Para tudo se canta – Resenha de Rodrigo Heringer Costa (UFRB) sobre o livro “A música no candomblé: Etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia”, de Angela Luhning

Angela Luhning | Imagem: Divulgação/A Tarde

Resumo: A música no candomblé: etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia, de Angela Luhning, investiga os elementos musicais no candomblé do terreiro Ilê Axé Opô Aganjú, na Bahia. A obra, de relevância primordial pelo pioneirismo da análise musical detalhada e contextualização histórica que abarca, também reproduz informações hoje são relativizadas ou questionadas.

Palavras-chave: candomblé; Etnomusicologia; música religiosa.


No livro A música no candomblé: etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia, lançado em 2022, Angela Luhning realiza uma abordagem etnográfica dos elementos musicais presentes no candomblé, focando sua pesquisa no terreiro cujo nome compõe o título da obra. Ao conduzir um processo de observação participante no local, entre 1984 e 1989, Luhning busca compreender a inserção da música no contexto ritual dessa religião afro-brasileira, particularmente no terreiro de nação nagô-ketu. O livro faz uma análise aprofundada do repertório de cânticos associado ao Ilê Axé Opô Aganjú, explorando a vital importância da música na estruturação das práticas religiosas no candomblé. O prefácio, assinado por Reginaldo Prandi, e a apresentação da edição brasileira, pela própria autora, contextualizam a obra e apresentam-na como valiosa contribuição à etnomusicologia e aos estudos sobre as manifestações culturais afro-brasileiras.

Luhning possui doutorado em Etnomusicologia pela Universidade Livre de Berlim e é professora titular aposentada da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (EMUS/UFBA). O livro corresponde a uma tradução de sua tese de doutoramento, defendida ao final de 1989 e publicada na Alemanha, em 1990. À época, as práticas religiosas do candomblé já experimentavam alguns avanços políticos relevantes na Bahia e no Brasil, ainda que tenham permanecido alvo estrutural de discriminação e perseguição até o presente. A redemocratização no Brasil, fortemente marcada pela primeira eleição livre e direta para presidente no país em 1989, é concebida a partir do estabelecimento de uma nova Constituição federal no ano anterior, que estipulou a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, bem como se propôs a assegurar o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos seus locais de prática.

A obra se estrutura em 11 capítulos, cada um deles subdividido entre 2 e 6 seções. No primeiro capítulo é tratado o processo histórico de constituição do candomblé no Brasil, em suas continuidades e particularidades em relação às práticas religiosas na África que lhe serviram de matriz. Os ritos e fundamentos da religião, sedimentados após longo processo de decantação em terras brasileiras, também são abordados, com destaque para suas características musicais e as correspondências rituais que engendram. No Capítulo II são retratados elementos objetivos e simbólicos relacionados ao campo de pesquisa. Uma breve descrição da história e organização espacial do Opô Aganjú precede o detalhamento de sua estruturação hierárquica, dos cargos ocupados pelas iniciadas no candomblé e do ciclo de festas no terreiro durante o ano de 1988, integralmente acompanhado pela autora.

O terceiro capítulo é dedicado à descrição detalhada de uma festa para Oxum, orixá que se manifestava – à época da pesquisa de campo – com maior frequência no terreiro tomado por lócus de pesquisa. Luhning, no entanto, conduz inicialmente um relato da história do referido santo (termo êmico para referência às divindades), suas características e a maneira como o mito que lhe particulariza é evocado durante os rituais preparatórios (matança e padê) e também no decorrer do evento público, os quais acompanhou durante o campo. Na sequência (Capítulo IV), a autora inicia a discussão com questionamentos comumente protagonizados por não iniciados acerca dos rituais associados ao candomblé: “E o que significa tudo isto? O que é que se obtém com isso” (p.75). Parte, assim, para a abordagem de diversos aspectos do sistema religioso a que se reporta, a exemplo da relação ritual com as divindades e ancestralidade, explicitando a relevância de elementos constituintes daquele – a terra, o sangue e as plantas, folhas e ervas, por exemplo – e de conceitos nativos frequentemente evocados pelas praticantes da religião, tais como os de “axé” e “fundamento”.

