Uma interpretação sobre fim escravidão no Brasil – Resenha de “A Campanha abolicionista (1879-1888)”, de Antônio Evaristo de Moraes

Resenhado por Aline Evelyn Pereira Leite e Silva (SEMED/Barbalha – CE/URCA) | ID: https://orcid.org/0000-0002-5828-4195.


Antônio Evaristo de Moraes | Imagem: Blog do Pedro Eloi

A abolição da escravidão, no Brasil, é uma questão de extrema relevância não só para os estudantes da História, mas para a sociedade como um todo. Este, foi o maior movimento negro e popular da história do país. Por isso, “A Campanha abolicionista (1879-1888), escrito há quase cem anos, por Antônio Evaristo de Moraes é leitura obrigatória porque o seu objetivo principal é apresentar, aos seus leitores contemporâneos e aos futuros leitores, os vários aspectos da campanha abolicionista, de maneira técnica, ou seja, como Moraes mesmo mencionou, não é um livro apenas para os “campeões da abolição”, “nem aos sustentadores da necessidade temporária da Escravidão” (p. 22).  Assim, olhar do historiador Evaristo de Moraes é técnico e busca interpretar a história da abolição da escravidão no Brasil de tal forma.

À época da escrita desse livro, Evaristo de Morais era um jovem abolicionista, jornalista, advogado e professor que, aos dezesseis anos de idade, esteve presente nas comemorações alusivas à assinatura da Lei Aurea, pela princesa regente, Isabel de Bragança. Nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 26 de outubro de 1871, o mulato era (para os padrões da época) pertencente a uma família de classe média. Nos primeiros anos da vida escolar, Moraes estudou no Colégio de São Bento e foi aluno dos notáveis Clóvis Bevilaqua, Tobias Barreto, Sílvio Romero, Artur Orlando da Silva, dentre outros. Em 1888, já era professor de português, jornalista e abolicionista.

Ainda muito cedo, seu pai abandonou a família, deixando-os em situação financeira difícil. Ironicamente, anos depois, defendeu seu pai em julgamento. Moraes sempre foi autodidata e antes de conquistar seu diploma de advogado, era rábula, e muito prestigiado.

Politicamente, era republicano de linha moderada, atuando, em 1894, com relevância no âmbito político. Foi fundador do Partido Socialista Brasileiro e contava com o apoio político de Ruy Barbosa. Nesta senda, foi preso durante o governo do presidente Arthur Bernardes por duas vezes. Trata-se então de uma biografia interessante e intimamente ligada aos fatos históricos contemporâneos ao escritor.

A Campanha abolicionista é um livro que dá espaço para todos os grandes homens e mulheres partícipes deste movimento, sem cair em um maniqueísmo. Republicano que era, Evaristo de Moraes tece elogios ao Imperador Dom Pedro II a respeito de seu posicionamento perante a questão da abolição. Mesmo divergindo ideologicamente em relação ao regime Monarquista, Morais demonstra capacidade de reconhecer o valor daqueles que, de alguma forma, fizeram parte dessa história. Em defesa do Imperador, ressalva que o monarca estava em um regime parlamentar, não tendo forças de acabar com o sistema escravista de forma autoritária, uma vez que não se tratava de um regime absolutista. Para o escritor, Dom Pedro II era um dos principais abolicionistas do Brasil.

A primeira parte do livro trata da Campanha Parlamentar, mencionando os efeitos “apoucados” da Lei do Ventre Livre e o fim do tráfico de escravos como a primeira medida tomada para o fim do cativeiro. Morais também discute o lobby de um dos maiores abolicionistas que, embora não fosse político, estava intensamente engajado e em contato com os parlamentares. Tratava-se de André Rebouças, negro, engenheiro e intelectual, profissional engajado na inserção do negro na sociedade de forma digna, com escritos, como “Agricultura Nacional – Estudos Econômicos, Propaganda Abolicionista e Democrática”, do ano de 1883. Ademais, Evaristo de Moraes abordou as diferenças entre as atuações dos ministros Dantas, Saraiva e Cotegipe.

