Negritude no museu – Resenha de “Olhar Negro: patrimônio, museu e cultura afro-sergipana no campo do ensino de História”, de Marcelo Santos

Resenhado por Joceneide Cunha(Uneb) | ID: https://orcid.org/0000-0002-7728-676X.


Museu de Arte Sacra de São Cristóvão – SE | Imagem: Abrajet

A Lei 10639/03 tornou obrigatório o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira, ampliando os desafios para o professor que deve pensar meios para implementação desse dispositivo, associando-o a outras temáticas e incorporando outras metodologias. Alguns autores defendem que uma maneira, para isto , é repensar o currículo que precisa ser de(s)colonizado. O professor Marcelo Santos, no seu Olhar Negro: patrimônio, museu e cultura afro-sergipana no campo do ensino de História (2021), nos presenteia com um grande passeio envolvendo esses quatro campos: Ensino de História, História, Cultura Afro-brasileira e Patrimônio. Assim, a obra é uma grande contribuição para os professores de História e demais interessados na lida com o patrimônio cultural, pois por meio dela vemos as irmandades, as devoções preferidas como a citada Nossa Senhora do Rosário e percorremos os corredores do Museu de Arte Sacra da bela cidade de São Cristóvão, em Sergipe. Assim, podemos aprender e refletir sobre novos meios de ensinar História e Cultura Afro-brasileira.

O trabalho é estruturado em três capítulos, além de introdução e considerações finais. No primeiro – “O museu como recurso didático: museologia e historiografia na prática do ensino da cultura afro-brasileira” –, Santos descreve as possibilidades do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão (MASC) enquanto recurso didático para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira, por meio dos objetos musealizados e das Irmandades que atualmente se encontram no acervo da instituição. Santos dialoga com alguns autores das áreas da Museologia e do Patrimônio, a exemplo de Cristina Bruno e Maria Célia Teixeira. Para isso, discorre sobre a história dos museus e sobre o museu como um espaço de educação escolar e não escolar, enfatizando a importância sobre o primeiro. No segundo capítulo – “Novos caminhos: patrimônio religioso e a cultura afro-sergipana” –, a meta de Santos é elaborar um itinerário por meio de igrejas que, inclusive, abrigaram Irmandades na cidade de São Cristóvão, tendo como referência espaços que contribuam com o ensino de Cultura Afro-brasileira. Lembra ao professor a necessidade de uma visita prévia e coloca algumas questões para a reflexão sobre a viabilidade da visita de estudos. Ele insere no Itinerário a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Nossa Senhora do Amparo, Igreja da Ordem Terceira e o Convento do Carmo, Igreja de Nossa Senhora da Vitória, Irmandade da Santa Casa da Misericórdia e Igreja e Convento de São Francisco. Esse percurso seria realizado antes de o discente entrar no MASC, abrigado na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. O autor justifica o motivo da presença de cada instituição no itinerário pela história do templo ou ainda por alguma imagem que esteja no MASC. No entanto, o Templo de Nossa Senhora da Vitória merecia uma melhor dedicação na justificativa. Santos conclui o capítulo afirmando que, por meio do itinerário proposto, é possível observar, na cidade, registros da vivência da população afro-sergipana, e que essa é também uma atividade “sensorial”. O autor também poderia ter inserido as praças no itinerário já que Serafim Santiago menciona locais em que mulheres negras vendiam seus quitutes.

No terceiro e último capítulo – “A cultura afro-sergipana no Museu de Arte Sacra de São Cristóvão” –, o autor nos estimula (e até provoca) a pensar o MASC como um espaço de guarda e que expõe objetos ligados a vivências religiosas dos afro-sergipanos. Ele traça uma sugestão de roteiro no MASC para que o professor utilize esse espaço como um lugar de ensino da história e cultura afro-brasileira, pensando no museu e suas peças como objetos geradores. O autor usa a perspectiva de Francisco Régis Lopes Ramos que dialoga com a pedagogia de Paulo Freire e, assim, cria narrativas e reflexões sobre esses objetos, pensando sobre o poder dos objetos sobre os corpos (Ramos, 2016). Nesse capítulo, o autor aponta a importância de um setor educativo dentro do museu para construir essa relação com o professor(a) e denuncia que o museu em pauta está paralisado. Usando o discurso de Dom Luciano Cabral do Arte, aponta que o MASC foi criado para salvaguardar os bens artísticos e religiosos construídos em de Sergipe.

