Taxonomias na berlinda – resenha de “Negacionismo: A construção social do fascismo no tempo presente”, organizado por Karl Schurster, Michel Gherman e Óscar Ferreiro-Vázquez

Resenhado por Itamar Freitas (UFS) | ID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214.

Karl Schurster, Michel Gherman e Óscar Ferreiro-Vázquez | Imagens: Resenha Crítica/Fósforo Editora/Resenha Crítica

Negacionismo: A construção social do fascismo no tempo presente, exemplifica a mais recente posição de profissionais das humanidades sobre esse fenômeno de massas e das redes, emergente na grande imprensa nos últimos dez anos. Trata-se de uma coletânea organizada por Michel Gherman, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Karl Schurster, das Universidades de Pernambuco (UPE) e de Vigo (Espanha) e Óscar Ferreiro-Vázquez, da Universidade de Vigo (Espanha), que assume a meta de combater o negacionismo, compreendido, inicialmente, como elemento do fascismo contemporâneo. Os pesquisadores que os acompanham são, majoritariamente, docentes do nível superior com atuação nas universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ), do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Juiz de Fora (UFJF), Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na Universidade de São Paulo (USP), Universidade Católica de Petrópolis (UCP), Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) e na Escola Israelita Brasileira Salomão Guelman.

Nos dez capítulos da obra, quinze profissionais definem negacionismo e demonstram a as ações de rejeição, ocultamento ou desresponsabilização do Holocausto, do Nazismo, do escravismo brasileiro, da identidade dos judeus progressistas e do conhecimento científico em gêneros/suportes como o artigo de jornal, livro de História, o filme histórico e as letras de música. A maioria privilegia a expressão-título (negacionismo), explorando-o no tríptico: definição/causa/terapia.

No primeiro capítulo – “(Para)traduzir a negação, as teorias da conspiração e o antissemitismo” –, negacionismo é a “tentativa sistemática de falsificação do passado-recente” (p.21), mediante as habilidades de descartar provas, “regenerar e limpar o presente de um passado indesejado” (p.31). Por essa definição, o antissemitismo é “uma vertente negacionista” (p.25) e a “teoria da conspiração” é o elemento aglutinador de grupos extremistas, que estigmatiza “grupos minoritários” e incentiva a violência física. Para Karl Schurster, Michel Gherman e Óscar Ferreiro-Vázquez, o papel dos acadêmicos é explicar como a “desinformação” afeta a o modo de os indivíduos lerem o mundo (p.21).

No segundo capítulo o perfil taxonômico dos textos se mantém, associado às primeiras medidas terapêuticas. Tratando de “Esquecimento, revisionismo e negacionismo: o assassinato da História”, Francisco Carlos Teixeira da Silva e Karl Schurster definem negacionismo com ação/habilidade/prática do Fascismo. O Fascismo é um fenômeno (ideológico) e uma patologia social (neurose) caracterizada pela atitude sistemática de esquecer, recalcar ou reprimir o passado que causa “dor intensa e repetitiva” (p.34-35). Na sociedade alemã, emerge do autoritarismo, etnocentrismo, da “frieza nas relações interpessoais” e da “falha na educação.” (p.62). No brasil, a ocultação, a censura política do ensino de História e reescritura da história (revisionismo) são os seus sintomas. Para os autores, negacionismo é também é a atitude de historiadores e governos evitarem nomear a recusa sistemática do passado doloroso do Holocausto e da Ditadura Milita como fascismo. A principal terapia, para a Alemanha e para o Brasil, é fazer o caminho inverso da neurose: recordar, exibir e superar o passado que causa dor. De modo residual, os autores também apresentam uma terapia epistemológica (e ética): hierarquizar o valor dos testemunhos (o prisioneiro e o carcereiro) e considerar em conjunto o depoimento dos que sofreram a violência.

No terceiro capítulo, a tentativa de definição se especializa. Para Luís Edmundo de Souza Moraes, que escreve “A negação negacionista do Holocausto, suas metamorfoses e a ilusão de ótica”, negacionismo é categoria que dá conta de um fenômeno dos anos 1980: negar e falsear conscientemente o passado e fraudar critérios de autoridade. É uma prática institucionalizada, um movimento de direita e uma “reação” sobre o sentido atribuído a determinado objeto. Visto diacronicamente, o negacionismo emerge em “forma-testemunho” e “forma-ciência”. Ele “não é passível de refutação”, não pode ser silenciado academicamente e o seu avanço ou retrocesso independe do trabalho melhor ou pior dos historiadores (p.105). Para Moraes, o sucesso do revisionismo se deve à demanda do público leigo por história narrativa e aos vícios da obstrução epistêmica (escrita ininteligível). O melhor combate ao negacionismo histórico, inspirado no caso francês, inclui: reformas nos currículos de formação de professores e pesquisadores, reforma nos currículos da educação básica e produção de novos materiais didáticos.

O quarto capítulo – “Revisionismo, doença infantil do negacionismo?”, escrito por Marcos Napolitano, define negacionismo como a “‘mentira organizada’ voltada para o apagamento e encobrimento de responsabilidades históricas […] sobre a violência do passado que envolveram perpetradores e vítimas, bem como seus herdeiros no presente” (p.112). As razões do sucesso do “negacionismo” e do “revisionismo” são, por exemplo, a falta de eficácia na “divulgação científica” universitária e a “falta de um jornalismo científico mais afinado com a pesquisa” (p.130). Isso explicaria, por exemplo o sucesso de “revisionistas recentes” como o de Elio Gaspari, Jorge Caldeira e Leandro Narloch. A terapia, segundo o autor, é a é a “busca da verdade histórica”, entendida como “um ponto de fuga identificável nas fontes e evidências gerados pelo passado, um compromisso ético e ontológico do historiador” (p.138).