A segunda parte do livro trata das questões sociais peculiares às províncias brasileiras, onde o movimento abolicionista impactou as relações sociais de formas singulares. Morais aborda também a escravidão perante os diferentes credos religiosos e a maçonaria, como elucida no capítulo 10. Ademais, esclarece as causas sociais próximas à extinção virtual do cativeiro: (a) “a intransigência escravista do Barão de Cotegipe”, que reagiu à (b) “revogação do artigo 60 do Código Criminal e da lei n. 4, de 10/06/1831, no que dizia respeito (c) à “pena de açoites”, às manifestações antiescravistas do Imperador”, a (d) simpatia das “autoridades e policiais” à “causa dos cativos”, a (h) a mudança de sensibilidades e os “interesses dinásticos da Princesa Regente” que não se curvou à “pressão reacionária do Barão de Cotegipe” (p.367-368).

Na terceira e última parte do livro, Moraes mostra como se deu a extinção  formal da escravidão (o advento da Lei de 13 de maio, a Lei Aurea) bem como a atuação da princesa Isabel e de Joaquim Nabuco, dentre outros. O autor dedicou ainda um capítulo a José do Patrocínio e à sua intensa liderança no movimento em prol da abolição. Finalmente, no capítulo 14, Moraes tece suas deduções sociológicas a respeito do pensamento social perante a escravidão.

Para ele, o fato de a escravidão ter estado presente durante três séculos na história brasileira, desde o núcleo familiar, na vida econômica, na organização política, enfim, em todos os âmbitos da sociedade, interferiu muito na visão que a maioria dos brasileiros tem sobre a relação com o trabalho, visão transmitida às gerações seguintes.

Moraes afirma que escravistas e abolicionistas sempre concordaram com o fato de a escravidão ser o fundamento das relações de trabalho, tendo sustentado todo o organismo social brasileiro. Ela produziu, “de fato, em certa época, riqueza material” e, “à sua custa, muito progrediu o Brasil”. O fato é que este progresso não atingiu toda a população brasileira, tampouco aqueles que mais colaboraram para ela. Nesta senda, o autor traz em suas deduções, um legado da escravidão vigente até os dias de hoje: “o ódio ao trabalho, principalmente agrícola e o servilismo”. (p.475).

Esse desprezo pela ocupação rural, e de outros trabalhos feitos pelos escravos, interfere na sociedade e na economia brasileira, como menciona no livro. Para o sociólogo Gilberto Amado, era difícil encontrar quem se ocupasse do trabalho com a terra. O homem livre, negro ou mestiço, por vezes, concebia tal tarefa com como trabalho de escravo, sendo portanto, desonrosa ocupação.

Morais, mais uma vez, faz menção ao abolicionista André Rebouças,  já que a sociedade fora duramente impactada ao não seguir o plano dele de inserção do negro na sociedade de forma digna, a partir dos escritos em “Agricultura Nacional”. A demora na abolição frustrou os planos do engenheiro, motivando países de  menor potencial para a agricultura, a ultrapassarem o Brasil.

Ao final de suas deduções neste capítulo, Moraes já propunha, quase um século atrás, meios de sanar os malefícios da escravidão, a começar por a extinção do analfabetismo no país, a preservação da infância, medidas protetoras do operário, o saneamento básico do meio rural e, por fim, o combate ao alcoolismo.

Analfabetismo Imagem : FECOMERCIO/SP

A Campanha abolicionista foi pioneira ao tratar do movimento, trazendo uma gama de especificidades, inclusive religiosas, abordando o catolicismo e a maçonaria como principais agentes religiosos neste contexto. Ela enfatiza a as causas, os agentes e intérpretes deste movimento abolicionista. A obra traz a discussão parlamentar sobre a abolição, a partir dos gabinetes Dantas, Saraiva e Cotegipe e João Alfredo e estabelece um diálogo com os leitores futuros, deixando claro que não busca exaltar os grandes feitos dos “campeões da abolição”, mas sim, fazer um trabalho historiográfico. O autor bem ressalta que louvou Patrocínio e Nabuco mas não menosprezou Cotegipe.

O posicionamento do escritor é de extrema cautela uma vez que recorda a singularidade e a complexidade da escravidão no Brasil. Ela estava inserida nos diversos meios, em todas as classes sociais. Havia, pois, uma transformação dos agentes sociais, tanto na evolução, quanto na regressão quanto a aderência ao movimento abolicionista.

