Narrativa Histórica e Demandas Sociais – Resenha de “A Cidade em Chamas: O Serviço de Extinção de Incêndios em Natal/RN (1917-1955), de Flademir Gonçalves Dantas

Resenhado por João Maurício Gomes Neto | ID ORCID: 0000-0003-0194-6802.


Flademir Gonçalves Dantas | Foto: Acervo do autor

A Cidade em Chamas: O Serviço de Extinção de Incêndios em Natal/RN (1917-1955), doravante A Cidade em Chamas, foi escrita por Flademir Gonçalves Dantas, que possui duas graduações (História e Direito), especialização em Direito Público e mestrado em História, todas estas formações pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Trata-se do primeiro volume de uma trilogia que contará a história do serviço de extinção e prevenção de incêndios, atualmente Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Norte – CBMRN, em três recortes cronológicos lineares. O segundo e o terceiro volumes, ainda a serem publicados, abarcarão, respectivamente, os recortes entre 1955-1976 e de 1976 a 2002. A obra é prefaciada pelo Professor Emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN, Carlos Roberto de Miranda Gomes, que também se anuncia membro das Academias ANRL, AML, ALEJURN, ABROL, IHGRN, UBE-RN e MHV da OAB/RN. Conta também com uma apresentação de autoria de Luiz Monteiro da Silva Junior, comandante geral do Corpo de Bombeiros do Estado potiguar.

O livro está organizado em dez capítulos, sendo que o primeiro o introduz e comunica o objetivo, notas discretas sobre a escolha teórico-metodológica e a discussão bibliográfica. Este último exercício denota sobretudo o silêncio e a raridade dos trabalhos a respeito da temática no âmbito da sociedade norte-rio-grandense, elemento que serve de justificativa a produção ensejada. O objetivo central é “estimular as novas gerações de bombeiros a conhecerem o […] rico passado” (p. 22) da corporação e se ancora dentro de uma história institucional militar, com ênfase na experiência dos seus membros, “sem descartar o caráter utilitário da história enquanto ferramenta para aprender com o passado” (p. 22).

Em termos teórico-metodológicos, a narrativa é fundamentada nas proposições de Fernando Velôzo Gomes Pedrosa (2019), especialmente a partir do artigo intitulado “Por uma História Militar Global: da História tradicional à Nova História Militar”, publicado na Revista Brasileira de História Militar.

Os dez capítulos inventariam momentos diversos nos quais ocorreram incêndios, geralmente referenciados por “sinistros”, e outras situações que demandariam a atuação de corporações que hoje corresponderiam ou equivaleriam ao corpo de bombeiros, com ênfase no Rio Grande do Norte. Neste sentido, mesmo que o recorte temporal abarcado pela publicação 1917/1955, a autoria realizou pesquisa em fontes anteriores a esta delimitação no intuito de mapear as primeiras lacunas no serviço de combate a “sinistros”, citadas e demandadas no corpus documental a que teve acesso. O autor também fez incursões por outras espacialidades do país, referenciando eventos e situações que marcaram essa trajetória e levaram a constituição do serviço de extinção de incêndios nas respectivas localidades citadas: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Espírito Santo, Belo Horizonte, Paraíba, Santa Catarina, Recife e Sergipe.

O percurso da pesquisa levou o autor a coligir e apresentar, em sua narrativa, quantidade expressiva e diversa de documentos: bibliográficos (livros, artigos, monografias, dissertações e teses), fontes periódicas (diário oficial do Estado, jornais e revistas comerciais), leis e decretos, boletins internos do regimento policial militar, falas e relatórios de presidentes de Província, mensagens de governadores do Estado, livro de assentamentos do esquadrão de cavalaria, código de posturas municipais da cidade de Natal e memórias publicadas que deram alguma ênfase à abordagem de acontecimentos e ao cotidiano pregresso da capital potiguar.

O trabalho meticuloso de investigação inventaria alguns eventos ora dramáticos, ora curiosos e pitorescos, que serviram para pontuar e denunciar a ausência de um órgão responsável pela prevenção e combate a “sinistros” em Natal, até que fossem operacionalizadas as lentas criação e estruturação desse serviço, deixando de ser apenas proposição textual e passando a ganhar vida e lugar no cotidiano dessa municipalidade.

