Visão contraditória – Resenha de Rômulo Gois de Aragão (UFS) sobre o livro “2041 – Como a inteligência artificial vai mudar sua vida nas próximas décadas”, de Kai-Fu Lee e Chen Qiufan
Resumo: “Como a Inteligência Artificial vai Mudar sua Vida nas Próximas Décadas”, de Kai-Fu Lee e Chen Qiufan, discute otimisticamente o impacto das IAs na sociedade. A obra, dividida em contos futuristas, explora avanços como aprendizado profundo, visão computacional e redes neurais. Apesar de prometer avanços humanitários, o livro não apresenta modelos claros para esses objetivos, levantando questões sobre desemprego estrutural e privacidade digital.
Palavras-chave: Inteligência Artificial, Aprendizagem de Máquina, Redes Neurais.
No livro Como a Inteligência Artificial vai Mudar sua Vida nas Próximas Décadas, escrito por Kai-Fu Lee e Chen Qiufan, tem como objetivo a defesa otimista do avanço das IA’s (inteligências artificiais) na sociedade global. O livro foi publicado em 2022, pela editora Globo Livros.
Kai-Fu Lee é CEO da Sinovation Ventures, uma das líderes globais do mercado de investimentos na área de tecnologia e está engajado no desenvolvimento da próxima geração de empresas chinesas no campo da inovação. Além da Google China, ele foi executivo da Microsoft e da Apple. Dele, a Globo Livros publicou Inteligência artificial. Chen Qiufan é autor premiado, tradutor, produtor de projetos artísticos e curador. É fundador do Thema Mundi, um estúdio de produção de conteúdo. O livro é estruturado em duas introduções, mais dez capítulos em forma de contos futuristas, agradecimentos, índices e notas, distribuídos em 460 páginas.
No primeiro capítulo, os autores apresentam o conceito básico da IA (inteligência artificial): aprendizado profundo. Esse conceito é permeado por ambiguidades, pois tanto pode ser utilizado para soluções individuais personalizadas que geram bem-estar socioeconômico, como também pode gerar e perpetuar preconceitos sociais. O aprendizado profundo foi inspirado na rede neural humana e é estruturado por lógica matemática.
No segundo capítulo, os autores apresentam três novos desdobramentos do aprendizado profundo da IA: visão computacional, redes neurais convolucionais e redes adversárias generativas (GANs). Tais possibilidades são inspiradas em como os humanos percebem, estruturam e testam novas informações, respectivamente. Essas iniciativas trazem preocupações com as deepfakes, biometria e segurança de IA.
No terceiro capítulo, os autores apresentam as possibilidades do PLN (processamento de linguagem natural) da IA nas diversas relações homem-máquina. Nesse conto, o foco é o desenvolvimento individual do intelecto de forma personalizada através da intervenção de IA com PLN, algo que só potencializaria a atual “sociedade do desempenho”, criticada por Byung-Chul Han (2017).
No quarto e quinto capítulos, os autores refletem sobre o uso das tecnologias robótica e CRISPR (edição genética) atreladas à IA, necessárias para melhoria da qualidade de vida das pessoas. Também exploram a VR (realidade virtual), AR (realidade aumentada) e MR (realidade mista) como componentes da visão XR (realidade estendida), a qual simula ambientes, personagens e situações de forma bastante real no contato homem-máquina.
No sexto capítulo, os autores confirmam a automação do sistema de trânsito em cidades chamadas inteligentes. A peça principal desse avanço tecnológico é o VA (veículos autônomos) que, ao atingir o nível máximo 5 em automação, poderão dirigir sem auxílio humano. Para tanto, é elementar a implantação de redes de internet 5G e 6G.
No sétimo capítulo, os autores tratam do principal avanço das IA’s: computação quântica. Para eles: “a tecnologia é inerentemente neutra — são as pessoas que a usam para propósitos tanto bons quanto maus” (pág. 309). Mas se a meta para o desenvolvimento da IA é que ela atinja a AGI (inteligência artificial geral) — (Rahman, 2022), essa barreira neutra caíra por terra.