Abordando a denominada iniciação, também referida pelo epíteto feitura, o quinto capítulo permite um aprofundamento na compreensão das hierarquias estruturantes da religião. O processo é tomado como um divisor de águas na vida da não-iniciada, sendo o responsável pela fixação do orixá em sua cabeça e também em um “assentamento”, local ao qual ela deve se dirigir quando da necessidade de pedir ajuda aos santos. Na sequência (Capítulo VI), Luhning se dedica à compreensão das continuidades entre a personalidade do indivíduo e a de seu orixá. Ressalta haver uma tendência ao paralelismo entre as características pessoais de ambos, que pode entrar em conflito com a personalidade de um segundo ou terceiro santo a partilharem a responsabilidade sobre a cabeça da iniciada. Verifica ainda uma tendência à crescente convergência entre as personalidades da filha de santo e de seu orixá com o passar dos anos, fenômeno de possível relação com a diminuição do número de transes por elas protagonizadas.

Luhning se dedica então, nos dois capítulos seguintes (VII e VIII) à compreensão do transe, ressaltando aspectos que impactam a sua manifestação, incluindo aqueles atrelados ao trabalho acústico. A autora entende o transe como um amplo comportamento condicionado, por meio do qual se identifica a ligação entre uma pessoa e o seu orixá. No candomblé, identifica, uma rede complexa de elementos que influencia o fenômeno, com destaque para a música, evocada deliberadamente no intuito de chamar o orixá (à incorporação).

O capítulo IX é dedicado à análise formal dos elementos estético-musicais que particularizam as cantigas do terreiro, com especial atenção para aquelas evocadas durante a já referida festa de Oxum. Luhning conduz detalhada análise dos ciclos rítmicos e das estruturas musicais e culturais que lhes conferem sentido ritual, identificando as estruturas rítmicas que acompanham as cantigas. Posteriormente, dedica-se à análise das estruturas melódicas, das formas musicais, dos tipos funcionais de cantigas, das relações entre os últimos e os padrões rítmicos executados pelos instrumentos percussivos e das recorrências melódicas por ela identificadas nos cânticos. Importantes conclusões emergem da análise empreendida, como a verificação da forma de acentuação como elemento capital para a particularização e distinção entre estruturas melódicas e repertórios, independentemente da manutenção dos elementos rítmicos, escalas e sequências intervalares evocados em uma performance, expressando parâmetros divergentes àqueles mais comumente utilizados na música moderna ocidental para realizar semelhantes classificações. Outra constatação relevante é a recorrência de dois ou mais polos de atração tonal referentes ao repertório evocado durante os rituais religiosos, quando não de sua completa indefinição, em determinadas ocasiões por ela observadas.

Objetivando evidenciar ainda mais as relações entre a música e os elementos rituais com os quais está imbricada, Luhning se propõe, no Capítulo X, a analisar as letras das cantigas, abordando-as em perspectiva histórica. Vale-se, para tal finalidade, de aproximações com as filhas de santo, no intuito de estabelecer uma proposta de transcrição e tradução dialógica do repertório evocado nas cerimônias do Ilê Axé Opô Aganjú. A partir daí, estabelece uma rede de explicação a partir das letras que envolve considerar, além do elemento textual, a mitologia, a dança e os toques executados no atabaque maior (e de registro mais grave) presente em diversos rituais do candomblé – o rum. O capítulo derradeiro do livro (XI) trata de processos de mudança no candomblé, um debate já em grande evidência à época da redação da tese de Luhning. A autora ressalta as alterações percebidas durante o campo que dizem respeito ao tempo de feitura, hoje mais curto que no passado; à rigidez das obrigações, sendo verificado um grau crescente de flexibilidade; à fidelidade das filhas de santo aos terreiros, sua desvinculação destas para a criação de suas próprias casas de candomblé; à quantidade de festas, com ciclos menos extensos de eventos; à presença do candomblé de caboclo, em evidência crescente; ao andamento do toque no ijexá em contextos rituais, em gradual redução, devido a influências decorrentes do diálogo com a música profana; às mudanças escalares a estruturarem o canto, com maior presença de escalas diatônicas; ao fenômeno do esquecimento, vinculado à memória coletiva, resultando em uma paulatina redução do repertório à disposição dos adeptos; entre diversas outras.

