Olhar militante sobre a desigualdade — Resenha de Carlos Eduardo Trindade Santos (UFS/SINAF) sobre o livro “A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil”, de Mário Theodoro

Mário Theodoro | Imagem: Emfan

Resumo: A sociedade desigual: Racismo e Branquitude na formação do Brasil, de Mário Theodoro, explora a persistente desigualdade racial no Brasil. Theodoro analisa os modos de estruturação do racismo na sociedade, explorando áreas como o mercado de trabalho, educação, saúde, urbanização e o binômio violência e justiça. Crítica a invisibilidade dos negros nas esferas de poder e a ação limitada do Estado, propondo reflexões para mudanças sociais.

Palavras-chave: Desigualdade, Racismo, Branquitude.


A sociedade desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil (Zahar, 2022) é a nova obra do pesquisador Mario Theodoro. O autor define sociedade desigual como “uma conformação social caracterizada por uma desigualdade extrema e persistente e cuja a intensidade ultrapassa os limites da legalidade” (p.17). A obra tem como objetivo central “apresentar e analisar as complexas dinâmicas de produção e reprodução das desigualdades no sentido de formatar e consolidar a sociedade desigual assentada no racismo” (p.27).

Mário Theodoro é economista, com mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutorado pela Universidade Paris I — Sorbonne. Consultor Legislativo aposentado do Senado Federal, foi Secretário Executivo da Secretaria Especial de Políticas de Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR). É professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB). Recentemente, escreveu dois textos acerca da política de igualdade racial, sendo o primeiro Racismo, discriminação e preconceito: delimitando o raio de ação das políticas de promoção da igualdade racial (Unesp, 2019) e Dez anos da política de promoção da igualdade racial no Brasil: o que aprendemos (Fundação Perseu Abramo, 2020). Em A sociedade desigual, Theodoro avança nos diagnósticos anteriores da sua trilha intelectual, centrada no mundo do trabalho, nas desigualdades sociais e no monitoramento das políticas públicas, para discorrer sobre a formação do país a partir das relações raciais aqui constituídas. Para tanto o autor organiza seu texto em seis capítulos temáticos nos quais caracteriza o que denomina sociedade desigual. No epílogo, discorre sobre o papel e a importância dos movimentos negros para a superação da realidade tratada no livro, que possui 447 páginas.

No primeiro capítulo, o autor vai expor o referencial teórico e metodológico que sustenta os seus argumentos, realizando uma revisão crítica da bibliografia nacional e estrangeira na área da teoria econômica, do desenvolvimento, do trabalho e da sociedade brasileira, permeada pela produção de intelectuais negros(as) acerca da questão racial brasileira. Ele constata que as contribuições da teoria econômica, os modelos neoclássicos, a perspectiva marxista e as ciências sociais são bastante limitados para a apreciação do fenômeno do racismo. Em contrapartida, vai ressaltar autores que direcionaram as suas reflexões acerca da desigualdade e da temática racial e, com eles, conceitos como o de racismo, preconceito, discriminação, branquitude, biopoder e necropolítica. A partir desta leitura crítica, conclui que se forjaram no Brasil todos os ingredientes necessários à formação da sociedade desigual: o racismo como ideologia dominante, o preconceito e a discriminação racial como práticas corriqueiras, a branquitude e a valorização do branco e, no caso da ação do Estado, o biopoder que flagela e a necropolítica que mata.

O segundo capítulo está focado na análise do mercado de trabalho brasileiro tanto do ponto de vista histórico quanto dos cenários produtivos, ressaltando a sua incapacidade de inclusão social, a propensão a informalidade como meio de sobrevivência e seu papel na reprodução das desigualdades raciais. O autor chama a atenção para o fato de esse segmento apresentar limitada capacidade de proporcionar empregos protegidos e bem remunerados, direcionando as melhores posições para uma maioria de trabalhadores brancos e transformando a força de trabalho negra em um exército de reserva para repositório ao qual o mercado sempre recorre quando necessita rebaixar o valor do trabalho ante ao capital ou o subemprego. O autor deduz que a forma como este mercado se constituiu no Brasil, a partir da experiência de escravização de africanos, reforçou a posição subalterna da mão de obra negra sob algumas características: a urbanização acelerada, acompanhada de forte concentração da pobreza, em nível regional e também nas grandes cidades; a existência de um setor informal de grandes dimensões; e as diferenças de renda e de acesso ao emprego em função da origem racial. Ele afirma que o mercado de trabalho é uma das principais correias de transmissão do racismo e a reversão desta realidade só se efetivará via articulação de políticas redistributivas associadas a políticas de combate ao racismo e aos seus desdobramentos.