No oitavo capítulo, os autores dialogam sobre o aumento do desemprego estrutural diante da evolução das IA’s e as possíveis soluções para tal fenômeno social. A RBU (renda básica universal) é uma das soluções propostas pelos autores. O “pagamento (RBU) pode ser dado com a taxação de pessoas físicas e/ou jurídicas ultrarricas” (p. 355). Porém, a pergunta que fica é a seguinte: os ultrarricos que financiam pesquisas voltadas para a automação da produção, visando lucro absoluto, mesmo que isso implique na amputação da terceira perna (consumo) no capitalismo, vão querer mesmo arcar com essa despesa, ou farão o que já fazem e jogarão o problema na conta dos Estados?
No penúltimo e último capítulos, os autores discorrem sobre a possibilidade das IA’s potencializarem a felicidade humana, extinguirem a pobreza e a fome e implementarem mudanças nas transações monetárias.
O livro, como é notório, apresenta um arcabouço de informações sobre o avanço das IA’s, o qual facilita a compreensão acerca dessas tecnologias e seus possíveis desdobramentos na relação homem-máquina. Contudo, não está isento de contradições. O autor Lee, não anuncia os caminhos para uma das suas grandes expectativas na introdução: “A produtividade de cada humano será amplificada, permitindo-nos alcançar nosso potencial” (pág. 11). Os autores presumem a erradicação da fome como escudo de defesa para o avanço das novas tecnologias: “a robótica reduzirá o custo da agricultura com o tempo, oferecendo a promessa de reduzir a insegurança alimentar pelo mundo também” (pág. 176). Como na Revolução Verde, mais uma vez a promessa de redução ou eliminação da insegurança alimentar no mundo é renovada a partir da IA, como forma de aceitar o inaceitável.
No livro, há também há também a “inocente” aposta de que a riqueza gerada pela IA vai reduzir a pobreza global: “Primeiro, a IA criará uma grande riqueza — a PricewaterhouseCoopers estima em 15,7 trilhões de dólares até 2030 —, o que ajudará a reduzir a fome e a pobreza” (p.10). Já em 2022, a riqueza global alcançou o imenso valor de 463,6 trilhões de dólares e mesmo assim existem no mundo 828 milhões de pessoas passando fome, segundo a Unicef/ONU.
Essa aposta é coerente com visão rousseauniana dos bons humanos, anunciada nas seguintes frases: “Primeiro, empresas que utilizam IA devem tornar público onde os sistemas de IA são usados e com que objetivo” (p.48) e “Eu estou confiante de que haverá soluções tecnológicas e políticas que tratem dos desafios da IA e de sua influência, preconceito ou operações nebulosas” (p.49). Observem também a seguinte ideia: “assim como vencemos os spams e os vírus com inovações tecnológicas, a segurança de IA será alcançada restando apenas algumas violações ocasionais (assim como de vez em quando ainda somos atacados por spam ou vírus)” (p.81). Com tal proposição, os autores minimizam o fato do poder objetivo resultante da conveniência entre big techs e governos autoritários como o dos EUA não verem limites em invadir a vida privada de bilhões de pessoas anônimas e/ou públicas a partir de espionagem digital. “O CRISPR é uma tecnologia inovadora para edição genética, algo que tem o potencial de erradicar muitas doenças no futuro” (pág. 167). Mas também tem um grande potencial para criar raças superiores, como salienta o historiador israelense Yuval Harari (2014):
No início do terceiro milênio, o futuro do humanismo evolutivo não está claro. Durante 60 anos após o fim da guerra contra Hitler, foi um tabu associar humanismo com evolução e defender o uso de métodos biológicos para “aprimorar” o Homo sapiens. Mas hoje tais projetos estão em voga novamente. Ninguém fala de exterminar raças ou pessoas inferiores, mas muitos cogitam usar nosso conhecimento cada vez maior da biologia humana para criar super-humanos (Harari, 2020, p.244–245).
Não obstante as ideias controversas, a obra possui alguns atributos positivos ao apresentar possibilidades significativas para o desenvolvimento humano quanto a uma educação personalizada para cada discente: “um tutor de IA personalizado poderia ser fornecido a cada aluno. […] o que tornou a aprendizagem mais divertida. […] a se dedicar mais a áreas nas quais ele era mais fraco. […]. Além disso, Autman estava sempre disponível e podia ser chamado a qualquer hora — algo que nenhum professor consegue fazer.” (pág. 133); para uso genético com a finalidade de erradicar problemas de saúde: “O CRISPR é uma tecnologia inovadora para edição genética, algo que tem o potencial de erradicar muitas doenças no futuro” (p.167), como ficou perceptível na notícia no final de 2018, quando o médico geneticista chinês, He Jiankui, alterou o código genético de duas gêmeas a partir da técnica supracitada com a finalidade de torná-las imunes ao HIV.