No início dos anos novecentos, Moraes já se refere à abolição nas diferentes províncias do Brasil, principalmente a do Ceará e aos seus agentes como o Dragão do Mar, João Cordeiro, José Cordeiro do Amaral, as famílias Jaguaribe e Araripe, além de Antônio Pinto de Mendonça, no âmbito parlamentar (p.278). Como conta a historiografia tradicional, não mais havia cativeiro na província do Ceará, no ano de 1884. Moraes narra a recepção do célebre jangadeiro Francisco José Nascimento na corte. Durante a véspera dos festejos em comemoração à recepção, foi “saudado em prosa e verso, havendo passeata abolicionista. No dia 25, a Gazeta de Notícias deu edição especial comemorativa, brilhantemente colaborada… Teve a libertação do Ceará repercussão memorável em Paris. Patrocínio estava lá” (p.280).

Como afirmado por um historiador que vivenciou esse tempo, Antônio Evaristo de Moraes traz uma série de fontes primárias acerca do tema e convida o leitor a um trabalho posterior de pesquisa de nomes e fatos importantes a serem estudados. Ainda sobre a libertação no Ceará, o autor traz uma carta do escritor Victor Hugo ao Imperador, saudando o Brasil pelo 25 de março, na província cearense. O historiador traz fontes primárias ao leitor, como o escrito Agricultura Nacional, de André Rebouças, sobre a atuação de José do Patrocínio e O Estadista do Império, de Joaquim Nabuco. Assim sendo, é válida a ressalva de que poucos escritores conseguem compilar em sua biografia vivências tão singulares da História quanto Evaristo de Moraes.

A obra, está muito distante de ser um mero relato jornalístico. Mesmo que pertencesse ao gênero, o autor (um agente político) não levou dominantemente suas paixões para sua obra, não limitando a um relato de ações ou reprodução de efeitos. Apresentou a abolição a partir das fragilidades humanas de todos aqueles que que compartilharam aquele momento histórico.

Moraes buscou abstrair das considerações pessoais de amizades ou inimizades e, ciente do que escreveu, afirma que talvez não agradasse os que chamou de “campeões da abolição” nem os defensores do regime. O fato é que agradar não era seu objetivo. Sua meta era “fornecer ideia mais ou menos precisa aos não contemporâneos do que foi esse movimento, sem dar maior ou menor espaço aos agentes desse contexto: “Apresentei-as tais como as encontrei delineadas pelos seus atos, dentro dos acontecimentos”. O autor buscou, com sua obra, agregar conhecimento a respeito da campanha abolicionista que, “durante nove anos, se debateram todas as forças vivas da Nação, a bem da liberdade de milhares de criaturas, cuja miséria moral não impediu que fossem fatores do nosso progresso material”. (p. 24).

O cronista, como lembra Lemos de Brito, não faz romance ou poesia acerca do tema, ele recolhe os fatos e os expôs. E foi o que realizou Morais ao escrever este livro. Classificou os depoimentos dos participantes do processo abolicionista e se ateve as atitudes dos homens de modo a alcançar os efeitos individuais e coletivos no êxito do movimento. Ele cumpre os objetivos anunciados na medida em que não foi partidário. Não imprimiu na obra um deslocamento de agentes da abolição, apresentando os participantes deste processo abolicionista a partir dos atos de cada um. Sua intenção foi descrever o acontecimento para a sua geração e as vindouras. É importante ressalvar que Moraes era um abolicionista, que vivenciou aquele momento, mas ainda assim não menosprezou a figura de Cotegipe. Ele descreveu suas ações, assim como o fizera com as ações do imperador, mesmo tendo opinião política divergente.

O livro A Campanha abolicionista, de Evaristo de Moraes, tem valor importante uma vez que foi pioneiro na historiografia brasileira neste seguimento, cumprindo assim o seu objetivo. Por essa razão, principalmente, a obra é leitura primordial aos estudantes de História e aqueles que querem conhecer de forma profunda a história do maior movimento negro e popular do país.