Em “A música no candomblé: etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia”, Angela Luhning traz relevantes contribuições à pesquisa sobre a religião, principalmente no que diz respeito a seus elementos musicais. A análise, contextualizada a partir de um único terreiro situado na região metropolitana da capital baiana, tem muito a contribuir para interessados em estudos posteriores sobre a música candomblé de um modo geral, principalmente aqueles de vinculação à nação nagô-ketu. Uma grande preocupação é verificada no uso de conceitos, terminologias, pressupostos e processos/metodologias de trabalho nativos (êmicos) para análise dos elementos melódicos, textuais e – em menor escala – harmônicos (quando do tratamento da polifonia no contexto ritual, por exemplo) e rítmicos do candomblé, bem como para a compreensão destes à luz de suas inevitáveis conexões com elementos religiosos aos quais mostram-se imbricados. Vale destacar ainda a presença de 84 transcrições de cânticos com os quais Luhning teve contato durante o seu campo de pesquisa, anexadas ao material publicado.

Diante do distanciamento temporal entre o período da redação etnográfica (fins da década de 1980) e a publicação de seu conteúdo em livro (2022), é possível verificar algumas informações hoje relativizadas ou questionadas referentes às análises protagonizadas pela autora, muitas delas ressaltadas pela própria na apresentação à edição brasileira do material. Ressaltaria, além destas, uma reprodução da hoje questionada cronologia da formação dos terreiros de candomblé em Salvador, quando se refere, no capítulo II, à Casa Branca como terreiro onde teria sido protagonizada a cisão que resultou na formação do Gantois (Castillo, 2017).

Uma compreensão dos toques Daró e Agabi (Capítulo IX) como possíveis ornamentações especiais do rum, subordinando-os a outros toques, parece resultar de lacunas informativas obtidas por Luhning durante o período de campo ou de particularidades acerca de sua compreensão entre suas principais informantes do Opô Aganjú, uma vez que ambos são, hoje, frequentemente referidos em suas particularidades por alabês e outras praticantes da religião.

Toque de Daró | Imagem: Canal Bàbá Korin

O protagonismo das mulheres no candomblé baiano, reforçado pela autora a partir de suas experiências de campo (Capítulo II), mostrou-se outra visão, posteriormente, relativizada por autores que se debruçaram sobre a relevância de diversas personalidades masculinas para a estruturação e consolidação das comunidades afro-religiosas na Bahia (Braga, 2014). Vale ressaltar, entretanto, que as pesquisas aqui mencionadas foram publicadas posteriormente à escrita doutoral de Luhning, que não tinha, à época, acesso às informações abarcadas por aquelas.

Ainda que, como argumenta sobre o livro seu prefaciador, “no âmbito do candomblé, muita coisa pode ter mudado nessas três décadas que separam a edição alemã da brasileira, assim como muita coisa mudou na sociedade como um todo e no próprio universo das religiões” (p.18), o texto ao qual a presente resenha se reporta traz contribuições inestimáveis para uma melhor compreensão das práticas musicais protagonizadas por praticantes da religião, em termos éticos e estéticos. Por meio da conciliação de um trabalho científico cuidadoso e uma linguagem acessível utilizada para sua materialização em livro, o trabalho se direciona a admiradores e praticantes das religiões afrodiaspóricas na América Latina e também a pesquisadores – acadêmicos ou não – que se debruçam sobre o tema na atualidade.

Referências              

ARAÚJO, Samuel. Entre muros, grades e blindados: trabalho acústico a práxis sonora na sociedade pós industrial. El Oído Pensante. vol. 1, n.1 2013.

BRAGA, Julio. Candomblé: a cidade das mulheres e dos homens. São Paulo: Vento Leste, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 de dezembro de 2023.