Ademais, os autores propõem a regulamentação das redes: “uma possibilidade é ter regulamentações governamentais que penalizem os culpados” (p.47). Propõem, ainda, o controle de dados privados, citando uma Lei europeia: “RGPD (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) — que a UE chama de “a lei de segurança e privacidade mais rigorosa do mundo”. (pág. 400).
O livro não cumpre o que promete em suas duas introduções ao se referir ao avanço das IA’s como um processo deveras positivo, que possibilitará o máximo desenvolvimento individual humano, a eliminação da fome e pobreza global, a potencialização da felicidade e do ócio criativo humanos, pois os autores não apresentam modelos lógicos para essas conquistas se efetivarem até 2041. A obra é cheia de contradições, pois ao mesmo tempo que apresenta promessas de prosperidade e felicidade, também traz números que afirmam que ao menos “40% dos nossos empregos poderiam ser realizados na maior parte por uma IA e por tecnologias de automação até 2033” (pág. 353). O livro é indicado para todos os públicos que se ocupam de questões mundiais relativas à sobrevivência humana e de inovação tecnológica. Mas os leitores precisam ter uma visão geral sobre os verdadeiros impactos da IA na sociedade global.
Referências
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2015.
Sumário de 2041 – Como a inteligência artificial vai mudar sua vida nas próximas décadas
- Introdução – A verdadeira história da IA | Kai-Fu Lee
- Introdução – Como podemos aprender a parar de nos preocupar e abraçar o futuro com imaginação
- | Chen Qiufan
- 1. O elefante dourado
- Análise: Aprendizado profundo, big data, aplicativos de internet/finanças, externalidades de IA
- 2. Os deuses por trás das máscaras
- Análise: Visão computacional, redes neurais convolucionais, deepfakes, redes adversárias generativas (GANs), biometria, segurança de IA
- 3. Dois pardais
- Análise: Processamento de linguagem natural, treinamento autossupervisionado, GPT-3, AGI e consciência, educação com IA
- 4. Amor sem contato
- Análise: IA de saúde, AlphaFold, usos de robótica, aceleração da automação pela covid
- 5. Meu ídolo assombrado
- Análise: Realidade virtual (VR), realidade aumentada (AR) e realidade mista (MR), interface cérebro-computador (BCI), questões éticas e sociais
- 6. O motorista abençoado
- Análise: Veículos autônomos, autonomia completa e cidades inteligentes, questões éticas e sociais
- 7. Genocídio quântico
- Análise: Computação quântica, segurança de bitcoin, armas autônomas e ameaça à existência
- 8. O salvador de empregos
- Análise: Substituição de postos de trabalho por IA, renda básica universal (RBU), o que a IA não consegue fazer, os 3Rs como uma solução para as
- substituições
- 9. A ilha da felicidade
- Análise: IA e felicidade, Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), dados pessoais, privacidade em computação com uso de aprendizado federado e ambiente de execução confiável (TEE)
- 10. Sonhando com a plenitude
- Análise: Plenitude, novos modelos econômicos, o futuro do dinheiro, singularidade
- Agradecimentos
- Índice
- Notas
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Resenhista
Rômulo Gois de Aragão professor de História na rede estadual de ensino da Bahia e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ensino de História, da Universidade Federal de Sergipe (PROFHISTÓRIA/UFS). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/7763334859951925; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0001-0039-1940; E-mail: romulogeolife@gmail.com.
Para citar esta resenha
LEE, Kai-Fu.; QIUFAN, Chen. 2041 – Como a inteligência artificial vai mudar sua vida nas próximas décadas. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2022. 460p. Resenha de: ARAGÃO, Rômulo Gois de. Visão contraditória. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.13, set./out., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/visao-contraditoria-resenha-de-romulo-gois-de-aragao-sobre-o-livro-2041-como-a-inteligencia-artificial-vai-mudar-sua-vida-nas-proximas-decadas-de-kai-fu-lee-e-chen-qiufan/>.
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Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 13, set./out., 2023 | ISSN 2764-2666