O terceiro capítulo versa sobre o papel da educação e da saúde na construção da desigualdade. O autor entende que há uma confluência de fatores comuns a estas duas politicas públicas. Discorre sobre a ideia de eugenia e das teorias para melhoria da raça (embranquecimento), o processo de privatização com a compartimentalização destes serviços e as barreiras de acesso a estes dois sistemas, ressaltando os privilégios que as classes mais abastadas e brancas da sociedade detêm em relação ao seu usufruto. O autor constata que educação e a saúde, como motores de disseminação de desigualdade, acolhem mecanismos simbólicos que reforçam o lugar subalterno da população negra ao repartir desproporcionalmente a infraestrutura de ambas as áreas, selecionando quem merece ter bem-estar e embargar o seu acesso às melhores condições materiais de vida, relacionadas à formação, cuidados e oportunidades, organizando e reproduzindo o lugar de subordinação e a sociedade desigual.

No quarto capítulo, a atenção do autor se volta para a ocupação dos espaços urbanos e rurais na sociedade desigual. Constata, no caso das cidades brasileiras, um modelo de apartação onde as classes mais abastadas residem em bairros e condomínios fechados, seguros, protegidos e com acesso a diversos serviços que lhes garantem qualidade de vida. Nos arredores desses bairros, estruturam-se favelas, mocambos, palafitas e periferia, destituídos da presença do setor publico ou privado, onde residem majoritariamente a população negra. No caso das áreas rurais, o desenvolvimento do agronegócio gerou a expulsão do trabalhador do campo, criando uma horda dos chamados ‘sem-terra’. Para o autor, esse fenômeno de espacialização se inicia na virada do século XIX quando a urbanização se intensificou e as populações negras foram expulsas dos espaços centrais das cidades e das áreas rurais mais valorizadas. Convencionou-se que essas áreas periféricas dos centros urbanosk onde vive a população negra e pobre, encarna o local de criação da marginalidade e do mal, despertando sempre o medo e a inquietação das nossas elites. No campo, as comunidades quilombolas e e de agricultores familiares não conseguem legalizar o seu direito a terra devido a burocracia governamental. A sociedade desigual fez assim, dos negros e dos pobres, sobretudo dos negros pobres, o objeto do seu desprezo e aviltamento.

O quinto capítulo se refere ao elemento aglutinador da sociedade desigual, qual seja, a violência como prática de Estado e que acaba por extrapolar para a ação de segmentos não estatais. Ai reside o seu fator de coesão e sustentação. Esta violência assume várias facetas sociais, mas se consolida como dado do cotidiano de mortes e de uma polícia que se faz presente não para garantir a segurança do cidadão e da cidadã, mas para os reprimir e exterminar. Ela é respaldada pelo racismo do sistema judiciário e de seus operadores, que agem de forma seletiva, dando legitimidade às ações perpetradas pelos órgãos de segurança e extrapolando os limites da lei. A ordem social, no caso, é determinada pela força e, inclusive, a pacificação vem sempre acompanhada da violência. Segundo o autor, o binômio violência e justiça é fundamental para entender o funcionamento da sociedade racista. Sua análise permite dimensionar o quanto a sociedade desigual é embrutecida e arbitrária por não admitir contestações aos seus alicerces ideológicos e contar sempre com o apoio da branquitude sob o manto do racismo, do preconceito e da discriminação racial. A polícia que vai à favela é também uma polícia política, um braço do Estado que está ali para reprimir, mas uma repressão que é política e cuja violência é muitas vezes letal e não aceita divergências.

No sexto e último capítulo, o autor vai remontar às partes descritas nos capítulos anteriores no intuito de identificar as características da sociedade desigual, a sua resiliência e perenidade, e as respectivas consequências. O esforço investigativo dar-se-á em busca da centralidade do racismo e de seus desdobramentos, junto a características como a deformação do perfil produtivo de bens e serviços e do mercado de trabalho e uma reestruturação perversa e parcial do arcabouço jurídico-constitucional que privilegia os grupos dominantes. O autor tenta discutir uma agenda de consenso voltada para atenuar as desigualdades, esbarrando sempre no estágio em que esse fenômeno se encontra na realidade brasileira sem perder de vista o uso constante da violência como seu substrato.