CARDOSO, Ângelo Nonato Natale. A linguagem dos tambores. Salvador, 2006. Tese (Doutorado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia.

CASTILLO, Lisa Earl. O terreiro do Gantois: redes sociais e etnografia histórica no século XIX. Revista de História. São Paulo, n.176, p.01-57, 2017.

SCHAFER, Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Unesp, 2011.

Sumário de A música no candomblé: Etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia

  • Prefácio
  • Apresentação da edição brasileira
  • Introdução
  • 1. Breve introdução à história do candomblé
  • 2. A pesquisa de campo: estudo de caso de um terreiro
  • 3. Uma festa para Oxum
  • 4. O sistema religioso do candomblé
  • 5. A iniciação
  • 6. O orixá e a personalidade do indivíduo
  • 7. O fenômeno do transe
  • 8. Música e transe
  • 9. Estruturas musicais e funções rituais das cantigas
  • 10. As letras das cantigas
  • 11. Processos de mudança no candomblé
  • Considerações finais
  • Posfácio
  • Referências
  • Apêndice A – Análise esquemática
  • Apêndice B – Transcrições musicais

Resenhista

Rodrigo Heringer Costa é doutor em Música e docente pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), na área de Percussão. É autor do livro Vibrafonistas no Choro e seus processos de formação: mediações e algumas com contribuições à Educação Formal” (2015). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/3439337724342444; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4264-0386; E-mail: rodrovas@gmail.com.

 


Para citar esta resenha

LÜHNINNG, Angela. A música no candomblé: etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia. Salvador: Editora da UFBA, 2022. 50.500 Kb; Epub. Resenha de: COSTA, Rodrigo Heringer. Para tudo se canta. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.17, maio/jun., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/para-tudo-se-canta-resenha-de-rodrigo-heringer-costa-ufrb-sobre-o-livro-a-musica-no-candomble-etnomusicologia-no-ile-axe-opo-aganju-bahia-de-angela-luhning/>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 17, maio/jun., 2024 | ISSN 2764-2666.

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Para tudo se canta – Resenha de Rodrigo Heringer Costa (UFRB) sobre o livro “A música no candomblé: Etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia”, de Angela Luhning

Angela Luhning | Imagem: Divulgação/A Tarde

Resumo: A música no candomblé: etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia, de Angela Luhning, investiga os elementos musicais no candomblé do terreiro Ilê Axé Opô Aganjú, na Bahia. A obra, de relevância primordial pelo pioneirismo da análise musical detalhada e contextualização histórica que abarca, também reproduz informações hoje são relativizadas ou questionadas.

Palavras-chave: candomblé; Etnomusicologia; música religiosa.


No livro A música no candomblé: etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia, lançado em 2022, Angela Luhning realiza uma abordagem etnográfica dos elementos musicais presentes no candomblé, focando sua pesquisa no terreiro cujo nome compõe o título da obra. Ao conduzir um processo de observação participante no local, entre 1984 e 1989, Luhning busca compreender a inserção da música no contexto ritual dessa religião afro-brasileira, particularmente no terreiro de nação nagô-ketu. O livro faz uma análise aprofundada do repertório de cânticos associado ao Ilê Axé Opô Aganjú, explorando a vital importância da música na estruturação das práticas religiosas no candomblé. O prefácio, assinado por Reginaldo Prandi, e a apresentação da edição brasileira, pela própria autora, contextualizam a obra e apresentam-na como valiosa contribuição à etnomusicologia e aos estudos sobre as manifestações culturais afro-brasileiras.

Luhning possui doutorado em Etnomusicologia pela Universidade Livre de Berlim e é professora titular aposentada da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (EMUS/UFBA). O livro corresponde a uma tradução de sua tese de doutoramento, defendida ao final de 1989 e publicada na Alemanha, em 1990. À época, as práticas religiosas do candomblé já experimentavam alguns avanços políticos relevantes na Bahia e no Brasil, ainda que tenham permanecido alvo estrutural de discriminação e perseguição até o presente. A redemocratização no Brasil, fortemente marcada pela primeira eleição livre e direta para presidente no país em 1989, é concebida a partir do estabelecimento de uma nova Constituição federal no ano anterior, que estipulou a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, bem como se propôs a assegurar o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos seus locais de prática.