O sétimo e o décimo capítulos encerram as iniciativas dominantemente definidoras de negacionismo. No texto de Arthur Lima de Avila – “Formas/fórmulas de negação e irresponsabilidade representacional: o caso Brasil Paralelo e o Negacionismo Histórico contemporâneo”, a categoria “negacionismo histórico contemporâneo” é comparada à categoria “revisionismo clássico”. A primeira (na qual se encaixa R. Faurisson), versa sobre o holocausto e é marcada por uma afirmação contrafactual (não houve holocausto), a despeito das provas materiais e testemunhos (“negação strictu sensu”). A segunda é marcada por operações narrativas de omissão de argumentos contraditórios e suavização da violência de determinados atores, resultando em um processo de desresponsabilização (“irresponsabilidade representacional”). Os filmes da produtora Brasil Paralelo são exemplos dessa narrativa (p.188). Para Avila, a causa do negacionismo contemporâneo é estrutural: “a transformação interior à racionalidade neoliberal”, ou seja, a “passagem tormentosa de um neoliberalismo progressista a uma versão francamente autoritária dele. (p.202).

Esse não é, contudo, o diagnóstico de Natalia Pasternak, que escreve “negacionismo da ciência e do Holocausto: estratégias e consequências”. A autora define negacionismo como “uma mentira que nega a realidade para promover ideologia, política ou religião”, que “mata democracias e pessoas.” (p.275). Implicitamente, a autora sugere que identificar suas estratégias é realizar o seu combate. Assim, deve o combatente reconhecer que o negacionista: evita a negação total do fato, empregando um “mas, veja bem…” (após a negação do negacionismo); põe fatos/detalhes fora do contexto (via omissão deliberada ou ignorância supostamente ingênua) para rejeitar tese consensuada entre especialistas; muda, continuamente, o objeto da negação (recentemente refutada); desafia os especialistas para o (falso) debate em busca de legitimação; e usa o ceticismo para questionar teses, fatos e evidências exploradas a exaustão, acusando os cientistas de rejeitarem esse valor secular empregado na ciência.

O quinto, o sexto, o oitavo e o nono capítulos, dominantemente, tipificam práticas ditas negacionistas. Em “Nazismo de esquerda? Considerações sobre o revisionismo ideológico sobre o nazismo no Brasil contemporâneo” (quinto capítulo), Michel Ehrlich compreende a declaração sugerida acima como exemplo de “revisionismo ideológico”, ao contrário de “negacionismo” (negação dos “fatos, acontecimentos concretos consolidados” (p.146). Contudo, diz o autor, mais importante que tipificar a proposição é denunciar os interesses que a fundamentam: desresponsabilizar o nazismo das violações de direitos humanos e minimizá-lo como parâmetro nos julgamentos futuros de crimes semelhantes praticados por membros do governo Bolsonaro. No capítulo seguinte (o sexto) – “A dupla negação dos judeus em tempos de Bolsonaro”, Michel Gherman e Gabriel Melo Mizrahi apresentam desdobramentos do negacionismo praticado pelo então deputado Jair Bolsonaro no Clube Hebraica, em 2017, pelo presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ), pelo chargista Latuff e o jornalista Shajar Goldwaser. As referências desses sujeitos aos judeus que reprovaram a presença de Bolsonaro na Hebraica, apesar de ideologicamente antagônicas, provocaram, ao menos no plano do discurso, um duplo apagamento da sua identidade: negados como judeus (por Bolsonaro e pela FIERJ) e negados como judeus de esquerda (pela imprensa), afirma o autor.

O oitavo e nono capítulos focam na constatação e na denúncia, são: “Negamos o que nos constitui e escondemos o que não suportamos ver: negacionismo da escravidão como estratégia de naturalização da violência, da exclusão, da exploração e da desigualdade racial” e “Negacionismo, revisionismo e discursos de ódio no tempo presente: a apropriação da narrativa sobre memória do Holocausto pelo rock neofascista.” No primeiro, Janaina Chrstiam Peranyon Lopes e Antônio Carlos Jucá de Sampaio consideram “negacionista” a prática de “naturalizar” e “reiterar” mecanismos geradores de “violência, exclusão e desigualdade racial”, expressa, por exemplo, nas tentativas de suavização da lei que pune os que exploram trabalhadores em condições análogas à escravidão (p.215). De forma semelhante, para Pedro Carvalho Oliveira, “negacionista” e “revisionista” é mensagem veiculada nas letras de músicas de bandas de rock ideologicamente orientadas pelo fascismo, na Alemanha, nos EUA, no Chile, na Argentina e no Brasil. Elas reiteram a ideia de que o holocausto não existiu e que os judeus conspiram para a extinção da raça branca. A intenção das bandas é desresponsabilizar os nazistas que atuaram na Segunda Guerra Mundial e de cultivar o ódio aos judeus.

Como pudemos observar, os autores fazem o duro trabalho taxonômico de domar as palavras do senso comum e torná-las instrumento epistêmicos de qualidade superior, sob a majoritária ideia de que os discursos sobre o passado têm consequências e que, por isso, os representadores do passado devem explicitar seus compromissos éticos, principalmente, quando esses desdobramentos implicam em ameaças à convivência em uma democracia liberal. Esse investimento, evidentemente, os põe em risco de cometer diferentes tipos de imperfeições. Os ruídos não aparecem nas causas e nas terapias, pouco abordadas no conjunto da obra: mudanças estruturais de combate à neurose, mudanças na formação profissional da história e produção de material didático competente para os escolares. As terapias circulantes em outras áreas, como o cinturão sanitário, a censura e a prisão não estão neste livro. As insuficiências, por outro lado, são majoritariamente no exame da palavra (negacionismo) e na tentativa de adequar a palavra à coisa (mentira, falsidade, neurose etc.).

Esse tipo de ruído aparece no primeiro capítulo, que não deixa claro o limite entre notícia falsa, negacionismo e teoria da conspiração e entre o valor heurístico de negacionismo, negacionismo histórico e antissemitismo. Também está claro se as elites ressentidas com as políticas de justiça social e os profissionais da História que se recusam a designar a política de negação do passado doloroso da ditadura militar brasileira partilham da mesma patologia mental e, ainda, se haveria um negacionismo irracional de leigos e um negacionismo racional de experts acadêmicos.

A necessidade de precisar os termos está expressa, indiretamente, por exemplo, no último capítulo, que ensina muito pelo testemunho autobiográfico. Ali, o negacionismo é “condição humana” (eu diria uma habilidade mental neutra), uma ação epistêmica e moralmente reprovável (um desvalor). A depender da situação comunicativa, várias combinações são possíveis. No depoimento, os nazistas, o bisavô da autora e o leitor acadêmico invocado no texto negam (negaram ou negarão) a realidade de alguma forma, demonstrando, respectivamente, ódio, prudência e indiferença calculada.