O autor selecionou algumas imagens no itinerário do museu para serem refletidas com os alunos e sugere algumas questões que podem nortear a visita, “Quais as Memórias e Histórias dos Afro-sergipanos o MASC pode revelar? Quais são os objetos que podem ser identificados como pertencentes às irmandades de negros e pardos? Como eles estão expostos?” (p.108).

As imagens escolhidas pertenciam a Irmandades de Homens Negros, a exemplo da Nossa Senhora do Rosário que pertencia à irmandade do mesmo nome, em São Cristóvão. O autor propõe que os alunos descrevam as imagens, reflitam sobre a materialidade e construam análises utilizando os conhecimentos que já possuíam sobre a temática. Dessa maneira, por meio do itinerário citado e o uso de diversas imagens, como as de Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito é possível uma reflexão sobre a memória e a história da população negra que viveu em Sergipe. Com essa medida, ele problematiza o dominante discurso sobre a homogeneidade da identidade religiosa dos sergipanos, apesar de, em alguns momentos do livro, restringir a população negra que residia em São Cristóvão.

Imagens do acervo do MASC: São Benedito, foto de Marcelo Santos, Jesus Atado e Nossa Senhora do Rosário, foto de Alan Santana | Imagens: (Santos, 2021, p.13-14 e p.28)

Nas considerações finais, Santos ressalta que a sua proposta de ensino de História da Cultura Afro-sergipana por meio da Cidade de São Cristóvão e do MASC traz um aspecto pouco explorado na cena educacional: a experiência das irmandades religiosas como conteúdo substantivo para o Ensino de História e Cultura afro-Brasileira. Possivelmente, um objetivo não explicitado pelo autor (além de mostrar a cidade e o museu como possibilidade para o ensino de história e cultura afro-brasileira) é fazer refletir sobre a identidade católica sergipana e, quiçá, a identidade sergipana, sobre a sua multiplicidade, a diversidade de experiências no tempo e espaço (que incluem a de homens e mulheres africanos e seus descendentes) e o quanto essas experiências são pouco abordadas nos discursos dos museus que, no entanto, pode ser trabalhada pelos professores de história, causando fissuras nessa identidade citada.

O trabalho de Santos se encaixa perfeitamente na tendência dos estudos que pensam Educação Patrimonial e Ensino de Cultura Afro-brasileira nos últimos anos. Em relação aos do Ensino de Cultura Afro-brasileira, percebemos uma difusão e uma ampliação do pensar o ofício do ser professora e professor de História. A emergência dos Mestrados Profissionais em História ajuda, efetivamente, (re)pensar a formação continuada do nosso ofício. A área de Ensino de História possibilitou o estudo e uso de outras metodologias de ensino, outras teorias do currículo, em suma, de diferentes maneiras de ensinar e aprender História. Nesse campo, o uso do patrimônio tem sido pensado e utilizado como fonte histórica e objeto de ensino, contribuindo para rastrearmos os passos dos que viveram em outros tempos bem como para pensarmos memórias e identidades coletivas, incluindo a de homens e mulheres negras. Até mesmo nos já antigos Parâmetros Curriculares, o Ensino de História deveria contribuir para a formação de cidadãos, sendo, para tanto, imprescindível o respeito à diversidade, o conhecimento das nossas festas, aspectos da religiosidade bem como o respeito às diferenças. Com isso, os diversos patrimônios ganham grande importância nesse processo de ensino e aprendizagem. Por meio deles, podemos perceber rastros da religiosidade, das festas e outros elementos da cultura, acompanhados de sua diversidade. Bom exemplo é o culto a Nossa Senhora do Rosário e a Nossa Senhora da Boa Morte, em São Cristóvão, que (segundo Serafim Santiago, 2009) ocorria com a participação de homens e mulheres negros distintos. Esse culto é oportunamente bem lembrado por Santos em seu trabalho.

Contudo, para que tais dispositivos, inclusive os citados nos referidos Parâmetros, sejam realmente cumpridos naquilo que mais beneficiam a inclusão e o respeito à diferença, é necessário que reforcemos os benefícios que o livro de Marcelo Santos pode trazer à prática de Educação Patrimonial e o cumprimento da lei 10.639/03, sem descurar dos aprofundamentos nos pontos em que penso serem necessários. Dos benefícios do livro, destaco a contribuição de pensar um museu que custodia em seu acervo peças ligadas ao catolicismo para o ensino de História e Cultura afro-brasileira. O autor associa algumas dessas peças à presença de africanos e crioulos nas terras sergipanas, às imagens de Nossa Senhora do Rosário ou, ainda, a de São Benedito. O autor também faz associações entre alguns grupos culturais a exemplo das Taieiras e as Irmandades de Homens Pretos. No livro, vemos itinerários que podem facilitar o trabalho de um professor de História para cumprir os fins citados acima.