Sumário A Campanha Abolicionista (1879-1888)

  • Ensaio: As várias vidas de Antônio Evaristo de Moraes
  • Prefácio
  • 1. Efeitos demorados e apoucados da “Lei do Ventre Livre”
  • 2. Início da Campanha Parlamentar pela Abolição
  • 3. Movimento Popular Abolicionista
  • 4. Ministério Dantas (1845-1885)
  • 5. Ministério Saraiva
  • 6. Ministério Cotegipe
  • 7. Ministério Cotegipe (1866-1888)
  • 8. A Escravidão em juízo
  • 9. O Abolicionismo em algumas províncias
  • 10. A Escravidão perante vários credos religiosos e a Marçonaria
  • 11. Causas próximas da extinção virtual da Escravidão
  • 12. Ministério João Alfredo. Extinção “formal” da Escravidão. Lei 113 de maio
  • 13. José do Patrocínio
  • 14. Deduções Sociológicas
  • Notas
  • Apêndice documental
  • Manifesto da Sociedade Brasileira contra a Escravidão

Resenhista

Aline Evelyn Pereira Leite e Silva é graduada em História, com pesquisa sobre “A representação dos nordestinos nas redes sociais”. É professora de História na Escola Municipal Sebastião Santiago da Paz (SEMED/Barbalha – CE) e aluna de Direito na Universidade Regional do Cariri (URCA). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3430129931239452; ID: https://orcid.org/0000-0002-5828-4195; E-mail: aline.evelyn@urca.br.

 


Para citar esta resenha

MORAES, Evaristo de. A Campanha Abolicionista (1879-1888). 3ed. Garibalde: Clube Rebouças, 2021. 593p. Resenha de: LEITE E SILVA, Aline Evelyn Pereira. Uma interpretação sobre o fim da Escravidão no Brasil. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.6, 02 jul./ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/uma-interpretacao-sobre-fim-escravidao-no-brasil-resenha-de-a-campanha-abolicionista-1879-1888-de-antonio-evaristo-de-moraes/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2,n6, jul./ago. 2022 | ISSN 2764-2666

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Uma interpretação sobre fim escravidão no Brasil – Resenha de “A Campanha abolicionista (1879-1888)”, de Antônio Evaristo de Moraes

Resenhado por Aline Evelyn Pereira Leite e Silva (SEMED/Barbalha – CE/URCA) | ID: https://orcid.org/0000-0002-5828-4195.


Antônio Evaristo de Moraes | Imagem: Blog do Pedro Eloi

A abolição da escravidão, no Brasil, é uma questão de extrema relevância não só para os estudantes da História, mas para a sociedade como um todo. Este, foi o maior movimento negro e popular da história do país. Por isso, “A Campanha abolicionista (1879-1888), escrito há quase cem anos, por Antônio Evaristo de Moraes é leitura obrigatória porque o seu objetivo principal é apresentar, aos seus leitores contemporâneos e aos futuros leitores, os vários aspectos da campanha abolicionista, de maneira técnica, ou seja, como Moraes mesmo mencionou, não é um livro apenas para os “campeões da abolição”, “nem aos sustentadores da necessidade temporária da Escravidão” (p. 22).  Assim, olhar do historiador Evaristo de Moraes é técnico e busca interpretar a história da abolição da escravidão no Brasil de tal forma.

À época da escrita desse livro, Evaristo de Morais era um jovem abolicionista, jornalista, advogado e professor que, aos dezesseis anos de idade, esteve presente nas comemorações alusivas à assinatura da Lei Aurea, pela princesa regente, Isabel de Bragança. Nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 26 de outubro de 1871, o mulato era (para os padrões da época) pertencente a uma família de classe média. Nos primeiros anos da vida escolar, Moraes estudou no Colégio de São Bento e foi aluno dos notáveis Clóvis Bevilaqua, Tobias Barreto, Sílvio Romero, Artur Orlando da Silva, dentre outros. Em 1888, já era professor de português, jornalista e abolicionista.

Ainda muito cedo, seu pai abandonou a família, deixando-os em situação financeira difícil. Ironicamente, anos depois, defendeu seu pai em julgamento. Moraes sempre foi autodidata e antes de conquistar seu diploma de advogado, era rábula, e muito prestigiado.