A entrada para o campo de concentração de Auschwitz Birkenau | Foto: Shutterstock/WJC

Esse tipo de raciocínio não é comum na coletânea, o que explica a conurbação de negacionismos. No capítulo oitavo, os autores veem “negacionismo” em fatos qualitativamente distintos: (1) os empresários envolvidos em crime de “trabalho análogo à escravidão” rejeita, “a pecha de escravizadores” (p.213); (2) os lobistas do agronegócio se opõem à legislação antiescravista e lutam para excluir do dispositivo os conceitos de “jornada exaustiva” e de “condição degradante” (dentro das regras formais do jogo legislativo); e (3) diferentes agentes e grande parte da opinião pública aceita esse processo de “desregulamentação das relações de trabalho” (p.213, 226-228).

No capítulo quatro, que relaciona “revisionismo ideológico” e “revisão historiográfica”, adjetivação “ideológico” é inadequada porque não expressa paralelismo com a segunda categoria (que pode ser intencionalmente deflagrada por revisionismo ideológico). Consequentemente, as virtudes epistêmicas referidas (distanciamento ético, argumentação lógica e metodologia reconhecida), adiante denunciadas como descumpridas pelos revisionistas, não são vícios suficientes para separar a má pesquisa e escrita histórica de profissionais da História e a má pesquisa e escrita histórica de profissionais revisionistas, exemplificadas (estas últimas) pelos trabalhos de Hélio Gaspari, Jorge Caldeira e Leandro Narloch. Não são também suficientes para distanciar o trabalho desses revisionistas dos trabalhos “daqueles que fazem divulgação histórica” que são “autores progressistas oriundos do jornalismo”: Laurentino Gomes, Pedro Doria, Eduardo Bueno, Lira Neto, Mário Magalhães e Lucas Figueiredo. É importante registrar essa imprecisão porque o próprio autor reconhece gradações de tipo vário entre (e intra) “narrativas abertamente negacionistas” e “revisionismo ideológico” (p.118). No mesmo capítulo, a imprecisão das categorias contamina o esboço taxonômico: “Negacionismo e extrema-direita” ou “Negacionismo-raiz”, (2) “Revisionismo ultraliberal contra a ‘história politicamente correta’” e (3) “Utopia histórica regressiva/nostalgia conservadora”. Essa classificação repousa sobre assimetrias: a primeira classe é designada negacionismo e a segunda é designada revisionismo. O demarcador das duas primeiras é o referencial ideológico e o demarcador da última é a substância narrativa.

A instabilidade das definições leva também à instabilidade das teses, como ocorre no quinto capítulo. Ali, inicialmente, a declaração “o nazismo é uma ideologia de esquerda” não configura, segundo o autor, negacionismo porque não há negação de “fatos, acontecimentos concretos consolidados” (p.146). O autor, contudo, afirma adiante que a proposição “nazismo é de esquerda” é “uma das que mais distorce os acontecimentos históricos” (159), reafirmando o desvalor da quebra da correspondência entre fato e discurso sobre o fato que definiria o negacionismo. Em seguida, considerando tal proposição como um “revisionismo”, baseia-se na definição de J.-M. Gagnebin de que a “verdade do passado” é questão de metodologia e de ética. Por esta tese, o combate do negacionismo demandaria esclarecimento dos “valores” que “orientam a elaboração desse argumento” (Ehrlich, p.148). Em todo o tópico, contudo, o que o autor faz é apontar os vícios epistêmicos (omissão de informação contrária, de definições e/ou caracterizações confusas do fenômeno estudado), esquecendo o “valor” referido como objeto fundamental a ser buscado. Como não expande a definição de Gagnebin, o autor deixa implícita a ideia (do senso comum, inclusive) de que as normas de pesquisa e de argumentação (aparato epistêmico) estão na esfera do conhecimento (e distantes da dimensão ética).

No texto que denuncia duplo apagamento da identidade de judeus progressistas do Rio de Janeiro, os problemas da definição e da ausência de uma escala de progressão se mostram exemplares. É equivocado usar “negacionismo” para caracterizar a recusa de outras evidências que obriguem o articulista de esquerda a revisar a tese de que os judeus são “ricos, brancos e conservadores” (p.182). Penso ser (ou ser também) um caso de vício epistêmico cometido por um profissional do jornalismo e não de negacionismo de esquerda. O mesmo problema de aplicação da categoria aparece no julgamento do trabalho chargista Latuff sobre os judeus excluídos da reunião com Bolsonaro. O uso é indevido porque os autores tomam um gênero textual que tem fins e situação comunicativa específicos (a sátira) como elemento simétrico ao artigo de jornal (e, talvez, ao artigo acadêmico de um profissional da História). A charge não tem compromisso com a precisão dos fatos e nem é destinada a mentir ou a negar verdades factuais, característica que é compartilhada por seus consumidores. (Se se referisse aos usos descontextualizados, talvez tivesse razão).

O mesmo raciocínio pode ser aplicado à tipificação do gênero musical “rock” e de sua expressão adjetivada “rock fascista”. Se o rock é, como o autor do capítulo 12 afirma (historicamente rebelde e subversor de “valores estabelecidos”), negar é um marcador importante e epistemicamente neutro. A menção desse marcador (dispensável em sua argumentação) contamina duplamente a definição de negacionismo (negligência epistêmica das evidências e desresponsabilização dos nazistas) porque uma letra de música de uma banda de rock não é produzida com a meta de “reler o passado” segundo protocolos científicos. Além disso, a rebeldia e a contestação de valores não é prerrogativa das bandas situadas mais à esquerda do espectro ideológico.

A imprecisão da definição, por fim, gera um dúvidas pelo caráter lacunar do argumento. No quarto capítulo, o revisionismo é uma “mentira organizada” para falsear o acontecido. Mas o autor nada refere sobre a aplicação da categoria: trata-se de mentira textual/literal, mentira de interpretação ou de replicação anônima? Dizendo de outro modo, a mentira deve estar no âmbito da produção, da circulação ou do consumo? Exemplo do mesmo problema está no sétimo capítulo, que não esclarece as dimensões que as ontologias sugeridas por S. Freud e por W. Benjamin alcançam na sua definição de negacionismo: existe negacionismo “inconsciente”, como sugere o autor? (p.188). Omitidas as determinações ontológicas, a afirmação pode ser facilmente contraditada com a tese de que, nesse caso, se trata de mais um exemplo de vício epistêmico (um erro, uma negligência). A mesma indeterminação também enfraquece a caracterização (contraditável como simplista) de que uma marca da história disciplinar é o convencimento pela razão, enquanto a marca do negacionismo contemporâneo é o convencimento pelo afeto. (Ávila, p.200).