Theodoro percebe como a nação que, no século passado, apresentou taxas de crescimento das mais expressivas, não logrou, similarmente a outros países, reverter o quadro de pobreza e desigualdade em momentos de abundância econômica, fato este só explicado pela influência direta do racismo e seus desdobramentos nos planos micro e macro da sociedade.

Entra Apulso resiste à especulação imobiliária na zona nobre do Recife | Imagem: Brasil de Fato

Reputo Sociedade Desigual como um livro que testemunha o caminho vivenciado por Mário Theodoro, muito além do que costumamos acompanhar nos diversos estudos, análises e reflexões realizados a uma distância segura característica da pesquisa inodora, branca e limpa. De fato, o autor consegue expor as complexas dinâmicas que dão sustentação à sociedade desigual brasileira.

Se há lacuna nesse trabalho, ela diz respeito à análise do modelo político brasileiro e à quase invisibilidade de negros(as) nas esferas de poder político, em paralelo aos demais segmentos analisados pelo autor. Contribuições como a de Luís Felipe Miguel, Luiz Augusto Campo, Carlos Machado, Flávia Rios ou o do próprio Hélio Santos, que prefacia esse livro, enriqueceriam ainda mais o seu conteúdo, agregando maiores subsídios à ação política do movimento negro como ator singular para entabular qualquer processo de mudança numa sociedade desigual. O autor cumpre bem a meta do livro. Também por essa razão, recomendaria a leitura deste livro não somente para a chamada militância negra, mas para que políticos, gestores públicos e toda a comunidade acadêmica possa refletir sobre a sociedade desigual na qual estamos vivendo e buscar soluções coletivas que contribuam com a reversão do quadro apresentado, plantando as bases de novos tempos na sociedade brasileira.

Sumário de A sociedade desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil

  • Prefácio | Hélio Santos
  • Introdução
  • 1. O desafio de se estudar o racismo como elemento organizador da sociedade desigual: Aspectos teóricos e metodológicos
  • 2. Mercado de trabalho, desigualdade e racismo
  • 3. O papel da educação e da saúde na construção da desigual
  • 4. Quilombos, favelas, alagados, mocambos, palafitas e a periferia: A ocupação do espaço na construção da desigualdade
  • 5. Violência e ausência de justiça: A consolidação da sociedade desigual
  • 6. Juntando as partes: As bases gerais da sociedade desigual
  • Epilogo: O papel do ativismo negro, um contraponto necessário
  • Agradecimentos
  • Notas
  • Bibliografia

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Carlos Eduardo Trindade Santos é mestrando em Sociologia (UFS), especialista em Ciência Política (UnB) e graduado em Ciências Econômicas (UFS). Fundou e presidiu a União dos Negros de Aracaju (UNA) e a Sociedade Afrosergipana de Estudos e Cidadania  (SACI). Atua como tesoureiro do Instituto Braços de Direitos Humanos (IB) e representante do IB no Instituto Braços no Fórum de Organizações Negras Contra o Racismo e pela Democracia e o Bem Comum (FONERD). É autor de Estado, Politicas Públicas e Comunidades Tradicionais Negras no Brasil: Um panorama das ações governamentais junto as comunidades quilombolas no período 2003-2006 e Há luz no fim do túnel para a igualdade racial em Sergipe. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5268778020592238; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0002-7886-2666; Redes soiais: https://br.linkedin.com/in/carlos-eduardo-trindade-santos-74365059; E.mail: cetsdf@gmail.com.


Para citar esta resenha

THEODORO, Mário. A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. 477p. Resenha de: SANTOS, Carlos Eduardo Trindade. Olhar militante sobre a desigualdade. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/olhar-militante-sobre-sociedade-desigual-resenha-de-carlos-eduardo-trindade-santos-ufs-sinaf-sobre-o-livro-a-sociedade-desigual-racismo-e-branquitude-na-formacao-do-brasil/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

Pesquisa/Search

Alertas/Alerts

Olhar militante sobre a desigualdade — Resenha de Carlos Eduardo Trindade Santos (UFS/SINAF) sobre o livro “A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil”, de Mário Theodoro

Mário Theodoro | Imagem: Emfan

Resumo: A sociedade desigual: Racismo e Branquitude na formação do Brasil, de Mário Theodoro, explora a persistente desigualdade racial no Brasil. Theodoro analisa os modos de estruturação do racismo na sociedade, explorando áreas como o mercado de trabalho, educação, saúde, urbanização e o binômio violência e justiça. Crítica a invisibilidade dos negros nas esferas de poder e a ação limitada do Estado, propondo reflexões para mudanças sociais.