A obra se estrutura em 11 capítulos, cada um deles subdividido entre 2 e 6 seções. No primeiro capítulo é tratado o processo histórico de constituição do candomblé no Brasil, em suas continuidades e particularidades em relação às práticas religiosas na África que lhe serviram de matriz. Os ritos e fundamentos da religião, sedimentados após longo processo de decantação em terras brasileiras, também são abordados, com destaque para suas características musicais e as correspondências rituais que engendram. No Capítulo II são retratados elementos objetivos e simbólicos relacionados ao campo de pesquisa. Uma breve descrição da história e organização espacial do Opô Aganjú precede o detalhamento de sua estruturação hierárquica, dos cargos ocupados pelas iniciadas no candomblé e do ciclo de festas no terreiro durante o ano de 1988, integralmente acompanhado pela autora.

O terceiro capítulo é dedicado à descrição detalhada de uma festa para Oxum, orixá que se manifestava – à época da pesquisa de campo – com maior frequência no terreiro tomado por lócus de pesquisa. Luhning, no entanto, conduz inicialmente um relato da história do referido santo (termo êmico para referência às divindades), suas características e a maneira como o mito que lhe particulariza é evocado durante os rituais preparatórios (matança e padê) e também no decorrer do evento público, os quais acompanhou durante o campo. Na sequência (Capítulo IV), a autora inicia a discussão com questionamentos comumente protagonizados por não iniciados acerca dos rituais associados ao candomblé: “E o que significa tudo isto? O que é que se obtém com isso” (p.75). Parte, assim, para a abordagem de diversos aspectos do sistema religioso a que se reporta, a exemplo da relação ritual com as divindades e ancestralidade, explicitando a relevância de elementos constituintes daquele – a terra, o sangue e as plantas, folhas e ervas, por exemplo – e de conceitos nativos frequentemente evocados pelas praticantes da religião, tais como os de “axé” e “fundamento”.

Abordando a denominada iniciação, também referida pelo epíteto feitura, o quinto capítulo permite um aprofundamento na compreensão das hierarquias estruturantes da religião. O processo é tomado como um divisor de águas na vida da não-iniciada, sendo o responsável pela fixação do orixá em sua cabeça e também em um “assentamento”, local ao qual ela deve se dirigir quando da necessidade de pedir ajuda aos santos. Na sequência (Capítulo VI), Luhning se dedica à compreensão das continuidades entre a personalidade do indivíduo e a de seu orixá. Ressalta haver uma tendência ao paralelismo entre as características pessoais de ambos, que pode entrar em conflito com a personalidade de um segundo ou terceiro santo a partilharem a responsabilidade sobre a cabeça da iniciada. Verifica ainda uma tendência à crescente convergência entre as personalidades da filha de santo e de seu orixá com o passar dos anos, fenômeno de possível relação com a diminuição do número de transes por elas protagonizadas.

Luhning se dedica então, nos dois capítulos seguintes (VII e VIII) à compreensão do transe, ressaltando aspectos que impactam a sua manifestação, incluindo aqueles atrelados ao trabalho acústico. A autora entende o transe como um amplo comportamento condicionado, por meio do qual se identifica a ligação entre uma pessoa e o seu orixá. No candomblé, identifica, uma rede complexa de elementos que influencia o fenômeno, com destaque para a música, evocada deliberadamente no intuito de chamar o orixá (à incorporação).