O balanço que faço da obra é, obviamente, positivo. Os objetos e objetivos dos textos estão focados, dominantemente, na expressão título (negacionismo) que é tornada categoria. Isso faz do livro obra rara: é teoria voltada para a prática e teoria aplicada ao tempo quente, no tempo quente. A desresponsabilização dos perpetradores do Holocausto, do escravismo e da ditadura militar, por exemplo, levada à cabo por diferentes profissionais e em vario gênero, a chamada à responsabilidade dos historiadores que negam a negação deliberada desses crimes, empregando eufemismos ou fugindo à discussão criteriosa sobre a categoria Fascismo e, ainda, a adoção de modelos psicanalíticos, que inverte a convencional prática de tomar a humanidade como base para a constituição do ser humano e a sugestão de que esse tipo de abordagem pode orientar escritas da história autodesignadas como “do tempo presente” demonstram o valor da empreitada e a razão de o profissional-cidadão adquirir e ler a obra.

Assim, por mais contraditório que possa aparentar, as insuficiências que apontei na obra a tornam instrumento virtuoso para a formação de profissionais da História. Lida a partir dessa perspectiva (como sempre tento fazer), as insuficiências remetem: (1) à omissão ou a imprecisão na definição das categorias tomadas por empréstimo ou criadas para construir os seus objetos; (2) às falhas de relacionamento (ou contraposições) entre essas categorias (semelhança, de causa/consequência, reciprocidade ou subsunção); (3) às ausências de parâmetros e/ou escalas para mensurar (3.1) a distância entre a obediência e desobediência de princípios e procedimentos metodológicos (entre atos diligentes e negligentes e entre falsidade consciente e inconsciente, (3.2) o efeito de uma declaração produzida/reproduzida em ambiente convencional (autoria reconhecida e facilmente auditável) e de uma declaração produzida e reproduzida em ambiente digital (autoria desconhecida, em circulação incontrolável e dificilmente auditável), (3.3) o grau de autoridade historiadora de declarar algo sobre o passado, considerando, por exemplo, o quanto o declarante deve possuir em termos de conhecimento, razão, crença ou evidências e (3.4) a instância de responsabilização da declaração historiadora (obediência a princípios ou consequências das declarações sobre o passado?).

Essas insuficiências, contudo, depõem sobre o estágio atual dos nossos cursos de Teoria da História (Metodologia, História da Historiografia, Introdução aos Estudos Históricos, entre outros). Estamos (essa é a minha hipótese) numa espécie de vazio epistemológico: de um lado, experimentamos o desprezo acrítico das normas disseminadas em manuais de Teoria e Metodologia Histórica produzidos por alemães, argentinos, belgas, brasileiros, chilenos, estadunidenses, franceses, holandeses e ingleses, entre a primeira metade do século XIX e a primeira metade do século XX (O que disse o autor? O que quis dizer o autor? Ele foi sincero? Ele era competente? Ele possuía motivos para mentir? Ele foi preciso?). Do outro, experimentamos o desinteresse pelo que se produziu analogamente, nos últimos 30 anos, em disciplinas como a Epistemologia, Epistemologia do Testemunho, Epistemologia Histórica e, ainda, a Filosofia da Linguagem, Lógica, a Axiologia e a Ontologia, no que diz respeito às ideias de declaração, evidência, prova e verdade.

Sumário de Negacionismo: a construção social do fascismo no tempo presente

  • Os autores
  • Introdução | Luís Alberto Marques Alves (CITCEM-FLUP)
  • 1. (Para)traduzir a negação, as teorias da conspiração e o antissemitismo | Karl Schurster, Michel Gherman e Óscar Ferreiro-Vázquez
  • 2. Esquecimento, revisionismo e negacionismo: o assassinato da História | Francisco Carlos Teixeira Da Silva e Karl Schurster
  • 3. A negação negacionista do Holocausto, suas metamorfoses e a ilusão de ótica | Luís Edmundo de Souza Moraes
  • 4. Revisionismo, doença infantil do negacionismo? | Marcos Napolitano
  • 5. Nazismo de esquerda? Considerações sobre o revisionismo ideológico sobre o nazismo no Brasil contemporâneo | Michel Ehrlich
  • 6. A dupla negação dos Judeus em tempos de Bolsonaro | Michel Gherman e Gabriel Melo Mizrahi
  • 7. Formas/fórmulas de negação e irresponsabilidade representacional: o caso Brasil Paralelo e o negacionismo histórico contemporâneo | Arthur Lima de Avila
  • 8. Negamos o que nos constitui e escondemos o que não suportamos ver: o negacionismo da escravidão como estratégia de naturalização da violência, da exclusão, da exploração e da desigualdade racial | Janaina Christian Perrayon Lopes e Antônio Carlos Jucá de Sampaio
  • 9. Negacionismo, revisionismo e discursos de ódio no tempo presente: a apropriação da narrativa sobre a memória do Holocausto pelo Rock neofascista | Pedro Carvalho Oliveira
  • 10 Negacionismo da Ciência e do Holocausto: estratégias e consequências | Natalia Pasternak

Resenhista

Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), Professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe, e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Pirgibe da Fonseca (1903-1986)”. ID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214; E-mail: itamarfreitasufs@gmail.com


Para citar esta resenha

SCHURSTER, Karl; GHERMAN, Michel; FERREIRO-VÁZQUEZ (Org). Negacionismo: A construção social do fascismo no tempo presente. Recife: EdUPE, 2022. 278p. Resenha de: FREITAS, Itamar. Taxonomias na berlinda. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.7, set./out., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/taxonomias-na-berlinda-resenha-de-negacionismo-a-construcao-social-do-fascismo-no-tempo-presente-organizado-por-karl-schurster-michel-gherman-e-oscar-ferreiro-vazquez/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, número especial (Novas Direitas em discussão), ago. 2022 | ISSN 2764-2666

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Taxonomias na berlinda – resenha de “Negacionismo: A construção social do fascismo no tempo presente”, organizado por Karl Schurster, Michel Gherman e Óscar Ferreiro-Vázquez

Resenhado por Itamar Freitas (UFS) | ID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214.