O enredo, organizado de maneira cronológica e linear, expressa coerência com os objetivos anunciados no capítulo introdutório ao livro. Numa história voltada principalmente para membras e membros da corporação, o caráter institucional dela prevalece e se destaca em detrimento de problematizações que tensionam articulações e implicações, cuja existência encerra a constituição de tal órgão em uma capital periférica do país. Cabe destacar, ainda, a competência narrativa demostrada pelo autor que, em linguagem direta e fluida, fomenta a curiosidade e prende o/a leitor/a em sua trama.

A leitura de A Cidade em Chamas me instigou a questionar aspectos da abordagem escolhida pelo autor. A criação de relato circunscrito ao inventário dos reclames pela ausência e menções reiteradas às dificuldades observadas na trajetória de criação e estruturação de um serviço de extinção de incêndios em Natal, em alguma medida, deixa de estabelecer conexões com a própria trajetória de urbanização da capital potiguar, processo este marcado por um desejo recorrente de modernidade e cuja presenças, material e discursiva dessa demanda constantemente reclamada, anunciavam questões e desafios de ordens econômica, política  e social que delimitaram a trajetória dessa espacialidade até, no mínimo, os anos de 1950, conforme já ponderado.

Afinal, a troça e o escárnio de que “Natal não há tal”, expressão tornada usual ao remeter-se à capital dos potiguares, deixava evidente a historicidade e as dificuldades práticas enfrentadas no seu processo de formação. A carga discursiva pejorativa e os reclames angustiados das elites econômica e política do Estado a respeito da (im)possibilidade de modernização dessa espacialidade, presente em fontes variadas que tratam dos desafios postos a ela, indicavam, com demasiada frequência, o desejo por aquilo que não se tinha e o lamento pelo que se queria.

No recorte temporal abarcado pelo livro, a bibliografia que tem tratado do processo de urbanização natalense dá conta desse fenômeno com riqueza de detalhes (Lima, 2001; Oliveira, 2008 e Oliveira, 1999) e traz reflexões que se coadunam com o inventário das ausências e dos reclames operacionalizado em A Cidade em Chamas. Até mesmo a curiosa conferência de Manuel Dantas ([1909] 1996), Natal daqui há cinquenta anos (1917), anterior à criação legal do serviço de extinção de incêndios, pode ser lida e interpretada como indicativo dessas deficiências tão reiteradas pela obra e nas quais soluções eram demandas com frequência similar.

A escolha por um enredo centrado na trajetória do serviço de extinção de incêndios, sem que se estabeleça maiores conexões entre este órgão e as questões econômicas, políticas e sociais que marcavam o Estado do Rio Grande do Norte no período, em especial a sua capital, parece se afastar da perspectiva anunciada no capítulo que lhe serve de introdução e no qual Fernando Velôzo Gomes Pedrosa (2019) é referenciado em defesa de uma “História Militar Global”.

É possível que a escolha por uma estruturação cronológica e linear e pouco afeita a conexões com outros elementos constitutivos da experiência histórica que levaram à lenta criação e às interrupções observadas no serviço de extinção a incêndios, no período abarcado pelo primeiro volume da trilogia anunciada, tenha relação com a quase inexistência, no Estado, de trabalhos publicados a respeito da corporação tal como reclama o autor durante a obra. O fato de a operação historiográfica realizada enfocar mais a audiência, o público da corporação – pois é primeiramente como membro do corpo de bombeiro que a autoria se apresenta e menos um trabalho realizado a partir de um movimento de problematização, pode ser mais uma razão para a raridade de material. A própria bibliografia indicada nas referências evidencia essa escolha, ao apresentar poucas obras de caráter teórico e metodológico produzidas no âmbito das universidades.

Neste sentido, Flademir Dantas constrói narrativa em perspectiva que se aproxima e reatualiza o ideário da história exemplar, da história como mestra da vida. Ao anunciar o caráter utilitário da narrativa que construiu, enfatizando o lugar dos exemplos na apreensão e compreensão de experiências pregressas, dialoga e foca em públicos leitores da história situados fora do âmbito acadêmico, para quem o consumo e a recepção de narrativas organizadas em perspectiva cronológica e linear é uma demanda em aberto.