Dos pontos que o autor não pensou ou pensou e não concretizou, creio ser necessária que o leitor refletir sobre qual seria a sua perspectiva de ensino de História e para qual série seu produto (assim, eu leio seus itinerários) foi pensado. Importante perceber as passagens em que Santos abordou as habilidades a serem desenvolvidas ou ampliadas pelos alunos, a partir das suas estratégias, mas que poderiam estar melhor declaradas e exemplificadas com maior intensidade. Outro ponto a ser pensado pelo provável usuário do trabalho de Santos é a possibilidade de relacionar o conteúdo substantivo formal (personagens, acontecimentos, processos, lugares etc.) prescrito nos currículos nacional e local aos objetivos do seu produto, o acervo do MASC e as finalidades da sua proposta de ensino de Cultura Afro-brasileira.

Numa visão de conjunto, enfim, ressalto que poucos trabalhos sobre os museus de arte sacra no Brasil percebem os indícios das devoções das populações negras. Marcelo Santos apresenta, por meio da metodologia do “objeto gerador”, a possibilidade de ensinar e pensar Cultura Afro-brasileira nesses espaços, nos direcionando a refletir sobre os indícios da História da população negra e suas religiosidades. O livro contribui para os professores e professoras pensarem algumas habilidades, competências e itinerários formativos colocados na Base Nacional Curricular Comum, sobre políticas afirmativas e diversidade. Por fim, espero que professores de História e o público geral sintam-se convidados a ler este livro e caminhar, com o professor Marcelo, pelas ruas de São Cristóvão olhando suas igrejas, casarões e o espaço expositivo do Museu de Arte Sacra.

Sumário de Olhar Negro: patrimônio, museu e cultura afro-sergipana no campo do ensino de História

  • Prefácio
  • Introdução
  • 1. O museu como recurso didático: museologia e historiografia na prática do ensino da cultura afro-brasileira
    • 1.1. Um museu, outros museus: da negação ao esboço de inclusão
    • 1.2. O Museu como dispositivo pedagógico
    • 1.3. O ensino da religiosidade afro-brasileira através dos objetos musealizados
    • 1.4. O museu e o conhecimento histórico sobre a religiosidade afro-brasileira
  • 2. Novos caminhos: patrimônio religioso e a cultura afro-sergipana
    • 2.1. Itinerário possível
    • 2.2. Preparando-se para a viagem
    • 2.3. Justificando o itinerário
  • 3. A cultura afro-sergipana no Museu de Arte Sacra de São Cristóvão
    • 3.1. O Museu
    • 3.2. O Roteiro
    • 3.3. A exposição e a problematização
    • 3.4. As imagens de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário
    • 3.5. As imagens de Santo Antônio
    • 3.6. A imagem de Nossa Senhora da Boa Morte
    • 3.7. Nossa Senhora do Desterro e a produção historiográfica
    • 3.8. Provocação de uma Imagem: Senhor Atado
  • Considerações finais
  • Referências bibliográficas
  • Documentos

Resenhista

Joceneide Cunha é doutora em História Social (UFBA), e especialista em História das Populações negras e diáspora africana. É professora da Universidade do Estado da Bahia e publicou, entre outros trabalhos, Negras(os) da Guiné e de Angola: nações africanas, vivências e sociabilidades em Sergipe (1720-1835), Ensino de história e cultura afro-brasileira: desafios e perspectivas na Amazônia e Um olhar sobre as Irmandades do Rosário dos Homens Pretos nas terras sergipanas (1750-1835). Redes sociais: @joceneidecunha; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7728-676X; E-mail: jocunha@uneb.br.

 


Para citar esta resenha

SANTOS, Marcelo. Olhar Negro: patrimônio, museu e cultura afro-sergipana no campo do ensino de História. Aracaju: Criação, 2021. 144p. Resenha de: CUNHA, Joceneide. Negritude nos museus. Crítica Historiográfica, Natal, v.2, n.7, set./out. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/negritude-no-museu-resenha-de-olhar-negro-patrimonio-museu-e-cultura-afro-sergipana-no-campo-do-ensino-de-historia-de-marcelo-santos/>


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 7, set./out, 2022 | ISSN 2764-2666

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Negritude no museu – Resenha de “Olhar Negro: patrimônio, museu e cultura afro-sergipana no campo do ensino de História”, de Marcelo Santos

Resenhado por Joceneide Cunha(Uneb) | ID: https://orcid.org/0000-0002-7728-676X.