Karl Schurster, Michel Gherman e Óscar Ferreiro-Vázquez | Imagens: Resenha Crítica/Fósforo Editora/Resenha Crítica

Negacionismo: A construção social do fascismo no tempo presente, exemplifica a mais recente posição de profissionais das humanidades sobre esse fenômeno de massas e das redes, emergente na grande imprensa nos últimos dez anos. Trata-se de uma coletânea organizada por Michel Gherman, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Karl Schurster, das Universidades de Pernambuco (UPE) e de Vigo (Espanha) e Óscar Ferreiro-Vázquez, da Universidade de Vigo (Espanha), que assume a meta de combater o negacionismo, compreendido, inicialmente, como elemento do fascismo contemporâneo. Os pesquisadores que os acompanham são, majoritariamente, docentes do nível superior com atuação nas universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ), do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Juiz de Fora (UFJF), Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na Universidade de São Paulo (USP), Universidade Católica de Petrópolis (UCP), Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) e na Escola Israelita Brasileira Salomão Guelman.

Nos dez capítulos da obra, quinze profissionais definem negacionismo e demonstram a as ações de rejeição, ocultamento ou desresponsabilização do Holocausto, do Nazismo, do escravismo brasileiro, da identidade dos judeus progressistas e do conhecimento científico em gêneros/suportes como o artigo de jornal, livro de História, o filme histórico e as letras de música. A maioria privilegia a expressão-título (negacionismo), explorando-o no tríptico: definição/causa/terapia.

No primeiro capítulo – “(Para)traduzir a negação, as teorias da conspiração e o antissemitismo” –, negacionismo é a “tentativa sistemática de falsificação do passado-recente” (p.21), mediante as habilidades de descartar provas, “regenerar e limpar o presente de um passado indesejado” (p.31). Por essa definição, o antissemitismo é “uma vertente negacionista” (p.25) e a “teoria da conspiração” é o elemento aglutinador de grupos extremistas, que estigmatiza “grupos minoritários” e incentiva a violência física. Para Karl Schurster, Michel Gherman e Óscar Ferreiro-Vázquez, o papel dos acadêmicos é explicar como a “desinformação” afeta a o modo de os indivíduos lerem o mundo (p.21).

No segundo capítulo o perfil taxonômico dos textos se mantém, associado às primeiras medidas terapêuticas. Tratando de “Esquecimento, revisionismo e negacionismo: o assassinato da História”, Francisco Carlos Teixeira da Silva e Karl Schurster definem negacionismo com ação/habilidade/prática do Fascismo. O Fascismo é um fenômeno (ideológico) e uma patologia social (neurose) caracterizada pela atitude sistemática de esquecer, recalcar ou reprimir o passado que causa “dor intensa e repetitiva” (p.34-35). Na sociedade alemã, emerge do autoritarismo, etnocentrismo, da “frieza nas relações interpessoais” e da “falha na educação.” (p.62). No brasil, a ocultação, a censura política do ensino de História e reescritura da história (revisionismo) são os seus sintomas. Para os autores, negacionismo é também é a atitude de historiadores e governos evitarem nomear a recusa sistemática do passado doloroso do Holocausto e da Ditadura Milita como fascismo. A principal terapia, para a Alemanha e para o Brasil, é fazer o caminho inverso da neurose: recordar, exibir e superar o passado que causa dor. De modo residual, os autores também apresentam uma terapia epistemológica (e ética): hierarquizar o valor dos testemunhos (o prisioneiro e o carcereiro) e considerar em conjunto o depoimento dos que sofreram a violência.

No terceiro capítulo, a tentativa de definição se especializa. Para Luís Edmundo de Souza Moraes, que escreve “A negação negacionista do Holocausto, suas metamorfoses e a ilusão de ótica”, negacionismo é categoria que dá conta de um fenômeno dos anos 1980: negar e falsear conscientemente o passado e fraudar critérios de autoridade. É uma prática institucionalizada, um movimento de direita e uma “reação” sobre o sentido atribuído a determinado objeto. Visto diacronicamente, o negacionismo emerge em “forma-testemunho” e “forma-ciência”. Ele “não é passível de refutação”, não pode ser silenciado academicamente e o seu avanço ou retrocesso independe do trabalho melhor ou pior dos historiadores (p.105). Para Moraes, o sucesso do revisionismo se deve à demanda do público leigo por história narrativa e aos vícios da obstrução epistêmica (escrita ininteligível). O melhor combate ao negacionismo histórico, inspirado no caso francês, inclui: reformas nos currículos de formação de professores e pesquisadores, reforma nos currículos da educação básica e produção de novos materiais didáticos.

O quarto capítulo – “Revisionismo, doença infantil do negacionismo?”, escrito por Marcos Napolitano, define negacionismo como a “‘mentira organizada’ voltada para o apagamento e encobrimento de responsabilidades históricas […] sobre a violência do passado que envolveram perpetradores e vítimas, bem como seus herdeiros no presente” (p.112). As razões do sucesso do “negacionismo” e do “revisionismo” são, por exemplo, a falta de eficácia na “divulgação científica” universitária e a “falta de um jornalismo científico mais afinado com a pesquisa” (p.130). Isso explicaria, por exemplo o sucesso de “revisionistas recentes” como o de Elio Gaspari, Jorge Caldeira e Leandro Narloch. A terapia, segundo o autor, é a é a “busca da verdade histórica”, entendida como “um ponto de fuga identificável nas fontes e evidências gerados pelo passado, um compromisso ético e ontológico do historiador” (p.138).