Se tal escolha parece afastar-se de uma história-problema, procedimento constantemente requisitado nas produções historiográficas realizadas nos cursos de História, isto não significa, no entanto, que tal perspectiva não continue a ter público e audiência. Sob essa perspectiva, assume, portanto, papel de orientação e é construtora de identidades em espaços fora da academia onde tais narrativas são consumidas, compreendidas e legitimadas pela comunidade leitora.

Se a narrativa de A Cidade em Chamas se afasta de perspectivas mais correntes na historiografia produzida por profissionais formados em História na atualidade, os procedimentos operacionalizados pela autoria guardam coerência com o objetivo anunciado na introdução: qual seja, fomentar narrativa destinada a orientar  membras e membros do corpo de bombeiros do Estado do Rio Grande do Norte a respeito da trajetória de formação do órgão, o que a confere função social na demanda por orientação no tempo.

Essa escolha também denota e faz pensar sobre a diversidade de demandas colocadas à área de História, sobretudo no campo das narrativas institucionais e da frequente produção de memórias, algo que tem movimentado a produção de saberes e publicações no campo, apresentando à comunidade historiadora desafios que deveriam lhes servir de matéria para reflexão e ação, embora por vezes negados, noutras ainda ignorados durante a formação destes/as profissionais.

Referências

DANTAS, Manoel [1909]. Natal Daqui a Cinquenta Anos. Natal: Fundação José Augusto – Sebo Vermelho, 1996.

LIMA, Pedro. Natal Século XX: do Urbanismo ao Planejamento Urbano. Natal: EdUFRN, 2001.

OLIVEIRA, Giovana Paiva de. A Cidade e a Guerra: a Visão das Elites Sobre as Transformações do Espaço Urbano da Cidade do Natal na Segunda Guerra Mundial. 2008. 1 v. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Urbano) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

OLIVEIRA, Giovana Paiva de. De Cidade a Cidade: o Processo de Modernização do Natal (1889-1913). Natal: EDUFRN, 1999.

PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes. Por uma História Militar Global: da História tradicional à Nova História Militar. Revista Brasileira de História Militar. Rio de Janeiro, Ano X, nº 25, maio de 2019, p. 6-26.


Sumário de A Cidade em Chamas: O Serviço de Extinção de Incêndios em Natal/RN (1917-1955).

  • Agradecimentos
  • Prefácio
  • Apresentação
  • A cidade em chamas: o Serviço de extinção de incêndios em Natal – 1917-1955
  • Por entre a densa fumaça, algumas notas introdutórias
  • O fogo que destrói: os incêndios ocorridos antes da criação da Seção de Bombeiros em 1917
  • Incêndios e a criação dos Corpos de Bombeiros no Brasil
  • A Ribeira, berço da Seção de Bombeiros
  • Joca do Pará: o primeiro comandante da Seção de Bombeiros
  • A cidade em chamas: descontinuidade na prestação do serviço de extinção de incêndios (1930-1942)
  • A Segunda Grande Guerra e o surgimento do Corpo de Bombeiros da Base Aérea de Parnamirim
  • Onde há fumaça, há fogo: a primeira metade da década de 1950 e as movimentações para a instalação de um Corpo de Bombeiros em Natal
  • A reestruturação do Corpo de Bombeiros em 1955 pela Lei Estadual n.1.253
  • Quadro cronológico
  • Referências bibliográficas
  • Anexos

Resenhista

João Maurício Gomes Neto – Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista – Unesp/Franca, Professor do Departamento de História e Coordenador da Especialização em Gênero e Diversidade na Escola/GDE, na Universidade Federal de Rondônia/Unir, campus de Rolim de Moura. Publicou, entre outros trabalhos, o livro “Entre a ausência declarada e a presença reclamada: a identidade potiguar em questão. ID ORCID: 0000-0003-0194-6802. E-mail: joao.mauricio@unir.br

 


Para citar esta resenha

DANTAS, Flademir Gonçalves. A Cidade em Chamas: O Serviço de Extinção de Incêndios em Natal/RN (1917-1955). Natal: RN Editora, 2021. Resenha de: GOMES NETO, João Maurício. Narrativa Histórica e Demandas Sociais. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.4, p.16-21, mar./abr. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/narrativa-historica-e-demandas-sociais-resenha-de-a-cidade-em-chamas-o-servico-de-extincao-de-incendios-em-natal-rn-1917-1955-de-flademir-goncalves-dantas/>. ID DOI: 10.29327/254374.2.4-6


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

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Narrativa Histórica e Demandas Sociais – Resenha de “A Cidade em Chamas: O Serviço de Extinção de Incêndios em Natal/RN (1917-1955), de Flademir Gonçalves Dantas

Resenhado por João Maurício Gomes Neto | ID ORCID: 0000-0003-0194-6802.