Politicamente, era republicano de linha moderada, atuando, em 1894, com relevância no âmbito político. Foi fundador do Partido Socialista Brasileiro e contava com o apoio político de Ruy Barbosa. Nesta senda, foi preso durante o governo do presidente Arthur Bernardes por duas vezes. Trata-se então de uma biografia interessante e intimamente ligada aos fatos históricos contemporâneos ao escritor.

A Campanha abolicionista é um livro que dá espaço para todos os grandes homens e mulheres partícipes deste movimento, sem cair em um maniqueísmo. Republicano que era, Evaristo de Moraes tece elogios ao Imperador Dom Pedro II a respeito de seu posicionamento perante a questão da abolição. Mesmo divergindo ideologicamente em relação ao regime Monarquista, Morais demonstra capacidade de reconhecer o valor daqueles que, de alguma forma, fizeram parte dessa história. Em defesa do Imperador, ressalva que o monarca estava em um regime parlamentar, não tendo forças de acabar com o sistema escravista de forma autoritária, uma vez que não se tratava de um regime absolutista. Para o escritor, Dom Pedro II era um dos principais abolicionistas do Brasil.

A primeira parte do livro trata da Campanha Parlamentar, mencionando os efeitos “apoucados” da Lei do Ventre Livre e o fim do tráfico de escravos como a primeira medida tomada para o fim do cativeiro. Morais também discute o lobby de um dos maiores abolicionistas que, embora não fosse político, estava intensamente engajado e em contato com os parlamentares. Tratava-se de André Rebouças, negro, engenheiro e intelectual, profissional engajado na inserção do negro na sociedade de forma digna, com escritos, como “Agricultura Nacional – Estudos Econômicos, Propaganda Abolicionista e Democrática”, do ano de 1883. Ademais, Evaristo de Moraes abordou as diferenças entre as atuações dos ministros Dantas, Saraiva e Cotegipe.

A segunda parte do livro trata das questões sociais peculiares às províncias brasileiras, onde o movimento abolicionista impactou as relações sociais de formas singulares. Morais aborda também a escravidão perante os diferentes credos religiosos e a maçonaria, como elucida no capítulo 10. Ademais, esclarece as causas sociais próximas à extinção virtual do cativeiro: (a) “a intransigência escravista do Barão de Cotegipe”, que reagiu à (b) “revogação do artigo 60 do Código Criminal e da lei n. 4, de 10/06/1831, no que dizia respeito (c) à “pena de açoites”, às manifestações antiescravistas do Imperador”, a (d) simpatia das “autoridades e policiais” à “causa dos cativos”, a (h) a mudança de sensibilidades e os “interesses dinásticos da Princesa Regente” que não se curvou à “pressão reacionária do Barão de Cotegipe” (p.367-368).

Na terceira e última parte do livro, Moraes mostra como se deu a extinção  formal da escravidão (o advento da Lei de 13 de maio, a Lei Aurea) bem como a atuação da princesa Isabel e de Joaquim Nabuco, dentre outros. O autor dedicou ainda um capítulo a José do Patrocínio e à sua intensa liderança no movimento em prol da abolição. Finalmente, no capítulo 14, Moraes tece suas deduções sociológicas a respeito do pensamento social perante a escravidão.

Para ele, o fato de a escravidão ter estado presente durante três séculos na história brasileira, desde o núcleo familiar, na vida econômica, na organização política, enfim, em todos os âmbitos da sociedade, interferiu muito na visão que a maioria dos brasileiros tem sobre a relação com o trabalho, visão transmitida às gerações seguintes.

Moraes afirma que escravistas e abolicionistas sempre concordaram com o fato de a escravidão ser o fundamento das relações de trabalho, tendo sustentado todo o organismo social brasileiro. Ela produziu, “de fato, em certa época, riqueza material” e, “à sua custa, muito progrediu o Brasil”. O fato é que este progresso não atingiu toda a população brasileira, tampouco aqueles que mais colaboraram para ela. Nesta senda, o autor traz em suas deduções, um legado da escravidão vigente até os dias de hoje: “o ódio ao trabalho, principalmente agrícola e o servilismo”. (p.475).