O sétimo e o décimo capítulos encerram as iniciativas dominantemente definidoras de negacionismo. No texto de Arthur Lima de Avila – “Formas/fórmulas de negação e irresponsabilidade representacional: o caso Brasil Paralelo e o Negacionismo Histórico contemporâneo”, a categoria “negacionismo histórico contemporâneo” é comparada à categoria “revisionismo clássico”. A primeira (na qual se encaixa R. Faurisson), versa sobre o holocausto e é marcada por uma afirmação contrafactual (não houve holocausto), a despeito das provas materiais e testemunhos (“negação strictu sensu”). A segunda é marcada por operações narrativas de omissão de argumentos contraditórios e suavização da violência de determinados atores, resultando em um processo de desresponsabilização (“irresponsabilidade representacional”). Os filmes da produtora Brasil Paralelo são exemplos dessa narrativa (p.188). Para Avila, a causa do negacionismo contemporâneo é estrutural: “a transformação interior à racionalidade neoliberal”, ou seja, a “passagem tormentosa de um neoliberalismo progressista a uma versão francamente autoritária dele. (p.202).

Esse não é, contudo, o diagnóstico de Natalia Pasternak, que escreve “negacionismo da ciência e do Holocausto: estratégias e consequências”. A autora define negacionismo como “uma mentira que nega a realidade para promover ideologia, política ou religião”, que “mata democracias e pessoas.” (p.275). Implicitamente, a autora sugere que identificar suas estratégias é realizar o seu combate. Assim, deve o combatente reconhecer que o negacionista: evita a negação total do fato, empregando um “mas, veja bem…” (após a negação do negacionismo); põe fatos/detalhes fora do contexto (via omissão deliberada ou ignorância supostamente ingênua) para rejeitar tese consensuada entre especialistas; muda, continuamente, o objeto da negação (recentemente refutada); desafia os especialistas para o (falso) debate em busca de legitimação; e usa o ceticismo para questionar teses, fatos e evidências exploradas a exaustão, acusando os cientistas de rejeitarem esse valor secular empregado na ciência.

O quinto, o sexto, o oitavo e o nono capítulos, dominantemente, tipificam práticas ditas negacionistas. Em “Nazismo de esquerda? Considerações sobre o revisionismo ideológico sobre o nazismo no Brasil contemporâneo” (quinto capítulo), Michel Ehrlich compreende a declaração sugerida acima como exemplo de “revisionismo ideológico”, ao contrário de “negacionismo” (negação dos “fatos, acontecimentos concretos consolidados” (p.146). Contudo, diz o autor, mais importante que tipificar a proposição é denunciar os interesses que a fundamentam: desresponsabilizar o nazismo das violações de direitos humanos e minimizá-lo como parâmetro nos julgamentos futuros de crimes semelhantes praticados por membros do governo Bolsonaro. No capítulo seguinte (o sexto) – “A dupla negação dos judeus em tempos de Bolsonaro”, Michel Gherman e Gabriel Melo Mizrahi apresentam desdobramentos do negacionismo praticado pelo então deputado Jair Bolsonaro no Clube Hebraica, em 2017, pelo presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ), pelo chargista Latuff e o jornalista Shajar Goldwaser. As referências desses sujeitos aos judeus que reprovaram a presença de Bolsonaro na Hebraica, apesar de ideologicamente antagônicas, provocaram, ao menos no plano do discurso, um duplo apagamento da sua identidade: negados como judeus (por Bolsonaro e pela FIERJ) e negados como judeus de esquerda (pela imprensa), afirma o autor.

O oitavo e nono capítulos focam na constatação e na denúncia, são: “Negamos o que nos constitui e escondemos o que não suportamos ver: negacionismo da escravidão como estratégia de naturalização da violência, da exclusão, da exploração e da desigualdade racial” e “Negacionismo, revisionismo e discursos de ódio no tempo presente: a apropriação da narrativa sobre memória do Holocausto pelo rock neofascista.” No primeiro, Janaina Chrstiam Peranyon Lopes e Antônio Carlos Jucá de Sampaio consideram “negacionista” a prática de “naturalizar” e “reiterar” mecanismos geradores de “violência, exclusão e desigualdade racial”, expressa, por exemplo, nas tentativas de suavização da lei que pune os que exploram trabalhadores em condições análogas à escravidão (p.215). De forma semelhante, para Pedro Carvalho Oliveira, “negacionista” e “revisionista” é mensagem veiculada nas letras de músicas de bandas de rock ideologicamente orientadas pelo fascismo, na Alemanha, nos EUA, no Chile, na Argentina e no Brasil. Elas reiteram a ideia de que o holocausto não existiu e que os judeus conspiram para a extinção da raça branca. A intenção das bandas é desresponsabilizar os nazistas que atuaram na Segunda Guerra Mundial e de cultivar o ódio aos judeus.

Como pudemos observar, os autores fazem o duro trabalho taxonômico de domar as palavras do senso comum e torná-las instrumento epistêmicos de qualidade superior, sob a majoritária ideia de que os discursos sobre o passado têm consequências e que, por isso, os representadores do passado devem explicitar seus compromissos éticos, principalmente, quando esses desdobramentos implicam em ameaças à convivência em uma democracia liberal. Esse investimento, evidentemente, os põe em risco de cometer diferentes tipos de imperfeições. Os ruídos não aparecem nas causas e nas terapias, pouco abordadas no conjunto da obra: mudanças estruturais de combate à neurose, mudanças na formação profissional da história e produção de material didático competente para os escolares. As terapias circulantes em outras áreas, como o cinturão sanitário, a censura e a prisão não estão neste livro. As insuficiências, por outro lado, são majoritariamente no exame da palavra (negacionismo) e na tentativa de adequar a palavra à coisa (mentira, falsidade, neurose etc.).

Esse tipo de ruído aparece no primeiro capítulo, que não deixa claro o limite entre notícia falsa, negacionismo e teoria da conspiração e entre o valor heurístico de negacionismo, negacionismo histórico e antissemitismo. Também está claro se as elites ressentidas com as políticas de justiça social e os profissionais da História que se recusam a designar a política de negação do passado doloroso da ditadura militar brasileira partilham da mesma patologia mental e, ainda, se haveria um negacionismo irracional de leigos e um negacionismo racional de experts acadêmicos.

A necessidade de precisar os termos está expressa, indiretamente, por exemplo, no último capítulo, que ensina muito pelo testemunho autobiográfico. Ali, o negacionismo é “condição humana” (eu diria uma habilidade mental neutra), uma ação epistêmica e moralmente reprovável (um desvalor). A depender da situação comunicativa, várias combinações são possíveis. No depoimento, os nazistas, o bisavô da autora e o leitor acadêmico invocado no texto negam (negaram ou negarão) a realidade de alguma forma, demonstrando, respectivamente, ódio, prudência e indiferença calculada.

