra” de forma geral, por vezes pelos sobreviventes e também por seus filhos, principalmente ao se referirem aquilo que seus pais disseram sobre o período.

Posteriormente, no debate público e nos meios formais de mediação do passado, o evento passou da “destruição dos judeus europeus”[5] para Holocausto, termo surgido nos últimos anos da década de 1950, mas majoritariamente usado a partir da década de 80, já com base em uma perspectiva de que este passado seria um evento histórico. Mesmo com essa passagem da tragédia pessoal para o debate público dos eventos históricos, o debate dos nomes[6] problematizou o termo Holocausto, devido à sua conotação religiosa e mística, que retira a historicidade. Muitos historiadores, instituições e sujeitos têm preferido o uso do termo Shoá.[7] A principal das vantagens dessa utilização é sua intraduzibilidade, que reflete a indizibilidade do evento e o individualiza, sendo uma palavra de origem hebraica. Por outro lado, por ressaltar a experiência judaica, é possível observar que o termo também se insere em uma complexa disputa pelo nomear do evento (Lerner, 2013, p.53). A maioria dos entrevistados optaram pelo uso do termo Holocausto, que utilizaremos majoritariamente na análise das entrevistas.

Virginia Buarque e Nara Rúbia Cunha resgatam Beatriz Sarlo para argumentar que é impróprio criticar historiograficamente de antemão um testemunho, já que estes costumam narrar experiências extraordinárias que raramente podem ser cotejadas com outras fontes. O testemunho, segundo argumentam as autoras, é pautado na excepcionalidade de situações limite. No entanto, entendemos que as considerações tecidas sobre o testemunho sejam também extensíveis àqueles que, mesmo que não vivenciando tais situações limite, colocam-se a falar sobre sua relação com elas e sua experimentação da dor do outro – um outro muito próximo – e, portanto, podem nos auxiliar no entendimento das narrativas de segunda geração.

Em primeiro lugar, apontam, os testemunhos apresentam uma concepção específica do real, expressa na excepcionalidade de sua experiência e do regime de verdade que é particular ao relato. Em segundo lugar, apresentam uma configuração temporal que imbrica o passado das memórias recuperadas, um futuro de perspectivas, e o presente redesenhado, implicando simultaneidade em lugar de sucessão. Em terceiro lugar, o testemunho é expresso em linguagem intersubjetiva e fiduciária. Por último, as autoras destacam a aspiração ética por uma vida pública mais justa e reconciliada (Buarque; Cunha, 2015, p.9-27). Além disso, para Buarque e Cunha, estes quatro aspectos podem eventualmente configurar a própria produção da escrita da história, proposta que chamam de “historiografia em viés testemunhal”. Essa proposta parece-nos interessante por aproximar o testemunho e a historiografia, dialogando e ao mesmo tempo contrapondo o possível abismo constitutivo entre História e Memória, como visto anteriormente.

Entretanto, por não terem experimentado as angustias do Holocausto, damos aqui preferência ao termo “trauma”, para o caso da segunda geração, e não “situação limite” como usado pelas autoras, uma vez que nos referimos a um efeito a longo prazo, menos relacionado à situação em si e mais às suas consequências.

Ao se colocar no ato da fala, o impartilhável – aquilo que aparece como “não lembro” ou “não posso exatamente transmitir” – é o pano de fundo do partilhado (Ibid, p 20). O que é partilhado, ou seja, a narrativa expressa pela linguagem, é como a superfície. Poderíamos pensar que a superfície é o que esconde o cerne da coisa, o maquia. Mas, como poeticamente diz Didi-Huberman, as superfícies, como as cascas das árvores, são aquilo que caem das coisas, que se origina delas, se separam e vêm até nós. E as cascas não são menos verdadeiras do que o tronco (Didi-Huberman, 2017, p.70). Esse esforço de significar o vivido, incorpora à linguagem as “hesitações, contradições e incompletudes” (BUARQUE; CUNHA. op. cit. p 21), articulados através do olhar lúcido de quem assume a ação de tentar dizer em palavras. Segundo as autoras, esse esforço de significação do passado exige conjuntamente um exercício imaginativo. Entendemos que esse esforço imaginativo é um importante aspecto para as formulações da pós-memória.

Diante disso, o conceito de pós-memória formulado por Marianne Hirsch parece apontar as complexidades inerentes às narrativas de segunda geração: as continuidades de uma “memória” transmitida junta a incontornável ruptura daquilo que é “pós”. Filhos de sobreviventes do Holocausto recorrem ao passado em sua auto narrativa, ao mesmo passo em que se veem diante do abismo geracional gerado pela catástrofe. Percebem a impossibilidade de conhecer o passado, diante da necessidade de sabê-lo. É esta constante dualidade que torna a segunda geração um “caso” ou “crise” de memória: episódios que, ao recorrerem ao passado, demandam uma reorganização identitária e narrativa, ou que apresentam um dilema em relação às lembranças de um indivíduo ou de um grupo (Suleiman, 2019, p. 12).

Referências

ASSMAN, Aleida. apud HIRSCH, Marianne. The Generation of Postmemor: Writing and Visual Culture After the Holocaust. Columbia University Press, 2012.