O capítulo IX é dedicado à análise formal dos elementos estético-musicais que particularizam as cantigas do terreiro, com especial atenção para aquelas evocadas durante a já referida festa de Oxum. Luhning conduz detalhada análise dos ciclos rítmicos e das estruturas musicais e culturais que lhes conferem sentido ritual, identificando as estruturas rítmicas que acompanham as cantigas. Posteriormente, dedica-se à análise das estruturas melódicas, das formas musicais, dos tipos funcionais de cantigas, das relações entre os últimos e os padrões rítmicos executados pelos instrumentos percussivos e das recorrências melódicas por ela identificadas nos cânticos. Importantes conclusões emergem da análise empreendida, como a verificação da forma de acentuação como elemento capital para a particularização e distinção entre estruturas melódicas e repertórios, independentemente da manutenção dos elementos rítmicos, escalas e sequências intervalares evocados em uma performance, expressando parâmetros divergentes àqueles mais comumente utilizados na música moderna ocidental para realizar semelhantes classificações. Outra constatação relevante é a recorrência de dois ou mais polos de atração tonal referentes ao repertório evocado durante os rituais religiosos, quando não de sua completa indefinição, em determinadas ocasiões por ela observadas.

Objetivando evidenciar ainda mais as relações entre a música e os elementos rituais com os quais está imbricada, Luhning se propõe, no Capítulo X, a analisar as letras das cantigas, abordando-as em perspectiva histórica. Vale-se, para tal finalidade, de aproximações com as filhas de santo, no intuito de estabelecer uma proposta de transcrição e tradução dialógica do repertório evocado nas cerimônias do Ilê Axé Opô Aganjú. A partir daí, estabelece uma rede de explicação a partir das letras que envolve considerar, além do elemento textual, a mitologia, a dança e os toques executados no atabaque maior (e de registro mais grave) presente em diversos rituais do candomblé – o rum. O capítulo derradeiro do livro (XI) trata de processos de mudança no candomblé, um debate já em grande evidência à época da redação da tese de Luhning. A autora ressalta as alterações percebidas durante o campo que dizem respeito ao tempo de feitura, hoje mais curto que no passado; à rigidez das obrigações, sendo verificado um grau crescente de flexibilidade; à fidelidade das filhas de santo aos terreiros, sua desvinculação destas para a criação de suas próprias casas de candomblé; à quantidade de festas, com ciclos menos extensos de eventos; à presença do candomblé de caboclo, em evidência crescente; ao andamento do toque no ijexá em contextos rituais, em gradual redução, devido a influências decorrentes do diálogo com a música profana; às mudanças escalares a estruturarem o canto, com maior presença de escalas diatônicas; ao fenômeno do esquecimento, vinculado à memória coletiva, resultando em uma paulatina redução do repertório à disposição dos adeptos; entre diversas outras.

Em “A música no candomblé: etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia”, Angela Luhning traz relevantes contribuições à pesquisa sobre a religião, principalmente no que diz respeito a seus elementos musicais. A análise, contextualizada a partir de um único terreiro situado na região metropolitana da capital baiana, tem muito a contribuir para interessados em estudos posteriores sobre a música candomblé de um modo geral, principalmente aqueles de vinculação à nação nagô-ketu. Uma grande preocupação é verificada no uso de conceitos, terminologias, pressupostos e processos/metodologias de trabalho nativos (êmicos) para análise dos elementos melódicos, textuais e – em menor escala – harmônicos (quando do tratamento da polifonia no contexto ritual, por exemplo) e rítmicos do candomblé, bem como para a compreensão destes à luz de suas inevitáveis conexões com elementos religiosos aos quais mostram-se imbricados. Vale destacar ainda a presença de 84 transcrições de cânticos com os quais Luhning teve contato durante o seu campo de pesquisa, anexadas ao material publicado.

Diante do distanciamento temporal entre o período da redação etnográfica (fins da década de 1980) e a publicação de seu conteúdo em livro (2022), é possível verificar algumas informações hoje relativizadas ou questionadas referentes às análises protagonizadas pela autora, muitas delas ressaltadas pela própria na apresentação à edição brasileira do material. Ressaltaria, além destas, uma reprodução da hoje questionada cronologia da formação dos terreiros de candomblé em Salvador, quando se refere, no capítulo II, à Casa Branca como terreiro onde teria sido protagonizada a cisão que resultou na formação do Gantois (Castillo, 2017).