Esse desprezo pela ocupação rural, e de outros trabalhos feitos pelos escravos, interfere na sociedade e na economia brasileira, como menciona no livro. Para o sociólogo Gilberto Amado, era difícil encontrar quem se ocupasse do trabalho com a terra. O homem livre, negro ou mestiço, por vezes, concebia tal tarefa com como trabalho de escravo, sendo portanto, desonrosa ocupação.

Morais, mais uma vez, faz menção ao abolicionista André Rebouças,  já que a sociedade fora duramente impactada ao não seguir o plano dele de inserção do negro na sociedade de forma digna, a partir dos escritos em “Agricultura Nacional”. A demora na abolição frustrou os planos do engenheiro, motivando países de  menor potencial para a agricultura, a ultrapassarem o Brasil.

Ao final de suas deduções neste capítulo, Moraes já propunha, quase um século atrás, meios de sanar os malefícios da escravidão, a começar por a extinção do analfabetismo no país, a preservação da infância, medidas protetoras do operário, o saneamento básico do meio rural e, por fim, o combate ao alcoolismo.

Analfabetismo Imagem : FECOMERCIO/SP

A Campanha abolicionista foi pioneira ao tratar do movimento, trazendo uma gama de especificidades, inclusive religiosas, abordando o catolicismo e a maçonaria como principais agentes religiosos neste contexto. Ela enfatiza a as causas, os agentes e intérpretes deste movimento abolicionista. A obra traz a discussão parlamentar sobre a abolição, a partir dos gabinetes Dantas, Saraiva e Cotegipe e João Alfredo e estabelece um diálogo com os leitores futuros, deixando claro que não busca exaltar os grandes feitos dos “campeões da abolição”, mas sim, fazer um trabalho historiográfico. O autor bem ressalta que louvou Patrocínio e Nabuco mas não menosprezou Cotegipe.

O posicionamento do escritor é de extrema cautela uma vez que recorda a singularidade e a complexidade da escravidão no Brasil. Ela estava inserida nos diversos meios, em todas as classes sociais. Havia, pois, uma transformação dos agentes sociais, tanto na evolução, quanto na regressão quanto a aderência ao movimento abolicionista.

No início dos anos novecentos, Moraes já se refere à abolição nas diferentes províncias do Brasil, principalmente a do Ceará e aos seus agentes como o Dragão do Mar, João Cordeiro, José Cordeiro do Amaral, as famílias Jaguaribe e Araripe, além de Antônio Pinto de Mendonça, no âmbito parlamentar (p.278). Como conta a historiografia tradicional, não mais havia cativeiro na província do Ceará, no ano de 1884. Moraes narra a recepção do célebre jangadeiro Francisco José Nascimento na corte. Durante a véspera dos festejos em comemoração à recepção, foi “saudado em prosa e verso, havendo passeata abolicionista. No dia 25, a Gazeta de Notícias deu edição especial comemorativa, brilhantemente colaborada… Teve a libertação do Ceará repercussão memorável em Paris. Patrocínio estava lá” (p.280).

Como afirmado por um historiador que vivenciou esse tempo, Antônio Evaristo de Moraes traz uma série de fontes primárias acerca do tema e convida o leitor a um trabalho posterior de pesquisa de nomes e fatos importantes a serem estudados. Ainda sobre a libertação no Ceará, o autor traz uma carta do escritor Victor Hugo ao Imperador, saudando o Brasil pelo 25 de março, na província cearense. O historiador traz fontes primárias ao leitor, como o escrito Agricultura Nacional, de André Rebouças, sobre a atuação de José do Patrocínio e O Estadista do Império, de Joaquim Nabuco. Assim sendo, é válida a ressalva de que poucos escritores conseguem compilar em sua biografia vivências tão singulares da História quanto Evaristo de Moraes.

A obra, está muito distante de ser um mero relato jornalístico. Mesmo que pertencesse ao gênero, o autor (um agente político) não levou dominantemente suas paixões para sua obra, não limitando a um relato de ações ou reprodução de efeitos. Apresentou a abolição a partir das fragilidades humanas de todos aqueles que que compartilharam aquele momento histórico.