A entrada para o campo de concentração de Auschwitz Birkenau | Foto: Shutterstock/WJC

Esse tipo de raciocínio não é comum na coletânea, o que explica a conurbação de negacionismos. No capítulo oitavo, os autores veem “negacionismo” em fatos qualitativamente distintos: (1) os empresários envolvidos em crime de “trabalho análogo à escravidão” rejeita, “a pecha de escravizadores” (p.213); (2) os lobistas do agronegócio se opõem à legislação antiescravista e lutam para excluir do dispositivo os conceitos de “jornada exaustiva” e de “condição degradante” (dentro das regras formais do jogo legislativo); e (3) diferentes agentes e grande parte da opinião pública aceita esse processo de “desregulamentação das relações de trabalho” (p.213, 226-228).

No capítulo quatro, que relaciona “revisionismo ideológico” e “revisão historiográfica”, adjetivação “ideológico” é inadequada porque não expressa paralelismo com a segunda categoria (que pode ser intencionalmente deflagrada por revisionismo ideológico). Consequentemente, as virtudes epistêmicas referidas (distanciamento ético, argumentação lógica e metodologia reconhecida), adiante denunciadas como descumpridas pelos revisionistas, não são vícios suficientes para separar a má pesquisa e escrita histórica de profissionais da História e a má pesquisa e escrita histórica de profissionais revisionistas, exemplificadas (estas últimas) pelos trabalhos de Hélio Gaspari, Jorge Caldeira e Leandro Narloch. Não são também suficientes para distanciar o trabalho desses revisionistas dos trabalhos “daqueles que fazem divulgação histórica” que são “autores progressistas oriundos do jornalismo”: Laurentino Gomes, Pedro Doria, Eduardo Bueno, Lira Neto, Mário Magalhães e Lucas Figueiredo. É importante registrar essa imprecisão porque o próprio autor reconhece gradações de tipo vário entre (e intra) “narrativas abertamente negacionistas” e “revisionismo ideológico” (p.118). No mesmo capítulo, a imprecisão das categorias contamina o esboço taxonômico: “Negacionismo e extrema-direita” ou “Negacionismo-raiz”, (2) “Revisionismo ultraliberal contra a ‘história politicamente correta’” e (3) “Utopia histórica regressiva/nostalgia conservadora”. Essa classificação repousa sobre assimetrias: a primeira classe é designada negacionismo e a segunda é designada revisionismo. O demarcador das duas primeiras é o referencial ideológico e o demarcador da última é a substância narrativa.

A instabilidade das definições leva também à instabilidade das teses, como ocorre no quinto capítulo. Ali, inicialmente, a declaração “o nazismo é uma ideologia de esquerda” não configura, segundo o autor, negacionismo porque não há negação de “fatos, acontecimentos concretos consolidados” (p.146). O autor, contudo, afirma adiante que a proposição “nazismo é de esquerda” é “uma das que mais distorce os acontecimentos históricos” (159), reafirmando o desvalor da quebra da correspondência entre fato e discurso sobre o fato que definiria o negacionismo. Em seguida, considerando tal proposição como um “revisionismo”, baseia-se na definição de J.-M. Gagnebin de que a “verdade do passado” é questão de metodologia e de ética. Por esta tese, o combate do negacionismo demandaria esclarecimento dos “valores” que “orientam a elaboração desse argumento” (Ehrlich, p.148). Em todo o tópico, contudo, o que o autor faz é apontar os vícios epistêmicos (omissão de informação contrária, de definições e/ou caracterizações confusas do fenômeno estudado), esquecendo o “valor” referido como objeto fundamental a ser buscado. Como não expande a definição de Gagnebin, o autor deixa implícita a ideia (do senso comum, inclusive) de que as normas de pesquisa e de argumentação (aparato epistêmico) estão na esfera do conhecimento (e distantes da dimensão ética).

No texto que denuncia duplo apagamento da identidade de judeus progressistas do Rio de Janeiro, os problemas da definição e da ausência de uma escala de progressão se mostram exemplares. É equivocado usar “negacionismo” para caracterizar a recusa de outras evidências que obriguem o articulista de esquerda a revisar a tese de que os judeus são “ricos, brancos e conservadores” (p.182). Penso ser (ou ser também) um caso de vício epistêmico cometido por um profissional do jornalismo e não de negacionismo de esquerda. O mesmo problema de aplicação da categoria aparece no julgamento do trabalho chargista Latuff sobre os judeus excluídos da reunião com Bolsonaro. O uso é indevido porque os autores tomam um gênero textual que tem fins e situação comunicativa específicos (a sátira) como elemento simétrico ao artigo de jornal (e, talvez, ao artigo acadêmico de um profissional da História). A charge não tem compromisso com a precisão dos fatos e nem é destinada a mentir ou a negar verdades factuais, característica que é compartilhada por seus consumidores. (Se se referisse aos usos descontextualizados, talvez tivesse razão).

O mesmo raciocínio pode ser aplicado à tipificação do gênero musical “rock” e de sua expressão adjetivada “rock fascista”. Se o rock é, como o autor do capítulo 12 afirma (historicamente rebelde e subversor de “valores estabelecidos”), negar é um marcador importante e epistemicamente neutro. A menção desse marcador (dispensável em sua argumentação) contamina duplamente a definição de negacionismo (negligência epistêmica das evidências e desresponsabilização dos nazistas) porque uma letra de música de uma banda de rock não é produzida com a meta de “reler o passado” segundo protocolos científicos. Além disso, a rebeldia e a contestação de valores não é prerrogativa das bandas situadas mais à esquerda do espectro ideológico.

A imprecisão da definição, por fim, gera um dúvidas pelo caráter lacunar do argumento. No quarto capítulo, o revisionismo é uma “mentira organizada” para falsear o acontecido. Mas o autor nada refere sobre a aplicação da categoria: trata-se de mentira textual/literal, mentira de interpretação ou de replicação anônima? Dizendo de outro modo, a mentira deve estar no âmbito da produção, da circulação ou do consumo? Exemplo do mesmo problema está no sétimo capítulo, que não esclarece as dimensões que as ontologias sugeridas por S. Freud e por W. Benjamin alcançam na sua definição de negacionismo: existe negacionismo “inconsciente”, como sugere o autor? (p.188). Omitidas as determinações ontológicas, a afirmação pode ser facilmente contraditada com a tese de que, nesse caso, se trata de mais um exemplo de vício epistêmico (um erro, uma negligência). A mesma indeterminação também enfraquece a caracterização (contraditável como simplista) de que uma marca da história disciplinar é o convencimento pela razão, enquanto a marca do negacionismo contemporâneo é o convencimento pelo afeto. (Ávila, p.200).