Museu de Arte Sacra de São Cristóvão – SE | Imagem: Abrajet

A Lei 10639/03 tornou obrigatório o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira, ampliando os desafios para o professor que deve pensar meios para implementação desse dispositivo, associando-o a outras temáticas e incorporando outras metodologias. Alguns autores defendem que uma maneira, para isto , é repensar o currículo que precisa ser de(s)colonizado. O professor Marcelo Santos, no seu Olhar Negro: patrimônio, museu e cultura afro-sergipana no campo do ensino de História (2021), nos presenteia com um grande passeio envolvendo esses quatro campos: Ensino de História, História, Cultura Afro-brasileira e Patrimônio. Assim, a obra é uma grande contribuição para os professores de História e demais interessados na lida com o patrimônio cultural, pois por meio dela vemos as irmandades, as devoções preferidas como a citada Nossa Senhora do Rosário e percorremos os corredores do Museu de Arte Sacra da bela cidade de São Cristóvão, em Sergipe. Assim, podemos aprender e refletir sobre novos meios de ensinar História e Cultura Afro-brasileira.

O trabalho é estruturado em três capítulos, além de introdução e considerações finais. No primeiro – “O museu como recurso didático: museologia e historiografia na prática do ensino da cultura afro-brasileira” –, Santos descreve as possibilidades do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão (MASC) enquanto recurso didático para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira, por meio dos objetos musealizados e das Irmandades que atualmente se encontram no acervo da instituição. Santos dialoga com alguns autores das áreas da Museologia e do Patrimônio, a exemplo de Cristina Bruno e Maria Célia Teixeira. Para isso, discorre sobre a história dos museus e sobre o museu como um espaço de educação escolar e não escolar, enfatizando a importância sobre o primeiro. No segundo capítulo – “Novos caminhos: patrimônio religioso e a cultura afro-sergipana” –, a meta de Santos é elaborar um itinerário por meio de igrejas que, inclusive, abrigaram Irmandades na cidade de São Cristóvão, tendo como referência espaços que contribuam com o ensino de Cultura Afro-brasileira. Lembra ao professor a necessidade de uma visita prévia e coloca algumas questões para a reflexão sobre a viabilidade da visita de estudos. Ele insere no Itinerário a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Nossa Senhora do Amparo, Igreja da Ordem Terceira e o Convento do Carmo, Igreja de Nossa Senhora da Vitória, Irmandade da Santa Casa da Misericórdia e Igreja e Convento de São Francisco. Esse percurso seria realizado antes de o discente entrar no MASC, abrigado na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. O autor justifica o motivo da presença de cada instituição no itinerário pela história do templo ou ainda por alguma imagem que esteja no MASC. No entanto, o Templo de Nossa Senhora da Vitória merecia uma melhor dedicação na justificativa. Santos conclui o capítulo afirmando que, por meio do itinerário proposto, é possível observar, na cidade, registros da vivência da população afro-sergipana, e que essa é também uma atividade “sensorial”. O autor também poderia ter inserido as praças no itinerário já que Serafim Santiago menciona locais em que mulheres negras vendiam seus quitutes.

No terceiro e último capítulo – “A cultura afro-sergipana no Museu de Arte Sacra de São Cristóvão” –, o autor nos estimula (e até provoca) a pensar o MASC como um espaço de guarda e que expõe objetos ligados a vivências religiosas dos afro-sergipanos. Ele traça uma sugestão de roteiro no MASC para que o professor utilize esse espaço como um lugar de ensino da história e cultura afro-brasileira, pensando no museu e suas peças como objetos geradores. O autor usa a perspectiva de Francisco Régis Lopes Ramos que dialoga com a pedagogia de Paulo Freire e, assim, cria narrativas e reflexões sobre esses objetos, pensando sobre o poder dos objetos sobre os corpos (Ramos, 2016). Nesse capítulo, o autor aponta a importância de um setor educativo dentro do museu para construir essa relação com o professor(a) e denuncia que o museu em pauta está paralisado. Usando o discurso de Dom Luciano Cabral do Arte, aponta que o MASC foi criado para salvaguardar os bens artísticos e religiosos construídos em de Sergipe.