Moraes buscou abstrair das considerações pessoais de amizades ou inimizades e, ciente do que escreveu, afirma que talvez não agradasse os que chamou de “campeões da abolição” nem os defensores do regime. O fato é que agradar não era seu objetivo. Sua meta era “fornecer ideia mais ou menos precisa aos não contemporâneos do que foi esse movimento, sem dar maior ou menor espaço aos agentes desse contexto: “Apresentei-as tais como as encontrei delineadas pelos seus atos, dentro dos acontecimentos”. O autor buscou, com sua obra, agregar conhecimento a respeito da campanha abolicionista que, “durante nove anos, se debateram todas as forças vivas da Nação, a bem da liberdade de milhares de criaturas, cuja miséria moral não impediu que fossem fatores do nosso progresso material”. (p. 24).

O cronista, como lembra Lemos de Brito, não faz romance ou poesia acerca do tema, ele recolhe os fatos e os expôs. E foi o que realizou Morais ao escrever este livro. Classificou os depoimentos dos participantes do processo abolicionista e se ateve as atitudes dos homens de modo a alcançar os efeitos individuais e coletivos no êxito do movimento. Ele cumpre os objetivos anunciados na medida em que não foi partidário. Não imprimiu na obra um deslocamento de agentes da abolição, apresentando os participantes deste processo abolicionista a partir dos atos de cada um. Sua intenção foi descrever o acontecimento para a sua geração e as vindouras. É importante ressalvar que Moraes era um abolicionista, que vivenciou aquele momento, mas ainda assim não menosprezou a figura de Cotegipe. Ele descreveu suas ações, assim como o fizera com as ações do imperador, mesmo tendo opinião política divergente.

O livro A Campanha abolicionista, de Evaristo de Moraes, tem valor importante uma vez que foi pioneiro na historiografia brasileira neste seguimento, cumprindo assim o seu objetivo. Por essa razão, principalmente, a obra é leitura primordial aos estudantes de História e aqueles que querem conhecer de forma profunda a história do maior movimento negro e popular do país.


Sumário A Campanha Abolicionista (1879-1888)

  • Ensaio: As várias vidas de Antônio Evaristo de Moraes
  • Prefácio
  • 1. Efeitos demorados e apoucados da “Lei do Ventre Livre”
  • 2. Início da Campanha Parlamentar pela Abolição
  • 3. Movimento Popular Abolicionista
  • 4. Ministério Dantas (1845-1885)
  • 5. Ministério Saraiva
  • 6. Ministério Cotegipe
  • 7. Ministério Cotegipe (1866-1888)
  • 8. A Escravidão em juízo
  • 9. O Abolicionismo em algumas províncias
  • 10. A Escravidão perante vários credos religiosos e a Marçonaria
  • 11. Causas próximas da extinção virtual da Escravidão
  • 12. Ministério João Alfredo. Extinção “formal” da Escravidão. Lei 113 de maio
  • 13. José do Patrocínio
  • 14. Deduções Sociológicas
  • Notas
  • Apêndice documental
  • Manifesto da Sociedade Brasileira contra a Escravidão

Resenhista

Aline Evelyn Pereira Leite e Silva é graduada em História, com pesquisa sobre “A representação dos nordestinos nas redes sociais”. É professora de História na Escola Municipal Sebastião Santiago da Paz (SEMED/Barbalha – CE) e aluna de Direito na Universidade Regional do Cariri (URCA). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3430129931239452; ID: https://orcid.org/0000-0002-5828-4195; E-mail: aline.evelyn@urca.br.

 


Para citar esta resenha

MORAES, Evaristo de. A Campanha Abolicionista (1879-1888). 3ed. Garibalde: Clube Rebouças, 2021. 593p. Resenha de: LEITE E SILVA, Aline Evelyn Pereira. Uma interpretação sobre o fim da Escravidão no Brasil. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.6, 02 jul./ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/uma-interpretacao-sobre-fim-escravidao-no-brasil-resenha-de-a-campanha-abolicionista-1879-1888-de-antonio-evaristo-de-moraes/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2,n6, jul./ago. 2022 | ISSN 2764-2666

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