Uma compreensão dos toques Daró e Agabi (Capítulo IX) como possíveis ornamentações especiais do rum, subordinando-os a outros toques, parece resultar de lacunas informativas obtidas por Luhning durante o período de campo ou de particularidades acerca de sua compreensão entre suas principais informantes do Opô Aganjú, uma vez que ambos são, hoje, frequentemente referidos em suas particularidades por alabês e outras praticantes da religião.

Toque de Daró | Imagem: Canal Bàbá Korin

O protagonismo das mulheres no candomblé baiano, reforçado pela autora a partir de suas experiências de campo (Capítulo II), mostrou-se outra visão, posteriormente, relativizada por autores que se debruçaram sobre a relevância de diversas personalidades masculinas para a estruturação e consolidação das comunidades afro-religiosas na Bahia (Braga, 2014). Vale ressaltar, entretanto, que as pesquisas aqui mencionadas foram publicadas posteriormente à escrita doutoral de Luhning, que não tinha, à época, acesso às informações abarcadas por aquelas.

Ainda que, como argumenta sobre o livro seu prefaciador, “no âmbito do candomblé, muita coisa pode ter mudado nessas três décadas que separam a edição alemã da brasileira, assim como muita coisa mudou na sociedade como um todo e no próprio universo das religiões” (p.18), o texto ao qual a presente resenha se reporta traz contribuições inestimáveis para uma melhor compreensão das práticas musicais protagonizadas por praticantes da religião, em termos éticos e estéticos. Por meio da conciliação de um trabalho científico cuidadoso e uma linguagem acessível utilizada para sua materialização em livro, o trabalho se direciona a admiradores e praticantes das religiões afrodiaspóricas na América Latina e também a pesquisadores – acadêmicos ou não – que se debruçam sobre o tema na atualidade.

Referências              

ARAÚJO, Samuel. Entre muros, grades e blindados: trabalho acústico a práxis sonora na sociedade pós industrial. El Oído Pensante. vol. 1, n.1 2013.

BRAGA, Julio. Candomblé: a cidade das mulheres e dos homens. São Paulo: Vento Leste, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 de dezembro de 2023.

CARDOSO, Ângelo Nonato Natale. A linguagem dos tambores. Salvador, 2006. Tese (Doutorado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia.

CASTILLO, Lisa Earl. O terreiro do Gantois: redes sociais e etnografia histórica no século XIX. Revista de História. São Paulo, n.176, p.01-57, 2017.

SCHAFER, Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Unesp, 2011.

Sumário de A música no candomblé: Etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia

  • Prefácio
  • Apresentação da edição brasileira
  • Introdução
  • 1. Breve introdução à história do candomblé
  • 2. A pesquisa de campo: estudo de caso de um terreiro
  • 3. Uma festa para Oxum
  • 4. O sistema religioso do candomblé
  • 5. A iniciação
  • 6. O orixá e a personalidade do indivíduo
  • 7. O fenômeno do transe
  • 8. Música e transe
  • 9. Estruturas musicais e funções rituais das cantigas
  • 10. As letras das cantigas
  • 11. Processos de mudança no candomblé
  • Considerações finais
  • Posfácio
  • Referências
  • Apêndice A – Análise esquemática
  • Apêndice B – Transcrições musicais

Resenhista

Rodrigo Heringer Costa é doutor em Música e docente pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), na área de Percussão. É autor do livro Vibrafonistas no Choro e seus processos de formação: mediações e algumas com contribuições à Educação Formal” (2015). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/3439337724342444; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4264-0386; E-mail: rodrovas@gmail.com.

 


Para citar esta resenha

LÜHNINNG, Angela. A música no candomblé: etnomusicologia no Ilê Axé Opô Aganjú, Bahia. Salvador: Editora da UFBA, 2022. 50.500 Kb; Epub. Resenha de: COSTA, Rodrigo Heringer. Para tudo se canta. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.17, maio/jun., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/para-tudo-se-canta-resenha-de-rodrigo-heringer-costa-ufrb-sobre-o-livro-a-musica-no-candomble-etnomusicologia-no-ile-axe-opo-aganju-bahia-de-angela-luhning/>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 17, maio/jun., 2024 | ISSN 2764-2666.

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