BARROS, José D.’Assunção. História e memória–uma relação na confluência entre tempo e espaço. Mouseion. Canoas, v. 3, n. 5, p. 35-67, 2009.

BUARQUE, Virgínia A. Castro e CUNHA, Nara Rúbia. A historiografia em viés testemunhal: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 20, n. 2, p. 9-27, 2015.

DANZIGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v.1, n.1, pp. 50-58, 2007.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.

DOSSE, François. La marcha de las ideias. Historia de los intelectuales, história intelectual. Valência: PUV, 2006.

HARTMAN apud SELIGMANN-SILVA, Marcio. A história como trauma. Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000.

HERMETO, Miriam e AMATO, Gabriel. Performance narrativa em entrevistas públicas de história oral: “E 68, hein? Memórias públicas de um ano inesquecível”. In: MOREIRA, Jacqueline de Oliveira e KIND, Luciana (org.). Pesquisas com Narrativas na Ciências Humanas: Psicanálise, Psicologia Social, Sociologia e História. Porto Alegre: Editora PUCRS, no prelo.

LERNER, Katia. Memórias de dor: coleções e narrativas sobre o Holocausto. Brasília: Minc/IBRAM, 2013.

MAUAD, Ana Maria. “Usos do passado e história pública: a trajetória do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (1982-2017)”. História Crítica. Bogotá, n. 68, 2018.

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

SANTHIAGO, Ricardo; DE MAGALHÃES, Valéria Barbosa. Rompendo o isolamento: Reflexões sobre história oral e entrevistas à distância. Anos 90. Porto Alegre, v. 27, p. 1-18, 2020.

SULEIMAN, Susan. Crises de memória e a Segunda Guerra Mundial. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019

TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem: uma análise do século XX. São Paulo: Arx, 2002.

Notas

[1] Frase atribuída a Pierra Nora por Jay Winter. SULEIMAN, Susan. Crises de memória e a Segunda Guerra Mundial. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019. p. 12.

[2] A primeira escola de Belo Horizonte, a Escola Israelita Brasileira, começou a funcionar em 1929. A Escola Theodor Herzl foi fundada em 1961 e funciona até hoje. Com a fundação desta segunda, consequência de uma cisão ideológica na comunidade, a Escola Israelita Brasileira, em decadência, passou a funcionar na União Israelita Brasileira, como Escola Integrada Albert Einstein, em 1966.

[3] Além das escolas, outro importante lugar de formação e sociabilidade nas comunidades judaicas são os movimentos juvenis, de diferentes vertentes ideológicas. Veremos mais detalhes no capítulo 1.

[4] No documentário “Campos de concentração nazistas”, com filmagens do fim da guerra, em 1945, por exemplo, as vítimas são descritas por suas nacionalidades.

[5] Título do famoso livro de Raul Hilberg, publicado pela primeira vez em 1961 e considerado um dos fundadores dos estudos do Holocausto

[6] Ver: DANZIGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi: Revista digital de estudos judaicos da UFMG, v.1, n.1, pp. 50-58, 2007.

[7] Shoá e Shoah são sinônimos, a diferença de grafia vem da dificuldade em transliterar, ou seja, passar da grafia hebraica para a latina, tentando apreender os sons das letras, e as convenções usadas para isso.


Para ampliar a sua revisão da literatura


Autora

Júlia Amaral Amato Moreira – Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faz parte do Núcleo Anne Frank de Minas Gerais e é uma das coordenadoras do Laboratório História e Memória do Holocausto do Projeto IBI no Campus (Instituto Brasil-Israel). Sua dissertação de mestrado intitula-se “Eu vivi visceralmente esse sentimento de perda”: pós-memória e narrativas dos filhos de sobreviventes do Holocausto em Belo Horizonte (1945-2019). ID LATTES: 1117175305573958; ID ORCID: 0000-0002-9561-2688; E – mail: juliaamaralamoreira@gmail.com.

 


Para citar este artigo

MOREIRA, Júlia Amaral Amato. Memória, Segunda Geração de sobreviventes do Holocausto e Narrativa. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/memoria-segunda-geracao-de-sobreviventes-do-holocausto-e-narrativa/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Resenhistas

Privacidade

Ao se inscrever nesta lista de e-mails, você estará sujeito à nossa política de privacidade.

Acesso livre

Crítica Historiográfica não cobra taxas para submissão, publicação ou uso dos artigos. Os leitores podem baixar, copiar, distribuir, imprimir os textos para fins não comerciais, desde que citem a fonte.

Foco e escopo

Publicamos resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas acadêmicas que tratem da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História. Saiba mais sobre o único periódico de História inteiramente dedicado à Crítica em formato resenha.

Corpo editorial

Somos professore(a)s do ensino superior brasileiro, especializado(a)s em mais de duas dezenas de áreas relacionadas à reflexão, produção e usos da História. Faça parte dessa equipe.

Submissões

As resenhas devem expressar avaliações de livros ou de dossiês de revistas acadêmicas autodesignadas como "de História". Conheça as normas e envie-nos o seu texto.

Pesquisa


Enviar mensagem de WhatsApp