Flademir Gonçalves Dantas | Foto: Acervo do autor

A Cidade em Chamas: O Serviço de Extinção de Incêndios em Natal/RN (1917-1955), doravante A Cidade em Chamas, foi escrita por Flademir Gonçalves Dantas, que possui duas graduações (História e Direito), especialização em Direito Público e mestrado em História, todas estas formações pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Trata-se do primeiro volume de uma trilogia que contará a história do serviço de extinção e prevenção de incêndios, atualmente Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Norte – CBMRN, em três recortes cronológicos lineares. O segundo e o terceiro volumes, ainda a serem publicados, abarcarão, respectivamente, os recortes entre 1955-1976 e de 1976 a 2002. A obra é prefaciada pelo Professor Emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN, Carlos Roberto de Miranda Gomes, que também se anuncia membro das Academias ANRL, AML, ALEJURN, ABROL, IHGRN, UBE-RN e MHV da OAB/RN. Conta também com uma apresentação de autoria de Luiz Monteiro da Silva Junior, comandante geral do Corpo de Bombeiros do Estado potiguar.

O livro está organizado em dez capítulos, sendo que o primeiro o introduz e comunica o objetivo, notas discretas sobre a escolha teórico-metodológica e a discussão bibliográfica. Este último exercício denota sobretudo o silêncio e a raridade dos trabalhos a respeito da temática no âmbito da sociedade norte-rio-grandense, elemento que serve de justificativa a produção ensejada. O objetivo central é “estimular as novas gerações de bombeiros a conhecerem o […] rico passado” (p. 22) da corporação e se ancora dentro de uma história institucional militar, com ênfase na experiência dos seus membros, “sem descartar o caráter utilitário da história enquanto ferramenta para aprender com o passado” (p. 22).

Em termos teórico-metodológicos, a narrativa é fundamentada nas proposições de Fernando Velôzo Gomes Pedrosa (2019), especialmente a partir do artigo intitulado “Por uma História Militar Global: da História tradicional à Nova História Militar”, publicado na Revista Brasileira de História Militar.

Os dez capítulos inventariam momentos diversos nos quais ocorreram incêndios, geralmente referenciados por “sinistros”, e outras situações que demandariam a atuação de corporações que hoje corresponderiam ou equivaleriam ao corpo de bombeiros, com ênfase no Rio Grande do Norte. Neste sentido, mesmo que o recorte temporal abarcado pela publicação 1917/1955, a autoria realizou pesquisa em fontes anteriores a esta delimitação no intuito de mapear as primeiras lacunas no serviço de combate a “sinistros”, citadas e demandadas no corpus documental a que teve acesso. O autor também fez incursões por outras espacialidades do país, referenciando eventos e situações que marcaram essa trajetória e levaram a constituição do serviço de extinção de incêndios nas respectivas localidades citadas: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Espírito Santo, Belo Horizonte, Paraíba, Santa Catarina, Recife e Sergipe.

O percurso da pesquisa levou o autor a coligir e apresentar, em sua narrativa, quantidade expressiva e diversa de documentos: bibliográficos (livros, artigos, monografias, dissertações e teses), fontes periódicas (diário oficial do Estado, jornais e revistas comerciais), leis e decretos, boletins internos do regimento policial militar, falas e relatórios de presidentes de Província, mensagens de governadores do Estado, livro de assentamentos do esquadrão de cavalaria, código de posturas municipais da cidade de Natal e memórias publicadas que deram alguma ênfase à abordagem de acontecimentos e ao cotidiano pregresso da capital potiguar.

O trabalho meticuloso de investigação inventaria alguns eventos ora dramáticos, ora curiosos e pitorescos, que serviram para pontuar e denunciar a ausência de um órgão responsável pela prevenção e combate a “sinistros” em Natal, até que fossem operacionalizadas as lentas criação e estruturação desse serviço, deixando de ser apenas proposição textual e passando a ganhar vida e lugar no cotidiano dessa municipalidade.