Palavras-chave: Desigualdade, Racismo, Branquitude.


A sociedade desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil (Zahar, 2022) é a nova obra do pesquisador Mario Theodoro. O autor define sociedade desigual como “uma conformação social caracterizada por uma desigualdade extrema e persistente e cuja a intensidade ultrapassa os limites da legalidade” (p.17). A obra tem como objetivo central “apresentar e analisar as complexas dinâmicas de produção e reprodução das desigualdades no sentido de formatar e consolidar a sociedade desigual assentada no racismo” (p.27).

Mário Theodoro é economista, com mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutorado pela Universidade Paris I — Sorbonne. Consultor Legislativo aposentado do Senado Federal, foi Secretário Executivo da Secretaria Especial de Políticas de Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR). É professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB). Recentemente, escreveu dois textos acerca da política de igualdade racial, sendo o primeiro Racismo, discriminação e preconceito: delimitando o raio de ação das políticas de promoção da igualdade racial (Unesp, 2019) e Dez anos da política de promoção da igualdade racial no Brasil: o que aprendemos (Fundação Perseu Abramo, 2020). Em A sociedade desigual, Theodoro avança nos diagnósticos anteriores da sua trilha intelectual, centrada no mundo do trabalho, nas desigualdades sociais e no monitoramento das políticas públicas, para discorrer sobre a formação do país a partir das relações raciais aqui constituídas. Para tanto o autor organiza seu texto em seis capítulos temáticos nos quais caracteriza o que denomina sociedade desigual. No epílogo, discorre sobre o papel e a importância dos movimentos negros para a superação da realidade tratada no livro, que possui 447 páginas.

No primeiro capítulo, o autor vai expor o referencial teórico e metodológico que sustenta os seus argumentos, realizando uma revisão crítica da bibliografia nacional e estrangeira na área da teoria econômica, do desenvolvimento, do trabalho e da sociedade brasileira, permeada pela produção de intelectuais negros(as) acerca da questão racial brasileira. Ele constata que as contribuições da teoria econômica, os modelos neoclássicos, a perspectiva marxista e as ciências sociais são bastante limitados para a apreciação do fenômeno do racismo. Em contrapartida, vai ressaltar autores que direcionaram as suas reflexões acerca da desigualdade e da temática racial e, com eles, conceitos como o de racismo, preconceito, discriminação, branquitude, biopoder e necropolítica. A partir desta leitura crítica, conclui que se forjaram no Brasil todos os ingredientes necessários à formação da sociedade desigual: o racismo como ideologia dominante, o preconceito e a discriminação racial como práticas corriqueiras, a branquitude e a valorização do branco e, no caso da ação do Estado, o biopoder que flagela e a necropolítica que mata.

O segundo capítulo está focado na análise do mercado de trabalho brasileiro tanto do ponto de vista histórico quanto dos cenários produtivos, ressaltando a sua incapacidade de inclusão social, a propensão a informalidade como meio de sobrevivência e seu papel na reprodução das desigualdades raciais. O autor chama a atenção para o fato de esse segmento apresentar limitada capacidade de proporcionar empregos protegidos e bem remunerados, direcionando as melhores posições para uma maioria de trabalhadores brancos e transformando a força de trabalho negra em um exército de reserva para repositório ao qual o mercado sempre recorre quando necessita rebaixar o valor do trabalho ante ao capital ou o subemprego. O autor deduz que a forma como este mercado se constituiu no Brasil, a partir da experiência de escravização de africanos, reforçou a posição subalterna da mão de obra negra sob algumas características: a urbanização acelerada, acompanhada de forte concentração da pobreza, em nível regional e também nas grandes cidades; a existência de um setor informal de grandes dimensões; e as diferenças de renda e de acesso ao emprego em função da origem racial. Ele afirma que o mercado de trabalho é uma das principais correias de transmissão do racismo e a reversão desta realidade só se efetivará via articulação de políticas redistributivas associadas a políticas de combate ao racismo e aos seus desdobramentos.