O autor selecionou algumas imagens no itinerário do museu para serem refletidas com os alunos e sugere algumas questões que podem nortear a visita, “Quais as Memórias e Histórias dos Afro-sergipanos o MASC pode revelar? Quais são os objetos que podem ser identificados como pertencentes às irmandades de negros e pardos? Como eles estão expostos?” (p.108).

As imagens escolhidas pertenciam a Irmandades de Homens Negros, a exemplo da Nossa Senhora do Rosário que pertencia à irmandade do mesmo nome, em São Cristóvão. O autor propõe que os alunos descrevam as imagens, reflitam sobre a materialidade e construam análises utilizando os conhecimentos que já possuíam sobre a temática. Dessa maneira, por meio do itinerário citado e o uso de diversas imagens, como as de Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito é possível uma reflexão sobre a memória e a história da população negra que viveu em Sergipe. Com essa medida, ele problematiza o dominante discurso sobre a homogeneidade da identidade religiosa dos sergipanos, apesar de, em alguns momentos do livro, restringir a população negra que residia em São Cristóvão.

Imagens do acervo do MASC: São Benedito, foto de Marcelo Santos, Jesus Atado e Nossa Senhora do Rosário, foto de Alan Santana | Imagens: (Santos, 2021, p.13-14 e p.28)

Nas considerações finais, Santos ressalta que a sua proposta de ensino de História da Cultura Afro-sergipana por meio da Cidade de São Cristóvão e do MASC traz um aspecto pouco explorado na cena educacional: a experiência das irmandades religiosas como conteúdo substantivo para o Ensino de História e Cultura afro-Brasileira. Possivelmente, um objetivo não explicitado pelo autor (além de mostrar a cidade e o museu como possibilidade para o ensino de história e cultura afro-brasileira) é fazer refletir sobre a identidade católica sergipana e, quiçá, a identidade sergipana, sobre a sua multiplicidade, a diversidade de experiências no tempo e espaço (que incluem a de homens e mulheres africanos e seus descendentes) e o quanto essas experiências são pouco abordadas nos discursos dos museus que, no entanto, pode ser trabalhada pelos professores de história, causando fissuras nessa identidade citada.

O trabalho de Santos se encaixa perfeitamente na tendência dos estudos que pensam Educação Patrimonial e Ensino de Cultura Afro-brasileira nos últimos anos. Em relação aos do Ensino de Cultura Afro-brasileira, percebemos uma difusão e uma ampliação do pensar o ofício do ser professora e professor de História. A emergência dos Mestrados Profissionais em História ajuda, efetivamente, (re)pensar a formação continuada do nosso ofício. A área de Ensino de História possibilitou o estudo e uso de outras metodologias de ensino, outras teorias do currículo, em suma, de diferentes maneiras de ensinar e aprender História. Nesse campo, o uso do patrimônio tem sido pensado e utilizado como fonte histórica e objeto de ensino, contribuindo para rastrearmos os passos dos que viveram em outros tempos bem como para pensarmos memórias e identidades coletivas, incluindo a de homens e mulheres negras. Até mesmo nos já antigos Parâmetros Curriculares, o Ensino de História deveria contribuir para a formação de cidadãos, sendo, para tanto, imprescindível o respeito à diversidade, o conhecimento das nossas festas, aspectos da religiosidade bem como o respeito às diferenças. Com isso, os diversos patrimônios ganham grande importância nesse processo de ensino e aprendizagem. Por meio deles, podemos perceber rastros da religiosidade, das festas e outros elementos da cultura, acompanhados de sua diversidade. Bom exemplo é o culto a Nossa Senhora do Rosário e a Nossa Senhora da Boa Morte, em São Cristóvão, que (segundo Serafim Santiago, 2009) ocorria com a participação de homens e mulheres negros distintos. Esse culto é oportunamente bem lembrado por Santos em seu trabalho.

Contudo, para que tais dispositivos, inclusive os citados nos referidos Parâmetros, sejam realmente cumpridos naquilo que mais beneficiam a inclusão e o respeito à diferença, é necessário que reforcemos os benefícios que o livro de Marcelo Santos pode trazer à prática de Educação Patrimonial e o cumprimento da lei 10.639/03, sem descurar dos aprofundamentos nos pontos em que penso serem necessários. Dos benefícios do livro, destaco a contribuição de pensar um museu que custodia em seu acervo peças ligadas ao catolicismo para o ensino de História e Cultura afro-brasileira. O autor associa algumas dessas peças à presença de africanos e crioulos nas terras sergipanas, às imagens de Nossa Senhora do Rosário ou, ainda, a de São Benedito. O autor também faz associações entre alguns grupos culturais a exemplo das Taieiras e as Irmandades de Homens Pretos. No livro, vemos itinerários que podem facilitar o trabalho de um professor de História para cumprir os fins citados acima.