O enredo, organizado de maneira cronológica e linear, expressa coerência com os objetivos anunciados no capítulo introdutório ao livro. Numa história voltada principalmente para membras e membros da corporação, o caráter institucional dela prevalece e se destaca em detrimento de problematizações que tensionam articulações e implicações, cuja existência encerra a constituição de tal órgão em uma capital periférica do país. Cabe destacar, ainda, a competência narrativa demostrada pelo autor que, em linguagem direta e fluida, fomenta a curiosidade e prende o/a leitor/a em sua trama.

A leitura de A Cidade em Chamas me instigou a questionar aspectos da abordagem escolhida pelo autor. A criação de relato circunscrito ao inventário dos reclames pela ausência e menções reiteradas às dificuldades observadas na trajetória de criação e estruturação de um serviço de extinção de incêndios em Natal, em alguma medida, deixa de estabelecer conexões com a própria trajetória de urbanização da capital potiguar, processo este marcado por um desejo recorrente de modernidade e cuja presenças, material e discursiva dessa demanda constantemente reclamada, anunciavam questões e desafios de ordens econômica, política  e social que delimitaram a trajetória dessa espacialidade até, no mínimo, os anos de 1950, conforme já ponderado.

Afinal, a troça e o escárnio de que “Natal não há tal”, expressão tornada usual ao remeter-se à capital dos potiguares, deixava evidente a historicidade e as dificuldades práticas enfrentadas no seu processo de formação. A carga discursiva pejorativa e os reclames angustiados das elites econômica e política do Estado a respeito da (im)possibilidade de modernização dessa espacialidade, presente em fontes variadas que tratam dos desafios postos a ela, indicavam, com demasiada frequência, o desejo por aquilo que não se tinha e o lamento pelo que se queria.

No recorte temporal abarcado pelo livro, a bibliografia que tem tratado do processo de urbanização natalense dá conta desse fenômeno com riqueza de detalhes (Lima, 2001; Oliveira, 2008 e Oliveira, 1999) e traz reflexões que se coadunam com o inventário das ausências e dos reclames operacionalizado em A Cidade em Chamas. Até mesmo a curiosa conferência de Manuel Dantas ([1909] 1996), Natal daqui há cinquenta anos (1917), anterior à criação legal do serviço de extinção de incêndios, pode ser lida e interpretada como indicativo dessas deficiências tão reiteradas pela obra e nas quais soluções eram demandas com frequência similar.

A escolha por um enredo centrado na trajetória do serviço de extinção de incêndios, sem que se estabeleça maiores conexões entre este órgão e as questões econômicas, políticas e sociais que marcavam o Estado do Rio Grande do Norte no período, em especial a sua capital, parece se afastar da perspectiva anunciada no capítulo que lhe serve de introdução e no qual Fernando Velôzo Gomes Pedrosa (2019) é referenciado em defesa de uma “História Militar Global”.

É possível que a escolha por uma estruturação cronológica e linear e pouco afeita a conexões com outros elementos constitutivos da experiência histórica que levaram à lenta criação e às interrupções observadas no serviço de extinção a incêndios, no período abarcado pelo primeiro volume da trilogia anunciada, tenha relação com a quase inexistência, no Estado, de trabalhos publicados a respeito da corporação tal como reclama o autor durante a obra. O fato de a operação historiográfica realizada enfocar mais a audiência, o público da corporação – pois é primeiramente como membro do corpo de bombeiro que a autoria se apresenta e menos um trabalho realizado a partir de um movimento de problematização, pode ser mais uma razão para a raridade de material. A própria bibliografia indicada nas referências evidencia essa escolha, ao apresentar poucas obras de caráter teórico e metodológico produzidas no âmbito das universidades.

Neste sentido, Flademir Dantas constrói narrativa em perspectiva que se aproxima e reatualiza o ideário da história exemplar, da história como mestra da vida. Ao anunciar o caráter utilitário da narrativa que construiu, enfatizando o lugar dos exemplos na apreensão e compreensão de experiências pregressas, dialoga e foca em públicos leitores da história situados fora do âmbito acadêmico, para quem o consumo e a recepção de narrativas organizadas em perspectiva cronológica e linear é uma demanda em aberto.