O terceiro capítulo versa sobre o papel da educação e da saúde na construção da desigualdade. O autor entende que há uma confluência de fatores comuns a estas duas politicas públicas. Discorre sobre a ideia de eugenia e das teorias para melhoria da raça (embranquecimento), o processo de privatização com a compartimentalização destes serviços e as barreiras de acesso a estes dois sistemas, ressaltando os privilégios que as classes mais abastadas e brancas da sociedade detêm em relação ao seu usufruto. O autor constata que educação e a saúde, como motores de disseminação de desigualdade, acolhem mecanismos simbólicos que reforçam o lugar subalterno da população negra ao repartir desproporcionalmente a infraestrutura de ambas as áreas, selecionando quem merece ter bem-estar e embargar o seu acesso às melhores condições materiais de vida, relacionadas à formação, cuidados e oportunidades, organizando e reproduzindo o lugar de subordinação e a sociedade desigual.

No quarto capítulo, a atenção do autor se volta para a ocupação dos espaços urbanos e rurais na sociedade desigual. Constata, no caso das cidades brasileiras, um modelo de apartação onde as classes mais abastadas residem em bairros e condomínios fechados, seguros, protegidos e com acesso a diversos serviços que lhes garantem qualidade de vida. Nos arredores desses bairros, estruturam-se favelas, mocambos, palafitas e periferia, destituídos da presença do setor publico ou privado, onde residem majoritariamente a população negra. No caso das áreas rurais, o desenvolvimento do agronegócio gerou a expulsão do trabalhador do campo, criando uma horda dos chamados ‘sem-terra’. Para o autor, esse fenômeno de espacialização se inicia na virada do século XIX quando a urbanização se intensificou e as populações negras foram expulsas dos espaços centrais das cidades e das áreas rurais mais valorizadas. Convencionou-se que essas áreas periféricas dos centros urbanosk onde vive a população negra e pobre, encarna o local de criação da marginalidade e do mal, despertando sempre o medo e a inquietação das nossas elites. No campo, as comunidades quilombolas e e de agricultores familiares não conseguem legalizar o seu direito a terra devido a burocracia governamental. A sociedade desigual fez assim, dos negros e dos pobres, sobretudo dos negros pobres, o objeto do seu desprezo e aviltamento.

O quinto capítulo se refere ao elemento aglutinador da sociedade desigual, qual seja, a violência como prática de Estado e que acaba por extrapolar para a ação de segmentos não estatais. Ai reside o seu fator de coesão e sustentação. Esta violência assume várias facetas sociais, mas se consolida como dado do cotidiano de mortes e de uma polícia que se faz presente não para garantir a segurança do cidadão e da cidadã, mas para os reprimir e exterminar. Ela é respaldada pelo racismo do sistema judiciário e de seus operadores, que agem de forma seletiva, dando legitimidade às ações perpetradas pelos órgãos de segurança e extrapolando os limites da lei. A ordem social, no caso, é determinada pela força e, inclusive, a pacificação vem sempre acompanhada da violência. Segundo o autor, o binômio violência e justiça é fundamental para entender o funcionamento da sociedade racista. Sua análise permite dimensionar o quanto a sociedade desigual é embrutecida e arbitrária por não admitir contestações aos seus alicerces ideológicos e contar sempre com o apoio da branquitude sob o manto do racismo, do preconceito e da discriminação racial. A polícia que vai à favela é também uma polícia política, um braço do Estado que está ali para reprimir, mas uma repressão que é política e cuja violência é muitas vezes letal e não aceita divergências.

No sexto e último capítulo, o autor vai remontar às partes descritas nos capítulos anteriores no intuito de identificar as características da sociedade desigual, a sua resiliência e perenidade, e as respectivas consequências. O esforço investigativo dar-se-á em busca da centralidade do racismo e de seus desdobramentos, junto a características como a deformação do perfil produtivo de bens e serviços e do mercado de trabalho e uma reestruturação perversa e parcial do arcabouço jurídico-constitucional que privilegia os grupos dominantes. O autor tenta discutir uma agenda de consenso voltada para atenuar as desigualdades, esbarrando sempre no estágio em que esse fenômeno se encontra na realidade brasileira sem perder de vista o uso constante da violência como seu substrato.

Theodoro percebe como a nação que, no século passado, apresentou taxas de crescimento das mais expressivas, não logrou, similarmente a outros países, reverter o quadro de pobreza e desigualdade em momentos de abundância econômica, fato este só explicado pela influência direta do racismo e seus desdobramentos nos planos micro e macro da sociedade.