O balanço que faço da obra é, obviamente, positivo. Os objetos e objetivos dos textos estão focados, dominantemente, na expressão título (negacionismo) que é tornada categoria. Isso faz do livro obra rara: é teoria voltada para a prática e teoria aplicada ao tempo quente, no tempo quente. A desresponsabilização dos perpetradores do Holocausto, do escravismo e da ditadura militar, por exemplo, levada à cabo por diferentes profissionais e em vario gênero, a chamada à responsabilidade dos historiadores que negam a negação deliberada desses crimes, empregando eufemismos ou fugindo à discussão criteriosa sobre a categoria Fascismo e, ainda, a adoção de modelos psicanalíticos, que inverte a convencional prática de tomar a humanidade como base para a constituição do ser humano e a sugestão de que esse tipo de abordagem pode orientar escritas da história autodesignadas como “do tempo presente” demonstram o valor da empreitada e a razão de o profissional-cidadão adquirir e ler a obra.

Assim, por mais contraditório que possa aparentar, as insuficiências que apontei na obra a tornam instrumento virtuoso para a formação de profissionais da História. Lida a partir dessa perspectiva (como sempre tento fazer), as insuficiências remetem: (1) à omissão ou a imprecisão na definição das categorias tomadas por empréstimo ou criadas para construir os seus objetos; (2) às falhas de relacionamento (ou contraposições) entre essas categorias (semelhança, de causa/consequência, reciprocidade ou subsunção); (3) às ausências de parâmetros e/ou escalas para mensurar (3.1) a distância entre a obediência e desobediência de princípios e procedimentos metodológicos (entre atos diligentes e negligentes e entre falsidade consciente e inconsciente, (3.2) o efeito de uma declaração produzida/reproduzida em ambiente convencional (autoria reconhecida e facilmente auditável) e de uma declaração produzida e reproduzida em ambiente digital (autoria desconhecida, em circulação incontrolável e dificilmente auditável), (3.3) o grau de autoridade historiadora de declarar algo sobre o passado, considerando, por exemplo, o quanto o declarante deve possuir em termos de conhecimento, razão, crença ou evidências e (3.4) a instância de responsabilização da declaração historiadora (obediência a princípios ou consequências das declarações sobre o passado?).

Essas insuficiências, contudo, depõem sobre o estágio atual dos nossos cursos de Teoria da História (Metodologia, História da Historiografia, Introdução aos Estudos Históricos, entre outros). Estamos (essa é a minha hipótese) numa espécie de vazio epistemológico: de um lado, experimentamos o desprezo acrítico das normas disseminadas em manuais de Teoria e Metodologia Histórica produzidos por alemães, argentinos, belgas, brasileiros, chilenos, estadunidenses, franceses, holandeses e ingleses, entre a primeira metade do século XIX e a primeira metade do século XX (O que disse o autor? O que quis dizer o autor? Ele foi sincero? Ele era competente? Ele possuía motivos para mentir? Ele foi preciso?). Do outro, experimentamos o desinteresse pelo que se produziu analogamente, nos últimos 30 anos, em disciplinas como a Epistemologia, Epistemologia do Testemunho, Epistemologia Histórica e, ainda, a Filosofia da Linguagem, Lógica, a Axiologia e a Ontologia, no que diz respeito às ideias de declaração, evidência, prova e verdade.

Sumário de Negacionismo: a construção social do fascismo no tempo presente

  • Os autores
  • Introdução | Luís Alberto Marques Alves (CITCEM-FLUP)
  • 1. (Para)traduzir a negação, as teorias da conspiração e o antissemitismo | Karl Schurster, Michel Gherman e Óscar Ferreiro-Vázquez
  • 2. Esquecimento, revisionismo e negacionismo: o assassinato da História | Francisco Carlos Teixeira Da Silva e Karl Schurster
  • 3. A negação negacionista do Holocausto, suas metamorfoses e a ilusão de ótica | Luís Edmundo de Souza Moraes
  • 4. Revisionismo, doença infantil do negacionismo? | Marcos Napolitano
  • 5. Nazismo de esquerda? Considerações sobre o revisionismo ideológico sobre o nazismo no Brasil contemporâneo | Michel Ehrlich
  • 6. A dupla negação dos Judeus em tempos de Bolsonaro | Michel Gherman e Gabriel Melo Mizrahi
  • 7. Formas/fórmulas de negação e irresponsabilidade representacional: o caso Brasil Paralelo e o negacionismo histórico contemporâneo | Arthur Lima de Avila
  • 8. Negamos o que nos constitui e escondemos o que não suportamos ver: o negacionismo da escravidão como estratégia de naturalização da violência, da exclusão, da exploração e da desigualdade racial | Janaina Christian Perrayon Lopes e Antônio Carlos Jucá de Sampaio
  • 9. Negacionismo, revisionismo e discursos de ódio no tempo presente: a apropriação da narrativa sobre a memória do Holocausto pelo Rock neofascista | Pedro Carvalho Oliveira
  • 10 Negacionismo da Ciência e do Holocausto: estratégias e consequências | Natalia Pasternak

Resenhista

Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), Professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe, e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Pirgibe da Fonseca (1903-1986)”. ID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214; E-mail: itamarfreitasufs@gmail.com


Para citar esta resenha

SCHURSTER, Karl; GHERMAN, Michel; FERREIRO-VÁZQUEZ (Org). Negacionismo: A construção social do fascismo no tempo presente. Recife: EdUPE, 2022. 278p. Resenha de: FREITAS, Itamar. Taxonomias na berlinda. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.7, set./out., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/taxonomias-na-berlinda-resenha-de-negacionismo-a-construcao-social-do-fascismo-no-tempo-presente-organizado-por-karl-schurster-michel-gherman-e-oscar-ferreiro-vazquez/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, número especial (Novas Direitas em discussão), ago. 2022 | ISSN 2764-2666

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