Se tal escolha parece afastar-se de uma história-problema, procedimento constantemente requisitado nas produções historiográficas realizadas nos cursos de História, isto não significa, no entanto, que tal perspectiva não continue a ter público e audiência. Sob essa perspectiva, assume, portanto, papel de orientação e é construtora de identidades em espaços fora da academia onde tais narrativas são consumidas, compreendidas e legitimadas pela comunidade leitora.

Se a narrativa de A Cidade em Chamas se afasta de perspectivas mais correntes na historiografia produzida por profissionais formados em História na atualidade, os procedimentos operacionalizados pela autoria guardam coerência com o objetivo anunciado na introdução: qual seja, fomentar narrativa destinada a orientar  membras e membros do corpo de bombeiros do Estado do Rio Grande do Norte a respeito da trajetória de formação do órgão, o que a confere função social na demanda por orientação no tempo.

Essa escolha também denota e faz pensar sobre a diversidade de demandas colocadas à área de História, sobretudo no campo das narrativas institucionais e da frequente produção de memórias, algo que tem movimentado a produção de saberes e publicações no campo, apresentando à comunidade historiadora desafios que deveriam lhes servir de matéria para reflexão e ação, embora por vezes negados, noutras ainda ignorados durante a formação destes/as profissionais.

Referências

DANTAS, Manoel [1909]. Natal Daqui a Cinquenta Anos. Natal: Fundação José Augusto – Sebo Vermelho, 1996.

LIMA, Pedro. Natal Século XX: do Urbanismo ao Planejamento Urbano. Natal: EdUFRN, 2001.

OLIVEIRA, Giovana Paiva de. A Cidade e a Guerra: a Visão das Elites Sobre as Transformações do Espaço Urbano da Cidade do Natal na Segunda Guerra Mundial. 2008. 1 v. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Urbano) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

OLIVEIRA, Giovana Paiva de. De Cidade a Cidade: o Processo de Modernização do Natal (1889-1913). Natal: EDUFRN, 1999.

PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes. Por uma História Militar Global: da História tradicional à Nova História Militar. Revista Brasileira de História Militar. Rio de Janeiro, Ano X, nº 25, maio de 2019, p. 6-26.


Sumário de A Cidade em Chamas: O Serviço de Extinção de Incêndios em Natal/RN (1917-1955).

  • Agradecimentos
  • Prefácio
  • Apresentação
  • A cidade em chamas: o Serviço de extinção de incêndios em Natal – 1917-1955
  • Por entre a densa fumaça, algumas notas introdutórias
  • O fogo que destrói: os incêndios ocorridos antes da criação da Seção de Bombeiros em 1917
  • Incêndios e a criação dos Corpos de Bombeiros no Brasil
  • A Ribeira, berço da Seção de Bombeiros
  • Joca do Pará: o primeiro comandante da Seção de Bombeiros
  • A cidade em chamas: descontinuidade na prestação do serviço de extinção de incêndios (1930-1942)
  • A Segunda Grande Guerra e o surgimento do Corpo de Bombeiros da Base Aérea de Parnamirim
  • Onde há fumaça, há fogo: a primeira metade da década de 1950 e as movimentações para a instalação de um Corpo de Bombeiros em Natal
  • A reestruturação do Corpo de Bombeiros em 1955 pela Lei Estadual n.1.253
  • Quadro cronológico
  • Referências bibliográficas
  • Anexos

Resenhista

João Maurício Gomes Neto – Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista – Unesp/Franca, Professor do Departamento de História e Coordenador da Especialização em Gênero e Diversidade na Escola/GDE, na Universidade Federal de Rondônia/Unir, campus de Rolim de Moura. Publicou, entre outros trabalhos, o livro “Entre a ausência declarada e a presença reclamada: a identidade potiguar em questão. ID ORCID: 0000-0003-0194-6802. E-mail: joao.mauricio@unir.br

 


Para citar esta resenha

DANTAS, Flademir Gonçalves. A Cidade em Chamas: O Serviço de Extinção de Incêndios em Natal/RN (1917-1955). Natal: RN Editora, 2021. Resenha de: GOMES NETO, João Maurício. Narrativa Histórica e Demandas Sociais. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.4, p.16-21, mar./abr. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/narrativa-historica-e-demandas-sociais-resenha-de-a-cidade-em-chamas-o-servico-de-extincao-de-incendios-em-natal-rn-1917-1955-de-flademir-goncalves-dantas/>. ID DOI: 10.29327/254374.2.4-6


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

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