Entra Apulso resiste à especulação imobiliária na zona nobre do Recife | Imagem: Brasil de Fato

Reputo Sociedade Desigual como um livro que testemunha o caminho vivenciado por Mário Theodoro, muito além do que costumamos acompanhar nos diversos estudos, análises e reflexões realizados a uma distância segura característica da pesquisa inodora, branca e limpa. De fato, o autor consegue expor as complexas dinâmicas que dão sustentação à sociedade desigual brasileira.

Se há lacuna nesse trabalho, ela diz respeito à análise do modelo político brasileiro e à quase invisibilidade de negros(as) nas esferas de poder político, em paralelo aos demais segmentos analisados pelo autor. Contribuições como a de Luís Felipe Miguel, Luiz Augusto Campo, Carlos Machado, Flávia Rios ou o do próprio Hélio Santos, que prefacia esse livro, enriqueceriam ainda mais o seu conteúdo, agregando maiores subsídios à ação política do movimento negro como ator singular para entabular qualquer processo de mudança numa sociedade desigual. O autor cumpre bem a meta do livro. Também por essa razão, recomendaria a leitura deste livro não somente para a chamada militância negra, mas para que políticos, gestores públicos e toda a comunidade acadêmica possa refletir sobre a sociedade desigual na qual estamos vivendo e buscar soluções coletivas que contribuam com a reversão do quadro apresentado, plantando as bases de novos tempos na sociedade brasileira.

Sumário de A sociedade desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil

  • Prefácio | Hélio Santos
  • Introdução
  • 1. O desafio de se estudar o racismo como elemento organizador da sociedade desigual: Aspectos teóricos e metodológicos
  • 2. Mercado de trabalho, desigualdade e racismo
  • 3. O papel da educação e da saúde na construção da desigual
  • 4. Quilombos, favelas, alagados, mocambos, palafitas e a periferia: A ocupação do espaço na construção da desigualdade
  • 5. Violência e ausência de justiça: A consolidação da sociedade desigual
  • 6. Juntando as partes: As bases gerais da sociedade desigual
  • Epilogo: O papel do ativismo negro, um contraponto necessário
  • Agradecimentos
  • Notas
  • Bibliografia

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Carlos Eduardo Trindade Santos é mestrando em Sociologia (UFS), especialista em Ciência Política (UnB) e graduado em Ciências Econômicas (UFS). Fundou e presidiu a União dos Negros de Aracaju (UNA) e a Sociedade Afrosergipana de Estudos e Cidadania  (SACI). Atua como tesoureiro do Instituto Braços de Direitos Humanos (IB) e representante do IB no Instituto Braços no Fórum de Organizações Negras Contra o Racismo e pela Democracia e o Bem Comum (FONERD). É autor de Estado, Politicas Públicas e Comunidades Tradicionais Negras no Brasil: Um panorama das ações governamentais junto as comunidades quilombolas no período 2003-2006 e Há luz no fim do túnel para a igualdade racial em Sergipe. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5268778020592238; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0002-7886-2666; Redes soiais: https://br.linkedin.com/in/carlos-eduardo-trindade-santos-74365059; E.mail: cetsdf@gmail.com.


Para citar esta resenha

THEODORO, Mário. A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. 477p. Resenha de: SANTOS, Carlos Eduardo Trindade. Olhar militante sobre a desigualdade. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/olhar-militante-sobre-sociedade-desigual-resenha-de-carlos-eduardo-trindade-santos-ufs-sinaf-sobre-o-livro-a-sociedade-desigual-racismo-e-branquitude-na-formacao-do-brasil/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

Resenhistas

Privacidade

Ao se inscrever nesta lista de e-mails, você estará sujeito à nossa política de privacidade.

Acesso livre

Crítica Historiográfica não cobra taxas para submissão, publicação ou uso dos artigos. Os leitores podem baixar, copiar, distribuir, imprimir os textos para fins não comerciais, desde que citem a fonte.

Foco e escopo

Publicamos resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas acadêmicas que tratem da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História. Saiba mais sobre o único periódico de História inteiramente dedicado à Crítica em formato resenha.

Corpo editorial

Somos professore(a)s do ensino superior brasileiro, especializado(a)s em mais de duas dezenas de áreas relacionadas à reflexão, produção e usos da História. Faça parte dessa equipe.

Submissões

As resenhas devem expressar avaliações de livros ou de dossiês de revistas acadêmicas autodesignadas como "de História". Conheça as normas e envie-nos o seu texto.

Pesquisa


Enviar mensagem de WhatsApp