Dos pontos que o autor não pensou ou pensou e não concretizou, creio ser necessária que o leitor refletir sobre qual seria a sua perspectiva de ensino de História e para qual série seu produto (assim, eu leio seus itinerários) foi pensado. Importante perceber as passagens em que Santos abordou as habilidades a serem desenvolvidas ou ampliadas pelos alunos, a partir das suas estratégias, mas que poderiam estar melhor declaradas e exemplificadas com maior intensidade. Outro ponto a ser pensado pelo provável usuário do trabalho de Santos é a possibilidade de relacionar o conteúdo substantivo formal (personagens, acontecimentos, processos, lugares etc.) prescrito nos currículos nacional e local aos objetivos do seu produto, o acervo do MASC e as finalidades da sua proposta de ensino de Cultura Afro-brasileira.

Numa visão de conjunto, enfim, ressalto que poucos trabalhos sobre os museus de arte sacra no Brasil percebem os indícios das devoções das populações negras. Marcelo Santos apresenta, por meio da metodologia do “objeto gerador”, a possibilidade de ensinar e pensar Cultura Afro-brasileira nesses espaços, nos direcionando a refletir sobre os indícios da História da população negra e suas religiosidades. O livro contribui para os professores e professoras pensarem algumas habilidades, competências e itinerários formativos colocados na Base Nacional Curricular Comum, sobre políticas afirmativas e diversidade. Por fim, espero que professores de História e o público geral sintam-se convidados a ler este livro e caminhar, com o professor Marcelo, pelas ruas de São Cristóvão olhando suas igrejas, casarões e o espaço expositivo do Museu de Arte Sacra.

Sumário de Olhar Negro: patrimônio, museu e cultura afro-sergipana no campo do ensino de História

  • Prefácio
  • Introdução
  • 1. O museu como recurso didático: museologia e historiografia na prática do ensino da cultura afro-brasileira
    • 1.1. Um museu, outros museus: da negação ao esboço de inclusão
    • 1.2. O Museu como dispositivo pedagógico
    • 1.3. O ensino da religiosidade afro-brasileira através dos objetos musealizados
    • 1.4. O museu e o conhecimento histórico sobre a religiosidade afro-brasileira
  • 2. Novos caminhos: patrimônio religioso e a cultura afro-sergipana
    • 2.1. Itinerário possível
    • 2.2. Preparando-se para a viagem
    • 2.3. Justificando o itinerário
  • 3. A cultura afro-sergipana no Museu de Arte Sacra de São Cristóvão
    • 3.1. O Museu
    • 3.2. O Roteiro
    • 3.3. A exposição e a problematização
    • 3.4. As imagens de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário
    • 3.5. As imagens de Santo Antônio
    • 3.6. A imagem de Nossa Senhora da Boa Morte
    • 3.7. Nossa Senhora do Desterro e a produção historiográfica
    • 3.8. Provocação de uma Imagem: Senhor Atado
  • Considerações finais
  • Referências bibliográficas
  • Documentos

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Joceneide Cunha é doutora em História Social (UFBA), e especialista em História das Populações negras e diáspora africana. É professora da Universidade do Estado da Bahia e publicou, entre outros trabalhos, Negras(os) da Guiné e de Angola: nações africanas, vivências e sociabilidades em Sergipe (1720-1835), Ensino de história e cultura afro-brasileira: desafios e perspectivas na Amazônia e Um olhar sobre as Irmandades do Rosário dos Homens Pretos nas terras sergipanas (1750-1835). Redes sociais: @joceneidecunha; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7728-676X; E-mail: jocunha@uneb.br.

 


Para citar esta resenha

SANTOS, Marcelo. Olhar Negro: patrimônio, museu e cultura afro-sergipana no campo do ensino de História. Aracaju: Criação, 2021. 144p. Resenha de: CUNHA, Joceneide. Negritude nos museus. Crítica Historiográfica, Natal, v.2, n.7, set./out. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/negritude-no-museu-resenha-de-olhar-negro-patrimonio-museu-e-cultura-afro-sergipana-no-campo-do-ensino-de-historia-de-marcelo-santos/>


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 7, set./out, 2022 | ISSN 2764-2666

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